10 de dezembro de 2023

Milei e Bolsonaro são frutos da decadência do neoliberalismo

Javier Milei, que toma posse hoje, priorizou questões econômicas em detrimento de questões culturais em sua campanha, ao contrário de seu irmão brasileiro, Jair Bolsonaro. Mas ambos os líderes da extrema-direita refletem o espírito destrutivo do neoliberalismo na sua fase niilista.

Olavo Passos de Souza


Uma faixa de Javier Milei em 30 de novembro de 2023, em Buenos Aires, Argentina. (Tomas Cuesta / Getty Images)

Tradução / A recente vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas deixou muitos se perguntando qual é o papel ainda desempenhado pela política de direita reacionária na América Latina.

Menos de um ano após a derrota de Jair Bolsonaro no Brasil e o retorno do líder progressista Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do país, a vitória avassaladora de Milei na segunda maior economia da América Latina parece indicar uma dissonância no cenário político regional.

Sem serem vinculados ao neoliberalismo dos anos 1990 nem à “maré rosa” das democracias sociais durante os anos 2000, os líderes latino-americanos parecem não ter um objetivo ou visão compartilhada.

Se alguém acompanhou as eleições argentinas de 2023, não foi difícil identificar muitas semelhanças com o Brasil em 2018. E, no entanto, os principais problemas destacados por Milei e Bolsonaro foram, na maior parte, radicalmente diferentes. Embora ambos tenham alcançado resultados semelhantes, os problemas – ou problemas aparentes – em que escolheram focar variaram dramaticamente.

À primeira vista, os dois candidatos parecem representar vertentes muito diferentes da extrema-direita – um é um libertário radical, o outro um nacionalista linha-dura. No entanto, ao observar mais de perto, parece claro que ambas as formas de política de direita derivam do mesmo paradigma neoliberal que tem definido a política reacionária não apenas na América Latina, mas em todo o mundo desde o fim da Guerra Fria.

Campanhas contrastantes

Ao discutir semelhanças nos ciclos eleitorais do Brasil e da Argentina, o paralelo mais claro, é claro, estava na presença de um candidato de extrema-direita que se apresentou como líder quase messiânico para a febre antissistema, rapidamente suplantando o candidato convencional de direita e subindo para o topo das pesquisas. Com narrativas reacionárias e cheias de ódio, Bolsonaro e Milei ambos venceram as eleições facilmente, alimentando imediatas preocupações nacionais e internacionais sobre o que significaria a implementação das políticas prometidas na campanha.

Nesse sentido, os dois políticos se espelham, inclusive em discursos de vitória nos quais ambos afirmaram defensivamente não ter problemas com as instituições democráticas, antes de imediatamente tornarem públicos planos que colocam a sinceridade de suas palavras em questão.

Havia outras semelhanças, como a ausência de um candidato sólido da esquerda tradicional. O controverso ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, mostrou-se muito impopular para impedir a vitória reacionária, assim como o caso do substituto apressadamente indicado de Lula, Fernando Haddad, no Brasil.

No entanto, Milei e Bolsonaro focaram suas campanhas em campos diferentes. Como economista, Milei tornou o tumulto econômico que a Argentina vem enfrentando o centro de sua campanha. Seu governo, ele prometeu, seria dedicado a corrigir a hiperinflação e reduzir os supostos excessos da administração anterior. “Liberdade” foi o grito de guerra de sua campanha, invocando a natureza libertária e autoproclamada “anarco-capitalista” da visão de Milei para a Argentina.

O novo presidente falou de um país libertado da suposta tirania da burocracia governamental, que ele responsabilizou por todos os males que assolaram a Argentina até agora. Embora seja um conservador social que se opõe ao aborto e à educação sexual na escola, enquanto promove teorias ultradireitistas de conspiração sobre “marxismo cultural”, Milei tentou minimizar essas questões durante a campanha e concentrar-se em suas políticas econômicas.

Bolsonaro, por outro lado, tinha muito pouco a dizer sobre a economia em 2018. Autodenominado leigo em questões econômicas, o brasileiro prometeu deixar a maioria das decisões de política econômica nas mãos de seu assessor Paulo Guedes. Bolsonaro direcionou sua atenção, em vez disso, para as mesmas ideias sobre “marxismo cultural” que Milei colocou em segundo plano.

Se autoproclamando defensor dos valores morais, Bolsonaro alcançou a vitória como o candidato da família nuclear cristã e inimigo ardente da chamada doutrinação da juventude. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi o slogan de Bolsonaro, trocando a abordagem libertária vaga de Milei por uma retórica muito mais focada no cristianismo nacionalista.

Os maiores inimigos que sua campanha identificou não eram burocratas governamentais ou maus formuladores de políticas econômicas, mas sim professores e ativistas sociais que supostamente buscavam converter a juventude brasileira para sua própria agenda amorala. A maioria do eleitorado de Bolsonaro sabia pouco ou nada sobre seu plano econômico antes da vitória, exceto por promessas vagas de acabar com a corrupção que ele atribuía à esquerda.

Olhando para trás

Em resumo, o eleitor médio de Milei focou em questões econômicas, enquanto seu equivalente apoiador de Bolsonaro deu maior ênfase às questões sociais. Em ambos os casos, no entanto, poderíamos encontrar a mesma promessa reacionária de um homem forte empoderado pelas massas para retroceder no tempo.

Em seu discurso de vitória, Milei elogiou a Argentina do século XIX, aludindo a um período em que o alto PIB do país e seu exército razoavelmente poderoso o tornaram um modelo a ser seguido. É uma visão clássica e romântica compartilhada por muitos círculos conservadores da Argentina, que culpam os problemas atuais do país em vários eventos e desenvolvimentos do último século, em particular o elusivo conceito de peronismo.

Os ídolos principais de Bolsonaro sempre foram os ditadores militares que governaram o Brasil de 1964 a 1985. Este foi um período na história brasileira que o ex-presidente apresenta como economicamente próspero, seguro e livre do comunismo. Ele chegou ao ponto de celebrar o aniversário de um notório torturador do regime militar, elogiando-o por limpar o Brasil da ameaça do comunismo e impedir que ele “se tornasse a Venezuela” – um medo compartilhado por muitos conservadores brasileiros apreensivos com o governo de esquerda dos anos 2000 e 2010.

Essas interpretações idealizadas do passado, branqueando a realidade muito mais sombria em prol da nostalgia, estão entre as ferramentas favoritas da extrema-direita. Elas alimentam a rejeição do estabelecimento moderno por Milei e Bolsonaro como ilegítimo, em favor de alguma “forma correta de governo” imaginária.

Pouco depois de sua eleição, Javier Milei lançou um vídeo onde arrancava adesivos de um quadro com ministérios do governo escritos neles, uma maneira hábil de anunciar planos de efetivamente desmantelar o estado até seus ossos. Entre as vítimas desses cortes estariam os ministérios da educação e da saúde.

O mesmo aconteceu no Brasil quando Bolsonaro assumiu o cargo em janeiro de 2019, reduzindo o número de ministérios de vinte e nove para vinte e dois e criando os chamados superministérios. O mais notório deles era o Ministério da Economia, uma fusão de órgãos anteriores agora chefiado pelo assessor de Bolsonaro, Paulo Guedes. Assim como Javier Milei, Guedes é adepto da escola austríaca de economia.

Para Guedes, não se tratava apenas de reduzir o tamanho do governo, eliminando papéis supostamente redundantes e despesas supérfluas. Ele buscava trabalhar ativamente contra o aparato do estado em si. O que se seguiu no Brasil de 2019 a 2022 foi a desestruturação da máquina pública, resultando em tumulto econômico e social à medida que a desigualdade de renda crescia exponencialmente e os investidores internacionais gradualmente perdiam a confiança nos mercados brasileiros.

Collor e Menem

A rejeição do estabelecimento moderno e a atribuição de todos os males sociais e econômicos à ação do governo estão no cerne da retórica de Milei e Bolsonaro. O problema endêmico da corrupção governamental tanto na Argentina quanto no Brasil o torna o alvo perfeito para os ataques da extrema-direita.

Com todos os políticos considerados corruptos, o estado em si se torna o problema. A solução apropriada, em sua visão, só pode ser alcançada empoderando o setor privado e o livre mercado.

Essa retórica não é nova em nenhum dos dois países. Políticos neoliberais a utilizaram nos anos 1980 e, de forma mais bem-sucedida, nos anos 1990. Em 1990, Fernando Collor foi eleito presidente do Brasil após se retratar como um combatente anticorrupção. Ele foi apelidado de “Caçador de Marajás” – em referência a um termo associado a funcionários públicos corruptos – e misturou uma postura contra a corrupção com a redução do tamanho do governo federal.

A memória da ditadura militar do Brasil ainda estava fresca na época, e a ideia de um governo menor com mais ênfase nas liberdades públicas parecia uma boa coisa para muitas pessoas. No entanto, a subsequente “terapia de choque” aplicada ao estado brasileiro produziu uma grave crise econômica que culminou no impeachment de Collor em 1992 e na reconfiguração do cenário político brasileiro longe de agendas econômicas radicais. Posteriormente, os governos de centro-direita dos anos 1990 e os de centro-esquerda dos anos 2000 buscaram desenvolver serviços estatais mais robustos.

O período presidencial argentino de dez anos de Carlos Menem, de 1989 a 1999, também teve uma abordagem fortemente neoliberal em relação ao estado, reduzindo significativamente os gastos públicos, eliminando ministérios do governo e privatizando indústrias-chave. O choque econômico que se seguiu em 2001 foi popularmente atribuído às suas políticas e provocou uma realinhamento político.

As administrações de Collor e Menem também foram prejudicadas por escândalos de corrupção próprios. No caso de Collor, eles se tornaram sinônimos de seu governo. Isso pode mostrar como superficial a narrativa anticorrupção frequentemente se revela.

Figuras como Milei e Bolsonaro agora se opõem aos estados supostamente poderosos que os governos da Argentina e do Brasil construíram durante os anos 2000. Com o surgimento da extrema-direita internacional e a polarização da política desde a época de Collor e Menem, essa retórica neoliberal contém uma mistura muito mais nacionalista e etnorreligiosa do que antes. Ao mesmo tempo, a nação é elevada como o padrão mais alto, enquanto o estado é vilipendiado.

Perspectivas incertas

Milei assumirá o cargo em 10 de dezembro. Apesar de todo o radicalismo de sua retórica, ele já suavizou sua abordagem em muitas questões. Inicialmente hostil à presença do presidente do Brasil, Lula, na inauguração, ele agora mudou sua postura pública e está incentivando a presença do chefe de Estado do maior parceiro comercial da Argentina.

Milei também começou a se referir de maneira mais cordial a outros líderes mundiais a quem ele anteriormente insultou como “imbecis” (Papa Francisco) ou “comunistas” (Joe Biden). Parece evidente que vencer na campanha eleitoral e governar uma nação serão experiências vastamente diferentes, assim como foi o caso com Bolsonaro.

Milei também enfrenta outro grande problema: a falta de apoio político no congresso argentino. Quando seu colega brasileiro venceu a presidência em 2018, ele foi acompanhado por um número recorde de políticos de extrema-direita que apoiaram sua agenda.

Mesmo assim, Bolsonaro não conseguiu reunir o apoio legislativo necessário e recorreu a uma forma de semiparlamentarismo improvisado, concedendo ampla discricionariedade e autoridade ao congresso se a maioria de seus membros apoiasse suas medidas. Milei começa com menos apoio dos membros da assembleia nacional da Argentina, e resta saber se esse outsider político conseguirá implementar alguma de suas promessas.

Colaborador

Olavo Passos de Souza é doutorando em história pela Stanford University.

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