Chamados para "descolonizar" a produção acadêmica podem invocar o antieurocentrismo progressista, mas a teoria da decolonialidade identificada com as obras de Walter Mignolo só negocia os aspectos mais questionáveis da política de identidade. Envolta em um jargão impenetrável, a decolonialidade des-historiciza e culturaliza o colonialismo, promovendo algumas autocracias odiosas ao longo do caminho.
Neil Larsen
I
Tradução / Já se passaram vários anos desde que o termo “decolonial”, juntamente com a sua inflexão verbal mais ativa, “descolonizar”, se tornou familiar na cultura popular e midiática, especialmente relacionada a políticas de identidade. Ainda outra variante, a “decolonialidade”, junta-se a estas, embora esteja restrita a um léxico acadêmico mais restrito e misterioso. A “descolonização”, localizada num ponto acessível da inserção discursiva, já a acompanhou. Aqui, no entanto, aqueles com consciência suficiente, e não com apenas uma memória residual de seu contexto histórico, reconhecerão na “descolonização” um termo mais antigo, com uma ressonância política distinta que pode ser rastreada até um tempo consideravelmente mais antigo, às décadas de 1940, 1950 e 1960, se não antes, à Revolta da Páscoa de 1916 na Irlanda e ao massacre de Amritsar em 1919 na Índia governada pelos britânicos. Certamente, na época da histórica Conferência de Bandung de 1955, de ex-colônias relativamente recentemente independentes e a partir de então (por um tempo) não-alinhadas na Ásia e na África, um termo como “decolonial” teria sido indissoluvelmente ligado aos movimentos contemporâneos de libertação nacional anticoloniais e ao processo histórico real de descolonização que alcançava seu apogeu naquela época, particularmente no que restou do colonialismo europeu formal em muitas partes da Ásia e grande parte de África.
Não por coincidência, foi também uma época muito anterior ao aparecimento do precursor mais imediato do decolonial no jargão acadêmico atual, o “pós-colonial”. Isto ocorreu na década de 1980, em parte graças ao aparecimento e o impacto anteriores do orientalismo histórico de Edward Said. A ascendência intelectual do pós-estruturalismo e do pós-modernismo também deixou claramente uma marca nesta terminologia. O pós-colonial, que compreende a teoria pós-colonial, os estudos pós-coloniais e a literatura pós-colonial, parece até agora ter resistido à substituição pelo decolonial. Isto se deve, provavelmente, às vantagens retóricas da ressonância mais estritamente descritiva e menos militante do pós-colonialismo quando se trata, por exemplo, de coisas como contratações acadêmicas e currículos.
Uma clara vantagem do “decolonial” sobre o “pós-colonial”, no entanto, é a facilidade com que pode ser transformado no verbo imperativo ou exortativo, mais convenientemente transitivo, “descolonizar”. Isto, tanto quanto posso traduzir, significa “eliminar o racismo de” ou “expor o preconceito eurocêntrico” em qualquer alvo a qual se considere necessitado de tal denúncia ou crítica. Juntamente com cada vez mais publicações que apresentam o termo “descolonização” (por exemplo, títulos de livros como Decolonizing the Map [Descolonizando os Mapas]; Decolonising the University [Descolonizando a Universidade] ; e Decolonizing Data [Descolonizando Dados]), veja o novo “ Decolonize That!” [Descolonizar isso!] série publicada pela OR Books, com títulos de 2022 como Decolonize Museums [Descolonizar os Museus]; Descolonize Hipsters [Descolonizar os Hipsters]; Decolonize Self-Care [Descolonizar o Autocuidado]; e o próximo Decolonize Multiculturalism [Descolonizar o Multiculturalismo]. O pós-colonial claramente não se prestará tão bem a este tipo de criação de slogans. Esta é, sem dúvida, uma das razões para o desafio da ala esquerdista do pós-colonialismo ao seu nicho como jargão mais convencional do status quo.
No entanto, as expressões construídas em torno dos termos “decolonial” e “descolonizar” podem, em certos casos, ser atribuídos à “decolonialidade”, apesar de ser um termo mais estritamente acadêmico – e até mesmo ao original em espanhol, “decolonialidad”. Apesar de não haver certeza sobre isso, provavelmente devemos esse possível cruzamento, em parte significativo, ao crítico e estudioso Walter D. Mignolo. Ocupando uma cátedra na Duke University, Mignolo é, sem dúvida, a autoridade mais frequentemente citada no atual boom de estudos que proclamam fidelidade política e teórica à decolonialidade. Natural da Argentina, inicialmente um estudioso da semiótica e da literatura latino-americana do período colonial, Mignolo atribui ao falecido sociólogo peruano Aníbal Quijano a introdução do conceito de decolonialidade – aqui em relação à teoria de Quijano da “colonialidade do poder”. (originalmente a “colonialidad del poder”), supostamente articulado pela primeira vez em seu artigo de 1991 “Colonialidad y modernidad/racionalidad” (“ Colonialidade e Modernidade/Racionalidade ”). Nos numerosos escritos de Mignolo, que remontam a The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality, & Colonization [O Lado Mais Obscuro da Renascença: Letramento, Territorialidade e Colonização, ainda sem edição no Brasil], de 1995, e que abarcam sua monografia de 2000, Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges and Border Thinking [Histórias Locais/Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar, Editora UFMG, 2003], a decolonialidade ainda não havia aparecido de forma literal ou ainda não assumia uma posição discursiva dominante. Até o livro de Mignolo de 2011, The Darker Side of Western Modernity [O Lado Mais Escuro da Modernidade Ocidental], a prioridade ainda era dada a cunhagens anteriores, como a antiga favorita de Mignolo, o “pós-ocidentalismo”, e ao então (e ainda) onipresente “pensamento fronteiriço”.
Em todas as interações da teorização conspícua de Mignolo, no entanto, a disposição alegadamente subversiva e des-ocidentalizadora do que é agora uma decolonialidade oficialmente registrada, remonta a um ponto muito anterior ao início quase contemporâneo do seu jargão. Suas origens remetem supostamente aos primórdios da invasão, conquista e colonização europeia das Américas, África e sul e leste da Ásia no final do século XV e início do século XVI. Como tal, já se diz que o que se afirma ser o poder subversivo da decolonialidade contemporânea reside numa resistência decolonial indígena e não europeia – uma resistência à qual as primeiras explorações coloniais da Europa certamente deram origem. Qualquer que seja a verdade e a terminologia atualmente aplicada e projetada sobre elas, o legado social e político e a importância de tais lutas históricas são frequentemente ignorados e subestimados. Mas, em vez de uma análise histórica mais profunda, o que prevalece na obra de Mignolo é aquilo a que me referirei como mero jargão da decolonialidade, muitas vezes descambando para uma linguagem bombástica.
Isto é certamente verdadeiro no caso do livro mais recente de Mignolo em inglês. The Politics of Decolonial Investigations [A Política das Pesquisas Decoloniais] (a partir daqui PDCI) é uma coleção lançada recentemente de quatorze ensaios e artigos publicados anteriormente e evidentemente um tanto revisados, totalizando bem mais de quinhentas páginas. Com uniformidade, consistência e monotonia quase totais, ele é lido como uma repetição de termos e frases quase ritualizados, auto repetíveis e quase encantadores que, em sua pura variação vertiginosa e repetitiva, parodiam um sistema teórico genuíno. Quijano, celebrado aqui como uma espécie de oráculo – oriundo, como somos repetidamente lembrados, dos “Andes sul-americanos” (grifo meu) – é creditado por Mignolo pela exposição de uma “matriz colonial de poder” (MCP). Para isso, uma “opção decolonial” oposta é apresentada àqueles de nós preparados – cultural ou etnicamente predispostos – a “desvincular-se”, isto é, praticar a “desobediência epistêmica”. Em resposta a qualquer pessoa suficientemente rude para levar em conta os limites intra-acadêmicos da decolonialidade, o seu jargão torna-se especialmente denso, minucioso e incondicional. Mignolo invoca “o conhecimento da vida cotidiana em comunidades para as quais o conhecimento acadêmico, erudito e científico é perfeitamente irrelevante” – deixando o leitor se perguntando, entretanto, o quanto de “teoria decolonial” estas próprias “comunidades” leem. . . ou formulam. Mas Mignolo tem o cuidado de estipular que “desligar-se da epistemologia e da estética ocidentais não equivale a desligar-se das instituições”. A decolonialidade deve ser “introduzida” nelas (não religada?), mas “com cuidado para evitar contaminá-la com academicismo”. Embora admita que “a decolonialidade poderia ser tomada como uma moda”, o PDCI, tal como o lendário Rei Cnut da Grã-Bretanha, mas sem a ironia ou a humildade deste último, ordena que as marés recuem: “as tarefas políticas do trabalho decolonial não devem ser distraídas por sua banalização”.
Exercer a opção decolonial ativa ainda mais um conjunto impressionantemente ofuscador de neologismos decoloniais oficiais, muito justapostos, idiossincráticos e entorpecentemente barrocos para serem catalogados aqui completamente. Mas eles seguem um padrão consistente e espalhafatoso formado por correspondências puramente terminológicas, variações muitas vezes redundantes e substituições pró-forma que deveriam ser familiares a qualquer pessoa relutantemente exposta a muitos jargões intelectuais e acadêmicos modernos. Assim, a ocidentalização considerada antitética para a decolonialidade nos dá não apenas uma “desocidentalização” correspondente, mas até um perigo subsequente e explicitamente contra reformista de “reocidentalização”. Ainda mais: um sinônimo efetivo de decolonialidade e desocidentalização é algo que Mignolo chama, em voz baixa, de “o Terceiro Nomos da Terra” – um spin-off irônico e revelador de Carl Schmitt.
Entretanto, a ascensão daquilo que Mignolo chama de “estados-civilização” (em oposição aos estados-nação ocidentalizados) da Rússia, China, Índia e Irã contemporâneos – com a Turquia por vezes acrescentada em boa medida – é citada pelo PDCI como um sinal que uma era radicalmente nova de desocidentalização surgiu. Numa indicação reveladora de como mesmo oscilações políticas e mudanças de governo relativamente conjunturais, voláteis e reversíveis podem evidentemente determinar a diferença entre o “Ocidente” e o seu outro antitético, trata-se, segundo o PDCI, apenas da queda de Lula e Dilma Rousseff e o declínio do próprio Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, cedendo lugar à eleição de Jair Bolsonaro no final de 2018, que derrubou o Brasil no campo da reocidentalização. Mignolo cria aqui a impressão de que Bolsonaro de fato tirou o Brasil da cúpula do BRICS, mas isso é falso. O próprio Brasil, representado pelo recém-eleito e totalmente engajado Bolsonaro, sediou a décima primeira cúpula do BRICS em 2019. Ele continuou a participar do décimo segundo e do décimo terceiro conclaves em 2020 e 2021 – eventos em que o chefe de estado brasileiro dividiu o pódio com “desocidentalizadores” como Vladimir Putin, Xi Jinping e Narendra Modi. Com relação ao “Estado-civilização” que é a Índia sob Modi e o BJP, Mignolo está, não surpreendentemente, praticamente em silêncio – tal como está em relação à Turquia de Recep Tayyip Erdoğan e ao Irã sob Ebrahim Raisi e os mulás. Quando são mencionados de passagem, o jargão da decolonialidade après Mignolo assume um tom equívoco próprio:
Tradução / Já se passaram vários anos desde que o termo “decolonial”, juntamente com a sua inflexão verbal mais ativa, “descolonizar”, se tornou familiar na cultura popular e midiática, especialmente relacionada a políticas de identidade. Ainda outra variante, a “decolonialidade”, junta-se a estas, embora esteja restrita a um léxico acadêmico mais restrito e misterioso. A “descolonização”, localizada num ponto acessível da inserção discursiva, já a acompanhou. Aqui, no entanto, aqueles com consciência suficiente, e não com apenas uma memória residual de seu contexto histórico, reconhecerão na “descolonização” um termo mais antigo, com uma ressonância política distinta que pode ser rastreada até um tempo consideravelmente mais antigo, às décadas de 1940, 1950 e 1960, se não antes, à Revolta da Páscoa de 1916 na Irlanda e ao massacre de Amritsar em 1919 na Índia governada pelos britânicos. Certamente, na época da histórica Conferência de Bandung de 1955, de ex-colônias relativamente recentemente independentes e a partir de então (por um tempo) não-alinhadas na Ásia e na África, um termo como “decolonial” teria sido indissoluvelmente ligado aos movimentos contemporâneos de libertação nacional anticoloniais e ao processo histórico real de descolonização que alcançava seu apogeu naquela época, particularmente no que restou do colonialismo europeu formal em muitas partes da Ásia e grande parte de África.
Não por coincidência, foi também uma época muito anterior ao aparecimento do precursor mais imediato do decolonial no jargão acadêmico atual, o “pós-colonial”. Isto ocorreu na década de 1980, em parte graças ao aparecimento e o impacto anteriores do orientalismo histórico de Edward Said. A ascendência intelectual do pós-estruturalismo e do pós-modernismo também deixou claramente uma marca nesta terminologia. O pós-colonial, que compreende a teoria pós-colonial, os estudos pós-coloniais e a literatura pós-colonial, parece até agora ter resistido à substituição pelo decolonial. Isto se deve, provavelmente, às vantagens retóricas da ressonância mais estritamente descritiva e menos militante do pós-colonialismo quando se trata, por exemplo, de coisas como contratações acadêmicas e currículos.
Uma clara vantagem do “decolonial” sobre o “pós-colonial”, no entanto, é a facilidade com que pode ser transformado no verbo imperativo ou exortativo, mais convenientemente transitivo, “descolonizar”. Isto, tanto quanto posso traduzir, significa “eliminar o racismo de” ou “expor o preconceito eurocêntrico” em qualquer alvo a qual se considere necessitado de tal denúncia ou crítica. Juntamente com cada vez mais publicações que apresentam o termo “descolonização” (por exemplo, títulos de livros como Decolonizing the Map [Descolonizando os Mapas]; Decolonising the University [Descolonizando a Universidade] ; e Decolonizing Data [Descolonizando Dados]), veja o novo “ Decolonize That!” [Descolonizar isso!] série publicada pela OR Books, com títulos de 2022 como Decolonize Museums [Descolonizar os Museus]; Descolonize Hipsters [Descolonizar os Hipsters]; Decolonize Self-Care [Descolonizar o Autocuidado]; e o próximo Decolonize Multiculturalism [Descolonizar o Multiculturalismo]. O pós-colonial claramente não se prestará tão bem a este tipo de criação de slogans. Esta é, sem dúvida, uma das razões para o desafio da ala esquerdista do pós-colonialismo ao seu nicho como jargão mais convencional do status quo.
No entanto, as expressões construídas em torno dos termos “decolonial” e “descolonizar” podem, em certos casos, ser atribuídos à “decolonialidade”, apesar de ser um termo mais estritamente acadêmico – e até mesmo ao original em espanhol, “decolonialidad”. Apesar de não haver certeza sobre isso, provavelmente devemos esse possível cruzamento, em parte significativo, ao crítico e estudioso Walter D. Mignolo. Ocupando uma cátedra na Duke University, Mignolo é, sem dúvida, a autoridade mais frequentemente citada no atual boom de estudos que proclamam fidelidade política e teórica à decolonialidade. Natural da Argentina, inicialmente um estudioso da semiótica e da literatura latino-americana do período colonial, Mignolo atribui ao falecido sociólogo peruano Aníbal Quijano a introdução do conceito de decolonialidade – aqui em relação à teoria de Quijano da “colonialidade do poder”. (originalmente a “colonialidad del poder”), supostamente articulado pela primeira vez em seu artigo de 1991 “Colonialidad y modernidad/racionalidad” (“ Colonialidade e Modernidade/Racionalidade ”). Nos numerosos escritos de Mignolo, que remontam a The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality, & Colonization [O Lado Mais Obscuro da Renascença: Letramento, Territorialidade e Colonização, ainda sem edição no Brasil], de 1995, e que abarcam sua monografia de 2000, Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges and Border Thinking [Histórias Locais/Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar, Editora UFMG, 2003], a decolonialidade ainda não havia aparecido de forma literal ou ainda não assumia uma posição discursiva dominante. Até o livro de Mignolo de 2011, The Darker Side of Western Modernity [O Lado Mais Escuro da Modernidade Ocidental], a prioridade ainda era dada a cunhagens anteriores, como a antiga favorita de Mignolo, o “pós-ocidentalismo”, e ao então (e ainda) onipresente “pensamento fronteiriço”.
Em todas as interações da teorização conspícua de Mignolo, no entanto, a disposição alegadamente subversiva e des-ocidentalizadora do que é agora uma decolonialidade oficialmente registrada, remonta a um ponto muito anterior ao início quase contemporâneo do seu jargão. Suas origens remetem supostamente aos primórdios da invasão, conquista e colonização europeia das Américas, África e sul e leste da Ásia no final do século XV e início do século XVI. Como tal, já se diz que o que se afirma ser o poder subversivo da decolonialidade contemporânea reside numa resistência decolonial indígena e não europeia – uma resistência à qual as primeiras explorações coloniais da Europa certamente deram origem. Qualquer que seja a verdade e a terminologia atualmente aplicada e projetada sobre elas, o legado social e político e a importância de tais lutas históricas são frequentemente ignorados e subestimados. Mas, em vez de uma análise histórica mais profunda, o que prevalece na obra de Mignolo é aquilo a que me referirei como mero jargão da decolonialidade, muitas vezes descambando para uma linguagem bombástica.
Isto é certamente verdadeiro no caso do livro mais recente de Mignolo em inglês. The Politics of Decolonial Investigations [A Política das Pesquisas Decoloniais] (a partir daqui PDCI) é uma coleção lançada recentemente de quatorze ensaios e artigos publicados anteriormente e evidentemente um tanto revisados, totalizando bem mais de quinhentas páginas. Com uniformidade, consistência e monotonia quase totais, ele é lido como uma repetição de termos e frases quase ritualizados, auto repetíveis e quase encantadores que, em sua pura variação vertiginosa e repetitiva, parodiam um sistema teórico genuíno. Quijano, celebrado aqui como uma espécie de oráculo – oriundo, como somos repetidamente lembrados, dos “Andes sul-americanos” (grifo meu) – é creditado por Mignolo pela exposição de uma “matriz colonial de poder” (MCP). Para isso, uma “opção decolonial” oposta é apresentada àqueles de nós preparados – cultural ou etnicamente predispostos – a “desvincular-se”, isto é, praticar a “desobediência epistêmica”. Em resposta a qualquer pessoa suficientemente rude para levar em conta os limites intra-acadêmicos da decolonialidade, o seu jargão torna-se especialmente denso, minucioso e incondicional. Mignolo invoca “o conhecimento da vida cotidiana em comunidades para as quais o conhecimento acadêmico, erudito e científico é perfeitamente irrelevante” – deixando o leitor se perguntando, entretanto, o quanto de “teoria decolonial” estas próprias “comunidades” leem. . . ou formulam. Mas Mignolo tem o cuidado de estipular que “desligar-se da epistemologia e da estética ocidentais não equivale a desligar-se das instituições”. A decolonialidade deve ser “introduzida” nelas (não religada?), mas “com cuidado para evitar contaminá-la com academicismo”. Embora admita que “a decolonialidade poderia ser tomada como uma moda”, o PDCI, tal como o lendário Rei Cnut da Grã-Bretanha, mas sem a ironia ou a humildade deste último, ordena que as marés recuem: “as tarefas políticas do trabalho decolonial não devem ser distraídas por sua banalização”.
Exercer a opção decolonial ativa ainda mais um conjunto impressionantemente ofuscador de neologismos decoloniais oficiais, muito justapostos, idiossincráticos e entorpecentemente barrocos para serem catalogados aqui completamente. Mas eles seguem um padrão consistente e espalhafatoso formado por correspondências puramente terminológicas, variações muitas vezes redundantes e substituições pró-forma que deveriam ser familiares a qualquer pessoa relutantemente exposta a muitos jargões intelectuais e acadêmicos modernos. Assim, a ocidentalização considerada antitética para a decolonialidade nos dá não apenas uma “desocidentalização” correspondente, mas até um perigo subsequente e explicitamente contra reformista de “reocidentalização”. Ainda mais: um sinônimo efetivo de decolonialidade e desocidentalização é algo que Mignolo chama, em voz baixa, de “o Terceiro Nomos da Terra” – um spin-off irônico e revelador de Carl Schmitt.
Entretanto, a ascensão daquilo que Mignolo chama de “estados-civilização” (em oposição aos estados-nação ocidentalizados) da Rússia, China, Índia e Irã contemporâneos – com a Turquia por vezes acrescentada em boa medida – é citada pelo PDCI como um sinal que uma era radicalmente nova de desocidentalização surgiu. Numa indicação reveladora de como mesmo oscilações políticas e mudanças de governo relativamente conjunturais, voláteis e reversíveis podem evidentemente determinar a diferença entre o “Ocidente” e o seu outro antitético, trata-se, segundo o PDCI, apenas da queda de Lula e Dilma Rousseff e o declínio do próprio Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, cedendo lugar à eleição de Jair Bolsonaro no final de 2018, que derrubou o Brasil no campo da reocidentalização. Mignolo cria aqui a impressão de que Bolsonaro de fato tirou o Brasil da cúpula do BRICS, mas isso é falso. O próprio Brasil, representado pelo recém-eleito e totalmente engajado Bolsonaro, sediou a décima primeira cúpula do BRICS em 2019. Ele continuou a participar do décimo segundo e do décimo terceiro conclaves em 2020 e 2021 – eventos em que o chefe de estado brasileiro dividiu o pódio com “desocidentalizadores” como Vladimir Putin, Xi Jinping e Narendra Modi. Com relação ao “Estado-civilização” que é a Índia sob Modi e o BJP, Mignolo está, não surpreendentemente, praticamente em silêncio – tal como está em relação à Turquia de Recep Tayyip Erdoğan e ao Irã sob Ebrahim Raisi e os mulás. Quando são mencionados de passagem, o jargão da decolonialidade après Mignolo assume um tom equívoco próprio:
As tendências atuais na China, na Rússia, na Índia e na Turquia para transformar o Estado-nação num Estado-civilização estão revelando sinais de restituição do que foi destituído. Não estou dizendo que os estados-civilização serão “melhores” que os estados-nação. Só estou dizendo que provavelmente sim.
Os BRICS, para Mignolo, tornam-se o CRI (China, Rússia e Irã): os “três pilares” da desocidentalização. Siglas como CRI e o onipresente MCP, grandiosos marcadores de época como o Terceiro Nomos da Terra e a própria decolonialidade, e especialmente os prefixos, adquirem um status particularmente significativo e exaltado no jargão da decolonialidade:
A mudança de época [da “ocidentalização” para a “desocidentalização” ou “decolonialidade”] não pode mais ser capturada pela adição do prefixo “pós-”. O pós-prefixo é válido dentro da reocidentalização, a contra-reforma que pretende manter os privilégios construídos ao longo de quinhentos anos de ocidentalização, mas não tem sentido para a desocidentalização e a decolonialidade. O prefixo “de-” entra em campo, dividindo a universalidade e a totalidade ocidentais em múltiplas temporalidades, conhecimentos e práticas de vida… O prefixo “de” significa que você desobedece e se desvincula da crença na universalidade e na unipolaridade; você pega o que precisa para restituir aquilo que foi destituído e que é relevante para o surgimento da multipolaridade nas relações interestatais e na pluriversalidade.
Tanto para o pós-colonial! O “de-” do decolonial, tão ciumento quanto o deus do Antigo Testamento, não terá outros prefixos antes dele. “Multipolaridade” e “pluriversalidade” também são fixações lexicais continuamente evocadas no jargão de decolonialidade certificado por Mignolo. Outros incluem “destituição”, “restituição”, “o gnoseológico” (evidentemente realocando e substituindo um epistemológico decolonialmente suspeito) e “estética” ou “o estético”, aqui evocando uma estética decolonizada.
Mas certamente a característica mais reveladora do jargão da decolonialidade são as instruções pontificadas do PDCI ao leitor sobre o significado genuíno e completo – de época, escatológico e próximo do cósmico – de nada mais do que uma mudança de prefixos. Encontrar tais extremos de arrogância e exibição retórica traz à mente The Jargon of Authenticity [O Jargão da Autenticidade], a exposição crítica contundente e ainda oportuna de Theodor Adorno sobre a degradação da linguagem na filosofia existencialista alemã de Martin Heidegger e Karl Jaspers – descrita em certo ponto como um jargão determinado “se as palavras individuais são carregadas às custas da frase, de sua força proposicional e do conteúdo do pensamento”. Deixando de lado a questão de saber se no PDCI e no jargão de decolonialidade ao estilo Mignolo ainda resta muito, se houver algum, conteúdo de pensamento em nível de frase disponível para sacrifício à força de culto de palavras individuais, Mignolo aqui baseia o próprio futuro da humanidade em variáveis de nível linguisticamente subatômico – sobre a diferença entre o “de-” e o “pós-”.
Após exposição prolongada ao jargão da decolonialidade, o “de-” em “decolonial” começa a soar mais apropriado: significando, como bem poderia, o apagamento ou a reversão não do próprio colonialismo, mas do seu conceito e referente histórico. Porque é que, afinal de contas, há tão pouco a ser encontrado no PDCI – e em geral em todos os discursos decoloniais de Mignolo – com relação às especificidades do próprio colonialismo, à sua base e condições materiais, para não mencionar os detalhes reais e praticamente inesgotáveis da sua historiografia, movimentos anticoloniais mostrando que não há exceção a essa regra? Quaisquer que sejam as razões mais profundas para isso, este déficit factual é crucial para a crítica e o desvelamento crítico do jargão da decolonialidade – quase como se as suas extravagâncias e redundâncias terminológicas e a sua arrogância retórica aberta fossem uma compensação irônica para um vácuo histórico subjacente.
Parte da resposta refletirá, sem dúvida, também o alcance tipicamente contemporâneo e cosmopolita dos apelos mais vernaculares à “descolonização”. Embora, como slogan, este último não ignore necessariamente o impacto histórico do colonialismo nas questões da injustiça racial atual e nas lutas contra as barreiras estabelecidas pelo privilégio nacional-imperial, até mesmo a exigência mais prática e empenhada de descolonização não costuma ser alcançada além dos limites da política de identidade e do seu pano de fundo intelectual convencional, o culturalismo.
O culturalismo equivale, em resumo, à teoria de que as identidades e diferenças culturais e étnicas são o que, em última análise, explica o mundo. Assim, a causa da emancipação social passa a ser definida e determinada pela — se não reduzida à — luta contra os mitos de inferioridade e superioridade etnocultural que estão subjacentes a um status quo opressivo. Mignolo e o jargão da decolonialidade não são exceções aqui: é o culturalismo, nesse sentido, que constitui o horizonte onipresente e delimita o que pode e o que não pode ser dito e pensado em obras como o PDCI e nos volumosos escritos de Mignolo que o precederam, remontando, pelo menos, até Histórias Locais/Designs Globais, de 2000. Assim, embora um trabalho como o PDCI possa parecer exteriormente preocupado com a história em sua realidade objetiva e complexidade, seu âmbito histórico e sua apreensão são, de fato, severamente restringidos e empobrecidos. Embora se envolva em invocações repetidas, gerais e abrangentes da era da conquista, começando no final do século XV, e colonização do mundo europeu e ocidental, esta referência histórica muito geral (com pequenas e incidentais exceções) é a única indicação do interesse de Mignolo ou compromisso com a historicização da decolonialidade. Não fará muito sentido explorar a base histórico-material mais profunda do colonialismo se, como afirma Mignolo, o “real” em si for apenas “uma projeção epistêmica” e se o “governo e a economia” não forem mais do que “fabricações epistêmicas”. O PDCI é sempre rápido em proclamar o alvorecer histórico, por mais disputado que seja, de uma nova era desocidentalizada ou de um Terceiro Nomos da Terra, mas categorias-chave como a matriz colonial de poder e a própria decolonialidade permanecem absolutos supra-históricos que possuem origens quase míticas não sujeitas a historicização. Subscrever a teoria decolonial de Mignolo é abandonar qualquer noção de que os fatores materiais e sociais que condicionam a formação histórica e o aparecimento de absolutos como “o Ocidente”, a “desocidentalização” e a “descolonialidade” podem eles próprios ser investigados e determinados.
Esta é uma situação bastante surpreendente e escandalosa em qualquer trabalho que reivindique uma adesão real a algo tão essencialmente histórico como o colonialismo, incluindo o anticolonialismo e a descolonização. Isso levanta a questão, entre outras, – a ser abordada na quarta e última seção desta resenha – de como é que qualquer “teoria” pertencente ao colonialismo, mas praticamente desprovida de referência histórica detalhada e de qualquer envolvimento intelectual com as lutas contemporâneas contra o neocolonialismo e o imperialismo poderiam atrair tantos convertidos “decoloniais” como evidentemente aconteceu. Mas decorre, lógica e inevitavelmente, do erro categórico fundamental e desastroso ao qual culturalismos como o de Mignolo são irrevogavelmente condenados quando se aventuram num terreno que exige ou convida a uma explicação histórica. Cultura e etnicidade são, necessariamente, explanandum: o que deve ser explicado antes, como categorias, e que podem tornar-se explanans, isto é, serem capazes de explicar qualquer outra coisa. E, em última análise, é apenas a história — um universal que resiste e recusa a culturalização — que condiciona e torna possível esta função explicativa local. O culturalismo de Mignolo reduz inevitavelmente a categoria do próprio universal (daí também a história) ao estatuto de artefato, se não de artifício, de uma cultura particular, a da Europa e do Ocidente. Mas se, em virtude de sua suposta origem cultural, todos os universais fossem realmente eliminados, o resultado seria paralisia cognitiva. Não se pode pensar, teorizar ou criticar sem a categoria do universal, assim como não se pode pensar sem a do particular. Uma universalidade proscrita simplesmente reentra no jargão da decolonialidade pela porta dos fundos como, digamos, desocidentalização, a própria decolonialidade ou pluriversalidade. Por que não ir ainda mais longe e lançar uma exigência de “pluriuniversalidade”?
Contudo, implicações mais sinistras decorrem de tal falácia. Ao rejeitar como eurocêntricas e ocidentalizadas todas as reivindicações de universalidade, Mignolo no PDCI abre caminho para a reentrada sub-reptícia de ainda outros universais mal disfarçados, muito mais insidiosos do que autoparódias como a pluriversalidade – desde que possuam o álibi de serem antiocidentais. Na verdade, a defesa explícita de Mignolo dos “estados-civilização” antiocidentais da China, da Rússia e do Irã expõe um flagrante flerte decolonial com a autocracia e os chauvinismos das grandes nações. Isto fica mais claro no endosso aberto, explícito e frequentemente reiterado do PDCI à China de Xi Jinping e ao seu desafio à reocidentalização. Pois, embora “a decolonialidade não seja” – e “não possa ser” – “uma tarefa liderada pelo Estado”, a “desocidentalização. . . só pode ser promovida por um Estado forte que seja econômica e financeiramente sólido. É por isso que a China está na vanguarda desta trajetória.” Depois de um aceno estranhamente condescendente e desdenhoso a Mao Zedong (claramente uma presença desconfortável e em grande parte dispensável na cena decolonial), Deng Xiaoping é creditado por Mignolo por ter desvinculado a China dos ditames ocidentais, bem como celebrado por ter supostamente desacoplado o capitalismo do liberalismo e do neoliberalismo. “’Capitalismo com características chinesas’”, observa Mignolo, “foi um comentário sarcástico na mídia ocidental. E de fato foi e é. E alguém poderia perguntar: o que há de errado nisso?” Correndo o risco de pecar contra a decolonialidade, estamos inclinados a perguntar, juntamente com um número evidentemente crescente de trabalhadores chineses mais jovens que aderem à filosofia do “tang ping” e optam por “ficar deitados” em vez de trabalhar horas intermináveis apenas para, na melhor das hipóteses, permanecerem na mesma condição, se o que há de errado com isso não é apenas o próprio capitalismo. Mas a simpatia e a admiração de Mignolo por Deng Xiaoping, Xi Jinping e pelos escalões superiores do Estado-civilização chinês não parecem estender-se aos próprios trabalhadores chineses comuns. A clara tendência de Mignolo para subordinar a contradição de classe a questões de hierarquia e diferença cultural e étnica – se não ignorar completamente a classe – não pode esconder um endosso decolonial de fato às atuais políticas dominantes da classe capitalista, desde que possam ser identificadas como “des-Ocidentalizantes”.
Mas certamente a característica mais reveladora do jargão da decolonialidade são as instruções pontificadas do PDCI ao leitor sobre o significado genuíno e completo – de época, escatológico e próximo do cósmico – de nada mais do que uma mudança de prefixos. Encontrar tais extremos de arrogância e exibição retórica traz à mente The Jargon of Authenticity [O Jargão da Autenticidade], a exposição crítica contundente e ainda oportuna de Theodor Adorno sobre a degradação da linguagem na filosofia existencialista alemã de Martin Heidegger e Karl Jaspers – descrita em certo ponto como um jargão determinado “se as palavras individuais são carregadas às custas da frase, de sua força proposicional e do conteúdo do pensamento”. Deixando de lado a questão de saber se no PDCI e no jargão de decolonialidade ao estilo Mignolo ainda resta muito, se houver algum, conteúdo de pensamento em nível de frase disponível para sacrifício à força de culto de palavras individuais, Mignolo aqui baseia o próprio futuro da humanidade em variáveis de nível linguisticamente subatômico – sobre a diferença entre o “de-” e o “pós-”.
Após exposição prolongada ao jargão da decolonialidade, o “de-” em “decolonial” começa a soar mais apropriado: significando, como bem poderia, o apagamento ou a reversão não do próprio colonialismo, mas do seu conceito e referente histórico. Porque é que, afinal de contas, há tão pouco a ser encontrado no PDCI – e em geral em todos os discursos decoloniais de Mignolo – com relação às especificidades do próprio colonialismo, à sua base e condições materiais, para não mencionar os detalhes reais e praticamente inesgotáveis da sua historiografia, movimentos anticoloniais mostrando que não há exceção a essa regra? Quaisquer que sejam as razões mais profundas para isso, este déficit factual é crucial para a crítica e o desvelamento crítico do jargão da decolonialidade – quase como se as suas extravagâncias e redundâncias terminológicas e a sua arrogância retórica aberta fossem uma compensação irônica para um vácuo histórico subjacente.
Parte da resposta refletirá, sem dúvida, também o alcance tipicamente contemporâneo e cosmopolita dos apelos mais vernaculares à “descolonização”. Embora, como slogan, este último não ignore necessariamente o impacto histórico do colonialismo nas questões da injustiça racial atual e nas lutas contra as barreiras estabelecidas pelo privilégio nacional-imperial, até mesmo a exigência mais prática e empenhada de descolonização não costuma ser alcançada além dos limites da política de identidade e do seu pano de fundo intelectual convencional, o culturalismo.
O culturalismo equivale, em resumo, à teoria de que as identidades e diferenças culturais e étnicas são o que, em última análise, explica o mundo. Assim, a causa da emancipação social passa a ser definida e determinada pela — se não reduzida à — luta contra os mitos de inferioridade e superioridade etnocultural que estão subjacentes a um status quo opressivo. Mignolo e o jargão da decolonialidade não são exceções aqui: é o culturalismo, nesse sentido, que constitui o horizonte onipresente e delimita o que pode e o que não pode ser dito e pensado em obras como o PDCI e nos volumosos escritos de Mignolo que o precederam, remontando, pelo menos, até Histórias Locais/Designs Globais, de 2000. Assim, embora um trabalho como o PDCI possa parecer exteriormente preocupado com a história em sua realidade objetiva e complexidade, seu âmbito histórico e sua apreensão são, de fato, severamente restringidos e empobrecidos. Embora se envolva em invocações repetidas, gerais e abrangentes da era da conquista, começando no final do século XV, e colonização do mundo europeu e ocidental, esta referência histórica muito geral (com pequenas e incidentais exceções) é a única indicação do interesse de Mignolo ou compromisso com a historicização da decolonialidade. Não fará muito sentido explorar a base histórico-material mais profunda do colonialismo se, como afirma Mignolo, o “real” em si for apenas “uma projeção epistêmica” e se o “governo e a economia” não forem mais do que “fabricações epistêmicas”. O PDCI é sempre rápido em proclamar o alvorecer histórico, por mais disputado que seja, de uma nova era desocidentalizada ou de um Terceiro Nomos da Terra, mas categorias-chave como a matriz colonial de poder e a própria decolonialidade permanecem absolutos supra-históricos que possuem origens quase míticas não sujeitas a historicização. Subscrever a teoria decolonial de Mignolo é abandonar qualquer noção de que os fatores materiais e sociais que condicionam a formação histórica e o aparecimento de absolutos como “o Ocidente”, a “desocidentalização” e a “descolonialidade” podem eles próprios ser investigados e determinados.
Esta é uma situação bastante surpreendente e escandalosa em qualquer trabalho que reivindique uma adesão real a algo tão essencialmente histórico como o colonialismo, incluindo o anticolonialismo e a descolonização. Isso levanta a questão, entre outras, – a ser abordada na quarta e última seção desta resenha – de como é que qualquer “teoria” pertencente ao colonialismo, mas praticamente desprovida de referência histórica detalhada e de qualquer envolvimento intelectual com as lutas contemporâneas contra o neocolonialismo e o imperialismo poderiam atrair tantos convertidos “decoloniais” como evidentemente aconteceu. Mas decorre, lógica e inevitavelmente, do erro categórico fundamental e desastroso ao qual culturalismos como o de Mignolo são irrevogavelmente condenados quando se aventuram num terreno que exige ou convida a uma explicação histórica. Cultura e etnicidade são, necessariamente, explanandum: o que deve ser explicado antes, como categorias, e que podem tornar-se explanans, isto é, serem capazes de explicar qualquer outra coisa. E, em última análise, é apenas a história — um universal que resiste e recusa a culturalização — que condiciona e torna possível esta função explicativa local. O culturalismo de Mignolo reduz inevitavelmente a categoria do próprio universal (daí também a história) ao estatuto de artefato, se não de artifício, de uma cultura particular, a da Europa e do Ocidente. Mas se, em virtude de sua suposta origem cultural, todos os universais fossem realmente eliminados, o resultado seria paralisia cognitiva. Não se pode pensar, teorizar ou criticar sem a categoria do universal, assim como não se pode pensar sem a do particular. Uma universalidade proscrita simplesmente reentra no jargão da decolonialidade pela porta dos fundos como, digamos, desocidentalização, a própria decolonialidade ou pluriversalidade. Por que não ir ainda mais longe e lançar uma exigência de “pluriuniversalidade”?
Contudo, implicações mais sinistras decorrem de tal falácia. Ao rejeitar como eurocêntricas e ocidentalizadas todas as reivindicações de universalidade, Mignolo no PDCI abre caminho para a reentrada sub-reptícia de ainda outros universais mal disfarçados, muito mais insidiosos do que autoparódias como a pluriversalidade – desde que possuam o álibi de serem antiocidentais. Na verdade, a defesa explícita de Mignolo dos “estados-civilização” antiocidentais da China, da Rússia e do Irã expõe um flagrante flerte decolonial com a autocracia e os chauvinismos das grandes nações. Isto fica mais claro no endosso aberto, explícito e frequentemente reiterado do PDCI à China de Xi Jinping e ao seu desafio à reocidentalização. Pois, embora “a decolonialidade não seja” – e “não possa ser” – “uma tarefa liderada pelo Estado”, a “desocidentalização. . . só pode ser promovida por um Estado forte que seja econômica e financeiramente sólido. É por isso que a China está na vanguarda desta trajetória.” Depois de um aceno estranhamente condescendente e desdenhoso a Mao Zedong (claramente uma presença desconfortável e em grande parte dispensável na cena decolonial), Deng Xiaoping é creditado por Mignolo por ter desvinculado a China dos ditames ocidentais, bem como celebrado por ter supostamente desacoplado o capitalismo do liberalismo e do neoliberalismo. “’Capitalismo com características chinesas’”, observa Mignolo, “foi um comentário sarcástico na mídia ocidental. E de fato foi e é. E alguém poderia perguntar: o que há de errado nisso?” Correndo o risco de pecar contra a decolonialidade, estamos inclinados a perguntar, juntamente com um número evidentemente crescente de trabalhadores chineses mais jovens que aderem à filosofia do “tang ping” e optam por “ficar deitados” em vez de trabalhar horas intermináveis apenas para, na melhor das hipóteses, permanecerem na mesma condição, se o que há de errado com isso não é apenas o próprio capitalismo. Mas a simpatia e a admiração de Mignolo por Deng Xiaoping, Xi Jinping e pelos escalões superiores do Estado-civilização chinês não parecem estender-se aos próprios trabalhadores chineses comuns. A clara tendência de Mignolo para subordinar a contradição de classe a questões de hierarquia e diferença cultural e étnica – se não ignorar completamente a classe – não pode esconder um endosso decolonial de fato às atuais políticas dominantes da classe capitalista, desde que possam ser identificadas como “des-Ocidentalizantes”.
Entretanto, Mignolo rejeita alegremente a antiga União Soviética e, com ela, toda uma época na história do anticolonialismo e do anti-imperialismo de enorme e praticamente incalculável importância. Não há nenhuma palavra no PDCI sobre o papel soviético reconhecidamente ambíguo e sobre determinado pela Guerra Fria, mas ainda assim histórico, ao longo de pelo menos a década de 1970, ajudando a promover lutas anticoloniais e anti-imperialistas sem precedentes, incluindo as da própria RPC juntamente com Cuba, Vietnã e Angola . A URSS era, segundo o PDCI:
Uma forma falida de lidar com a diferença imperial, porque agia com base num sistema ocidental de ideias que não correspondia nem emergia da história local russa. O que era local era a raiva e a raiva contra o czarismo russo. Mas o instrumento, neste caso o comunismo, foi emprestado.
Nenhum pan-eslavista, incluindo o próprio Putin, teria dito de forma diferente. O fato de o liberalismo e o marxismo, os “herdeiros do Iluminismo”, não terem podido nem assumido uma forma russa local, deve constituir um choque para os historiadores sérios da Rússia do século XVIII, XIX e do início do século XX. Aplicando os critérios de uma ideologia tão flagrantemente culturalista – na verdade, orientalista –, perguntamo-nos como Mignolo classificaria figuras históricas e culturais russas pré-soviéticas como Pedro ou Catarina, a Grande, Alexander Pushkin, Ivan Turgenev ou Nikolay Chernyshevsky. São russos ocidentais ou locais? E o que dizer dos milhões de súditos imperiais da Rússia pré-soviética e czarista que não eram russos étnicos ou exclusiva ou principalmente faladores do idioma russo? Estarão eles, portanto, fora da história russa? Putin e seus seguidores poderão, sem dúvida, preferir ver as coisas desta forma.
Os estudantes de história informados pelas obras de Karl Marx, bem como pelo vasto arquivo de historiografia, ciências sociais e filosofia que elas ajudaram a gerar e moldar, aprenderam há muito tempo como combater as falácias do antiuniversalismo culturalista. Mas, para realçar, brevemente, as ideias básicas: a Europa é o berço histórico do capitalismo e da sua formação social correlativa – e não o local da sua partenogénese etnocultural puramente mítica. Essa formação social, outrora popularmente conhecida como sociedade burguesa, tenta, num primeiro momento com relativo sucesso, projetar os interesses da classe que a domina como universais, como idênticos aos interesses da sociedade como um todo. Não demorará muito, contudo, até que esta reivindicação de universalidade seja contestada a partir das fileiras da massa da humanidade oprimida e explorada pelo capitalismo, incluindo as vítimas das suas intervenções coloniais e imperiais e das violentas tomadas e invasões territoriais. E contra a da burguesia – cada vez menos críveis à medida que o capitalismo e os seus interesses de classe se tornam mais abertamente repressivos – surge a reivindicação oposta à universalidade avançada pelo socialismo revolucionário e pelo comunismo, a universalidade social e internacional de uma aspiracional sociedade sem classes.
Tudo isto pode parecer ao jargão ortodoxo da decolonialidade nada mais do que uma “restituição” eurocêntrica do privilégio ocidental e da matriz colonial de poder, mas não há nada flagrantemente “colonizador” nisso. Nem parece plausível que a simpatia mais ampla pela “descolonização” das instituições cosmopolitas contemporâneas ou mesmo por uma decolonialidade mais genérica, inspirada em Mignolo, escolhesse traçar aqui as suas linhas de batalha anti-universalistas. Apesar de todo o seu culturalismo predefinido e da sua promoção da “pluriversalidade”, a teoria decolonial de Mignolo, como regra, parece hesitante em apresentar um capitalismo auto-evidentemente global em termos estritamente culturais ou em declará-lo como uma mera “projeção epistêmica”. Exceto aqueles casos menos evidentes em que pode ser introduzido nas costas da “desocidentalização” e dos seus “estados-civilização” (ver novamente o endosso indireto de Mignolo ao “capitalismo com características chinesas”), o capitalismo como tal, em última análise e efetivamente, é deixado fora do quadro geral previsto implicitamente no PDCI e no jargão da decolonialidade. Na medida em que o capitalismo se aproxima do ponto de fuga na visão do mundo da decolonialidade, o mesmo acontece com o marxismo, entendido aqui como a teoria e a crítica mais sistemática e radical do capitalismo. E à medida que este último, como qualquer coisa que não seja uma caricatura hiper abstrata, desaparece de vista, desaparecem junto com ele quaisquer concepções rigorosas de anticapitalismo ou de uma sociedade pós-capitalista libertada como universais plenamente históricos e concretos.
Um ponto menos óbvio, mas não menos crucial, a ser aqui lembrado, contudo, é que a forma de sociedade a que o capitalismo moderno dá origem, uma formação social mediada e “sintetizada” (para usar o termo de Alfred Sohn-Rethel) pelas relações inscritas na abstração real da mercadoria ou forma-valor parece, necessariamente para os indivíduos que a compõem, ser ela mesma algo abstrato e, correspondentemente, universal em contraste com todas as formas anteriores de sociedade. Esta é uma das ramificações do fenômeno bem conhecido, mas ainda muitas vezes mal compreendido, do fetichismo (a “objetividade fantasma”) das mercadorias, descoberto pela primeira vez por Marx e cuja explicação teórica foi dada em O Capital. Uma sociedade “sintetizada” pela produção e troca de mercadorias – pelas relações sociais inscritas no valor – assume uma forma que é ao mesmo tempo abstrata e estranha, parecendo existir apenas (para usar a expressão de Marx) “nas costas” daqueles que a compõem. A Europa, inicialmente as suas zonas ocidental e norte, é novamente o local onde esta forma de sociedade emerge plenamente. Mas, ao contrário da universalidade que pode ser atribuída e reduzida ao imediatismo sociológico da ideologia burguesa e, portanto, relativamente mais facilmente falsificada, a universalidade profundamente estrutural e estranha da sociedade mediada pela mercadoria não pode ser tão fácil ou facilmente exposta ou falsificada. Na verdade, num plano ideológico mais imediato, não é um falso universal, mas antes uma forma de falsa consciência socialmente necessária. Para que a falsidade da sua aparente universalidade seja exposta à vista, as próprias relações sociais da produção de mercadorias devem entrar em crise – e ser elevadas ao nível do conhecimento consciente teórico e social.
Não valerá então a pena considerar se a proibição da decolonialidade aos universais, a sua relegação dogmática a um “eurocentrismo” pseudo- ou a-histórico, não é em si sintomática da persistente intratabilidade teórica e intelectual da universalidade socialmente falsa do capitalismo no acima mencionado plano estrutural profundo? Isto poderia pelo menos ajudar a chegar a uma explicação, ainda que hipotética, do apelo não negligenciável de Mignolo e do jargão da decolonialidade entre intelectuais e acadêmicos, muitos deles evidentemente mais jovens, de tendência progressista e identificados com, se não nativos, regiões do Sul Global pós-colonial. Sem os dados estatísticos e empíricos que estão além do escopo desta resenha e podem ser impossíveis de obter, não podemos ter certeza sobre isso. Mas nenhuma crítica à decolonialidade autorizada por Mignolo, especialmente considerando a pura banalidade de seu jargão, poderia no final ser considerada completa sem algum esforço para explicar o que é, para dizer o mínimo, o fato intrigante de sua relativa popularidade.
Consideremos, ainda, que na conjuntura que remonta à virada do milênio – a mesma que viu a publicação das principais obras de Mignolo e a sua ascensão à proeminência intelectual – os universalismos vulgares e flagrantemente ideológicos reivindicam o manto de “Ocidental” e a civilização burguesa é cada vez mais facilmente exposta a particularismos chauvinistas e, portanto, apesar das suas crescentes bases de apoio “populistas”, ainda mais facilmente desacreditadas. Pense, por exemplo, nos manifestos ao estilo de Samuel Huntington proclamando o “choque de civilizações” ou, ainda mais descaradamente e mais au courant, nos idílios distópicos da supremacia branca e muitas vezes nacionalista-cristã dos “populismos” de extrema direita de hoje. Donald Trump, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro e Marine Le Pen. Sua capacidade de conquistar números aparentemente maiores de adeptos do que teria sido o caso há trinta, vinte ou mesmo dez anos atrás vem ao custo de uma polarização social crescente que também aumenta o número dos seus antagonistas. Mas isto transparece mesmo quando a verdade social e histórica da abstração “real” da mercadoria do capitalismo e da correspondente forma de universalidade, ideologicamente mais hermética, permanece comparativamente mais resistente à divulgação consciente e secular. Isto é, as reivindicações étnicas e culturais de universalidade são mais facilmente expostas como falsas e perniciosas, mas a sua fonte subjacente – a universalidade sócio-histórica, estrutural, mas alienada do capitalismo – passa despercebida ao radar do culturalismo, por assim dizer. O efeito torna-se cada vez mais transparente, enquanto a causa, culturalmente invisível mas historicamente contingente e, portanto, não menos ideológica no final, permanece obscura.
Mas por trás da evidente e possivelmente ainda crescente popularidade de Mignolo e da decolonialidade está certamente a realidade concreta do desenvolvimento desigual e combinado, tal como experimentado no Sul Global contemporâneo e na sua diáspora metropolitana. Como o falecido Aijaz Ahmad e outros críticos marxistas que desde cedo desafiaram suas tendências de influência pós-estruturalista, centradas no discurso e des-historicizantes não deixaram de observar na ocasião, a ascensão da teoria pós-colonial, pelo menos numa primeira iteração consagrada nos trabalhos de Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha traçaram um paralelo claro com a crise e o colapso efetivo do que ainda restava dos movimentos de libertação nacional anticoloniais que tinham sido catalisados no final da Segunda Guerra Mundial. Este foi um divisor de águas que Ahmad denominou de forma memorável “o fim da era Bandung”, um ponto final histórico que ele relacionou sensatamente ao triunfo da facção islâmica anti-secular e anti-marxista na Revolução Iraniana de 1979. O colapso do bloco socialista de Leste e da própria URSS mais de uma década depois – e a crise e eventual enfraquecimento das insurreições e revoluções anti-imperialistas centro-americanas em El Salvador e na Nicarágua durante a mesma década seguinte – apenas reforçaram o culturalismo e as tendências antiuniversalistas do pós-colonialismo, sobretudo no impacto deste último no latino-americanismo e na crítica e teoria literária e cultural latino-americana.
Ao longo das cerca de três décadas que se passaram desde então, pode-se dizer que a resistência à dominação imperial e neocolonial no Sul Global foi e voltou. Testemunhe a chamada guinada à esquerda em muitas partes da América Latina, desde a ascensão do PT no Brasil, especialmente depois de 2002, e tendências eleitorais mais recentes, embora voláteis, favoráveis à esquerda parlamentar e social-democrata na Argentina, Honduras, Peru, Chile e Colômbia. Mas há poucos indícios de que o fim da era Bandung não tenha continuado a ocorrer em todo o Sul Global de forma implacável e agonizante. Nem se pode dizer que a sorte do imperialismo (sinônimo da superpotência dos EUA) ou do próprio capitalismo global tenha prosperado. Embora pontuada por atos abertos de violenta agressão imperial e de superpotências, mais significativa e dramaticamente a desastrosa invasão do Iraque pelos EUA e o fracasso abjeto de sua guerra de vinte anos no Afeganistão, a crise prolongada do anti-imperialismo do Terceiro Mundo ao longo dos últimos trinta anos não tem, apesar de uma breve onda de triunfalismo ocidental do “fim da Guerra Fria”, após o desaparecimento do socialismo estatal soviético e do bloco soviético, resultado numa recuperação correspondente para as fortunas imperiais dos antigos colonialistas e neocolonialistas do mundo. Se, no final do decênio 1979-89/91, a passagem da fase heroica de libertação nacional do Terceiro Mundo se tornou conclusiva e começou a ecoar em forma de culturalismo influenciada pela alta teoria do pós-colonialismo, alguma memória histórica e consciência da, digamos, fase revolucionária de resistência anti-imperial bem-sucedida de Cuba, iniciada em princípios da década de 1960, ou a derrota final da máquina de guerra dos EUA pelo Vietnã insurgente em 1975 persistiram claramente, mesmo entre aqueles menos céticos em relação à versão pós-colonialista de subversão “epistêmica”. E a América Central, entretanto, pareceu durante algum tempo, durante o final da década de 1970 e a década de 1980, preparada para prolongar essas vitórias, fornecendo, no mínimo, uma série de testemunhas e mártires à causa do anti-imperialismo revolucionário, desde Óscar Romero até Rigoberta Menchú.
Mas, com exceção às referências dispersas e em grande parte etnicamente motivadas ao zapatismo, é em vão que se procura nas páginas do PDCI ou de muitas outras obras de Mignolo qualquer sentido de que esta história existiu ou continua a ter importância, mesmo que apenas para diagnosticar as razões para a sua passagem – muito menos para especular sobre as perspectivas da sua redenção em um futuro ainda apenas vaga ou parcialmente discernível. O próprio Mignolo tem idade suficiente para saber o que está faltando aqui, mas para muitos de seus seguidores, isso parece muito menos provável de ser verdade. O que poderá o fim de Bandung começar a significar para aqueles descolonizadores, para quem o fato de ter realmente começado permanece, na melhor das hipóteses, nebuloso?
Pode ser que o apoio generalizado ao antirracismo e à eliminação do supremacismo branco e do preconceito eurocêntrico das instituições sociais e culturais contemporâneas expresso nos slogans e exigências do descolonialismo opere dentro dos limites desta mesma consciência histórica severamente diminuída. Isto, por si só, não subtrai nada daquilo que é certamente muitas vezes a justiça e a urgência de muitos desses slogans e campanhas. Mesmo que, por exemplo, os apelos à descolonização das galerias de arte ou do hipsterismo sejam incapazes ou não queiram ligar esses objetivos aos recentes bombardeamentos assassinos apoiados e supridos pelos EUA contra milhares de civis iemenitas, ou, mais amplamente, à pobreza catastrófica e massiva e ameaças à própria sobrevivência humana em todo o Sul Global, impostas pela divisão internacional do trabalho do capitalismo, pelo menos não se traduz automática ou necessariamente no apoio explícito de Mignolo à autocracia antiocidental. Quanto mais limitadas e localizadas forem essas campanhas e exigências — isto é, quanto menos universais — menor será o risco de se transformarem numa decolonialidade sancionada por Mignolo.
Mas uma vez que a vontade ou mesmo a tentação de teorizar entra na briga, a categoria do universal entra junto com ela. É feito por necessidade, embora aparentemente desacreditado e desfavorecido pela realidade conjuntural prevalecente. Como vimos no caso de Mignolo e do jargão da decolonialidade, a proibição dos universais, por fidelidade dogmática a qualquer condição imaginada de santidade ou alteridade cultural ou étnica, leva, na melhor das hipóteses, às autoparódias e ao grotesco do “de-”, conquistador do “pós-” e rei dos reis entre os prefixos. Como demonstra o PDCI, a proibição culturalista dos universais como eurocentristas a priori transforma-se facilmente no culto repressivo e sub-repticiamente universalizante das autocracias desocidentalizantes. Estes últimos devem ser simplesmente preferidos como os únicos aliados possíveis ou consistentes de uma decolonialidade que abjurou não só o liberalismo e o marxismo como “herdeiros do Iluminismo”, mas evidentemente a própria democracia. Mas até que ponto separa realmente uma decolonialidade fixada numa hostilidade maniqueísta para com o Ocidente dos populismos de direita e autoritários atualmente ascendentes em toda a Europa, para não dizer na América do Norte? Apesar da afirmação caracteristicamente mas irrefletidamente autoconfiante de Mignolo, muitas vezes repetida em seus escritos e em numerosas entrevistas, de que o Ocidente termina a leste de Jerusalém, é um termo notoriamente relativo e elástico, tão fácil e prontamente denunciado num determinado ponto como poderia ser invocado em outro. Orbán da Hungria ou Andrzej Duda da Polônia poderiam muito bem expressar fidelidade aos valores cristãos ocidentais supostamente sob ameaça de imigração não-europeia (não-branca) e no momento seguinte denunciar a política ocidental-liberal, ostensivamente mais tolerante à imigração da União Europeia. O “Ocidente” está a oeste de qualquer “Oriente” etnoculturalista e cripto-universal que esteja comandando a lealdade decolonial. E, mutatis mutandis, o mesmo se aplica ao Oriente – ou deveremos dizer o “de-Ocidente”? É de perguntar, dados os acontecimentos recentes na Rússia e na Ucrânia, onde Mignolo situaria esta última no mappa mundi Leste/Oeste da decolonialidade.
Parece razoável concluir que alguns, talvez muitos, entre os entusiastas de Mignolo e da decolonialidade, não permitirão, no final, que seu entusiasmo os leve até aos extremos perversos e francamente reacionários exibidos no PDCI. Isso é algum consolo. Mas, enquanto a proibição culturalista da teoria decolonial aos universais não for desafiada e derrubada, as raízes materiais do colonialismo e do imperialismo não podem ser rastreadas histórica e socialmente até à sua fonte última: o capitalismo. E enquanto a pré-condição para a abolição do colonialismo e do imperialismo e para a eventual libertação das suas vítimas – da nossa libertação – não for conscientemente entendida como o universal social de uma sociedade pós-capitalista e sem classes que transcendeu a dominação da forma mercadoria – o universal do comunismo, neste sentido – a “descolonialidade” permanece, na melhor das hipóteses, um exercício fútil, um desvio e um beco sem saída.
Infelizmente, pouco ou nada disto parece penetrar no pensamento daqueles que são enganados e aprisionados no jargão da decolonialidade. Seria difícil imaginar um aparelho linguístico e cognitivo melhor concebido para cegar o leitor para este plano da realidade social e histórica do que o que está exposto no PDCI – embora pareça ter pouca consciência do que obscurece.
Como Adorno escreveu em um prefácio de 1967 para The Jargon of Authenticity, aqui com um otimismo incomum:
Os estudantes de história informados pelas obras de Karl Marx, bem como pelo vasto arquivo de historiografia, ciências sociais e filosofia que elas ajudaram a gerar e moldar, aprenderam há muito tempo como combater as falácias do antiuniversalismo culturalista. Mas, para realçar, brevemente, as ideias básicas: a Europa é o berço histórico do capitalismo e da sua formação social correlativa – e não o local da sua partenogénese etnocultural puramente mítica. Essa formação social, outrora popularmente conhecida como sociedade burguesa, tenta, num primeiro momento com relativo sucesso, projetar os interesses da classe que a domina como universais, como idênticos aos interesses da sociedade como um todo. Não demorará muito, contudo, até que esta reivindicação de universalidade seja contestada a partir das fileiras da massa da humanidade oprimida e explorada pelo capitalismo, incluindo as vítimas das suas intervenções coloniais e imperiais e das violentas tomadas e invasões territoriais. E contra a da burguesia – cada vez menos críveis à medida que o capitalismo e os seus interesses de classe se tornam mais abertamente repressivos – surge a reivindicação oposta à universalidade avançada pelo socialismo revolucionário e pelo comunismo, a universalidade social e internacional de uma aspiracional sociedade sem classes.
Tudo isto pode parecer ao jargão ortodoxo da decolonialidade nada mais do que uma “restituição” eurocêntrica do privilégio ocidental e da matriz colonial de poder, mas não há nada flagrantemente “colonizador” nisso. Nem parece plausível que a simpatia mais ampla pela “descolonização” das instituições cosmopolitas contemporâneas ou mesmo por uma decolonialidade mais genérica, inspirada em Mignolo, escolhesse traçar aqui as suas linhas de batalha anti-universalistas. Apesar de todo o seu culturalismo predefinido e da sua promoção da “pluriversalidade”, a teoria decolonial de Mignolo, como regra, parece hesitante em apresentar um capitalismo auto-evidentemente global em termos estritamente culturais ou em declará-lo como uma mera “projeção epistêmica”. Exceto aqueles casos menos evidentes em que pode ser introduzido nas costas da “desocidentalização” e dos seus “estados-civilização” (ver novamente o endosso indireto de Mignolo ao “capitalismo com características chinesas”), o capitalismo como tal, em última análise e efetivamente, é deixado fora do quadro geral previsto implicitamente no PDCI e no jargão da decolonialidade. Na medida em que o capitalismo se aproxima do ponto de fuga na visão do mundo da decolonialidade, o mesmo acontece com o marxismo, entendido aqui como a teoria e a crítica mais sistemática e radical do capitalismo. E à medida que este último, como qualquer coisa que não seja uma caricatura hiper abstrata, desaparece de vista, desaparecem junto com ele quaisquer concepções rigorosas de anticapitalismo ou de uma sociedade pós-capitalista libertada como universais plenamente históricos e concretos.
Um ponto menos óbvio, mas não menos crucial, a ser aqui lembrado, contudo, é que a forma de sociedade a que o capitalismo moderno dá origem, uma formação social mediada e “sintetizada” (para usar o termo de Alfred Sohn-Rethel) pelas relações inscritas na abstração real da mercadoria ou forma-valor parece, necessariamente para os indivíduos que a compõem, ser ela mesma algo abstrato e, correspondentemente, universal em contraste com todas as formas anteriores de sociedade. Esta é uma das ramificações do fenômeno bem conhecido, mas ainda muitas vezes mal compreendido, do fetichismo (a “objetividade fantasma”) das mercadorias, descoberto pela primeira vez por Marx e cuja explicação teórica foi dada em O Capital. Uma sociedade “sintetizada” pela produção e troca de mercadorias – pelas relações sociais inscritas no valor – assume uma forma que é ao mesmo tempo abstrata e estranha, parecendo existir apenas (para usar a expressão de Marx) “nas costas” daqueles que a compõem. A Europa, inicialmente as suas zonas ocidental e norte, é novamente o local onde esta forma de sociedade emerge plenamente. Mas, ao contrário da universalidade que pode ser atribuída e reduzida ao imediatismo sociológico da ideologia burguesa e, portanto, relativamente mais facilmente falsificada, a universalidade profundamente estrutural e estranha da sociedade mediada pela mercadoria não pode ser tão fácil ou facilmente exposta ou falsificada. Na verdade, num plano ideológico mais imediato, não é um falso universal, mas antes uma forma de falsa consciência socialmente necessária. Para que a falsidade da sua aparente universalidade seja exposta à vista, as próprias relações sociais da produção de mercadorias devem entrar em crise – e ser elevadas ao nível do conhecimento consciente teórico e social.
Não valerá então a pena considerar se a proibição da decolonialidade aos universais, a sua relegação dogmática a um “eurocentrismo” pseudo- ou a-histórico, não é em si sintomática da persistente intratabilidade teórica e intelectual da universalidade socialmente falsa do capitalismo no acima mencionado plano estrutural profundo? Isto poderia pelo menos ajudar a chegar a uma explicação, ainda que hipotética, do apelo não negligenciável de Mignolo e do jargão da decolonialidade entre intelectuais e acadêmicos, muitos deles evidentemente mais jovens, de tendência progressista e identificados com, se não nativos, regiões do Sul Global pós-colonial. Sem os dados estatísticos e empíricos que estão além do escopo desta resenha e podem ser impossíveis de obter, não podemos ter certeza sobre isso. Mas nenhuma crítica à decolonialidade autorizada por Mignolo, especialmente considerando a pura banalidade de seu jargão, poderia no final ser considerada completa sem algum esforço para explicar o que é, para dizer o mínimo, o fato intrigante de sua relativa popularidade.
Consideremos, ainda, que na conjuntura que remonta à virada do milênio – a mesma que viu a publicação das principais obras de Mignolo e a sua ascensão à proeminência intelectual – os universalismos vulgares e flagrantemente ideológicos reivindicam o manto de “Ocidental” e a civilização burguesa é cada vez mais facilmente exposta a particularismos chauvinistas e, portanto, apesar das suas crescentes bases de apoio “populistas”, ainda mais facilmente desacreditadas. Pense, por exemplo, nos manifestos ao estilo de Samuel Huntington proclamando o “choque de civilizações” ou, ainda mais descaradamente e mais au courant, nos idílios distópicos da supremacia branca e muitas vezes nacionalista-cristã dos “populismos” de extrema direita de hoje. Donald Trump, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro e Marine Le Pen. Sua capacidade de conquistar números aparentemente maiores de adeptos do que teria sido o caso há trinta, vinte ou mesmo dez anos atrás vem ao custo de uma polarização social crescente que também aumenta o número dos seus antagonistas. Mas isto transparece mesmo quando a verdade social e histórica da abstração “real” da mercadoria do capitalismo e da correspondente forma de universalidade, ideologicamente mais hermética, permanece comparativamente mais resistente à divulgação consciente e secular. Isto é, as reivindicações étnicas e culturais de universalidade são mais facilmente expostas como falsas e perniciosas, mas a sua fonte subjacente – a universalidade sócio-histórica, estrutural, mas alienada do capitalismo – passa despercebida ao radar do culturalismo, por assim dizer. O efeito torna-se cada vez mais transparente, enquanto a causa, culturalmente invisível mas historicamente contingente e, portanto, não menos ideológica no final, permanece obscura.
Mas por trás da evidente e possivelmente ainda crescente popularidade de Mignolo e da decolonialidade está certamente a realidade concreta do desenvolvimento desigual e combinado, tal como experimentado no Sul Global contemporâneo e na sua diáspora metropolitana. Como o falecido Aijaz Ahmad e outros críticos marxistas que desde cedo desafiaram suas tendências de influência pós-estruturalista, centradas no discurso e des-historicizantes não deixaram de observar na ocasião, a ascensão da teoria pós-colonial, pelo menos numa primeira iteração consagrada nos trabalhos de Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha traçaram um paralelo claro com a crise e o colapso efetivo do que ainda restava dos movimentos de libertação nacional anticoloniais que tinham sido catalisados no final da Segunda Guerra Mundial. Este foi um divisor de águas que Ahmad denominou de forma memorável “o fim da era Bandung”, um ponto final histórico que ele relacionou sensatamente ao triunfo da facção islâmica anti-secular e anti-marxista na Revolução Iraniana de 1979. O colapso do bloco socialista de Leste e da própria URSS mais de uma década depois – e a crise e eventual enfraquecimento das insurreições e revoluções anti-imperialistas centro-americanas em El Salvador e na Nicarágua durante a mesma década seguinte – apenas reforçaram o culturalismo e as tendências antiuniversalistas do pós-colonialismo, sobretudo no impacto deste último no latino-americanismo e na crítica e teoria literária e cultural latino-americana.
Ao longo das cerca de três décadas que se passaram desde então, pode-se dizer que a resistência à dominação imperial e neocolonial no Sul Global foi e voltou. Testemunhe a chamada guinada à esquerda em muitas partes da América Latina, desde a ascensão do PT no Brasil, especialmente depois de 2002, e tendências eleitorais mais recentes, embora voláteis, favoráveis à esquerda parlamentar e social-democrata na Argentina, Honduras, Peru, Chile e Colômbia. Mas há poucos indícios de que o fim da era Bandung não tenha continuado a ocorrer em todo o Sul Global de forma implacável e agonizante. Nem se pode dizer que a sorte do imperialismo (sinônimo da superpotência dos EUA) ou do próprio capitalismo global tenha prosperado. Embora pontuada por atos abertos de violenta agressão imperial e de superpotências, mais significativa e dramaticamente a desastrosa invasão do Iraque pelos EUA e o fracasso abjeto de sua guerra de vinte anos no Afeganistão, a crise prolongada do anti-imperialismo do Terceiro Mundo ao longo dos últimos trinta anos não tem, apesar de uma breve onda de triunfalismo ocidental do “fim da Guerra Fria”, após o desaparecimento do socialismo estatal soviético e do bloco soviético, resultado numa recuperação correspondente para as fortunas imperiais dos antigos colonialistas e neocolonialistas do mundo. Se, no final do decênio 1979-89/91, a passagem da fase heroica de libertação nacional do Terceiro Mundo se tornou conclusiva e começou a ecoar em forma de culturalismo influenciada pela alta teoria do pós-colonialismo, alguma memória histórica e consciência da, digamos, fase revolucionária de resistência anti-imperial bem-sucedida de Cuba, iniciada em princípios da década de 1960, ou a derrota final da máquina de guerra dos EUA pelo Vietnã insurgente em 1975 persistiram claramente, mesmo entre aqueles menos céticos em relação à versão pós-colonialista de subversão “epistêmica”. E a América Central, entretanto, pareceu durante algum tempo, durante o final da década de 1970 e a década de 1980, preparada para prolongar essas vitórias, fornecendo, no mínimo, uma série de testemunhas e mártires à causa do anti-imperialismo revolucionário, desde Óscar Romero até Rigoberta Menchú.
Mas, com exceção às referências dispersas e em grande parte etnicamente motivadas ao zapatismo, é em vão que se procura nas páginas do PDCI ou de muitas outras obras de Mignolo qualquer sentido de que esta história existiu ou continua a ter importância, mesmo que apenas para diagnosticar as razões para a sua passagem – muito menos para especular sobre as perspectivas da sua redenção em um futuro ainda apenas vaga ou parcialmente discernível. O próprio Mignolo tem idade suficiente para saber o que está faltando aqui, mas para muitos de seus seguidores, isso parece muito menos provável de ser verdade. O que poderá o fim de Bandung começar a significar para aqueles descolonizadores, para quem o fato de ter realmente começado permanece, na melhor das hipóteses, nebuloso?
Pode ser que o apoio generalizado ao antirracismo e à eliminação do supremacismo branco e do preconceito eurocêntrico das instituições sociais e culturais contemporâneas expresso nos slogans e exigências do descolonialismo opere dentro dos limites desta mesma consciência histórica severamente diminuída. Isto, por si só, não subtrai nada daquilo que é certamente muitas vezes a justiça e a urgência de muitos desses slogans e campanhas. Mesmo que, por exemplo, os apelos à descolonização das galerias de arte ou do hipsterismo sejam incapazes ou não queiram ligar esses objetivos aos recentes bombardeamentos assassinos apoiados e supridos pelos EUA contra milhares de civis iemenitas, ou, mais amplamente, à pobreza catastrófica e massiva e ameaças à própria sobrevivência humana em todo o Sul Global, impostas pela divisão internacional do trabalho do capitalismo, pelo menos não se traduz automática ou necessariamente no apoio explícito de Mignolo à autocracia antiocidental. Quanto mais limitadas e localizadas forem essas campanhas e exigências — isto é, quanto menos universais — menor será o risco de se transformarem numa decolonialidade sancionada por Mignolo.
Mas uma vez que a vontade ou mesmo a tentação de teorizar entra na briga, a categoria do universal entra junto com ela. É feito por necessidade, embora aparentemente desacreditado e desfavorecido pela realidade conjuntural prevalecente. Como vimos no caso de Mignolo e do jargão da decolonialidade, a proibição dos universais, por fidelidade dogmática a qualquer condição imaginada de santidade ou alteridade cultural ou étnica, leva, na melhor das hipóteses, às autoparódias e ao grotesco do “de-”, conquistador do “pós-” e rei dos reis entre os prefixos. Como demonstra o PDCI, a proibição culturalista dos universais como eurocentristas a priori transforma-se facilmente no culto repressivo e sub-repticiamente universalizante das autocracias desocidentalizantes. Estes últimos devem ser simplesmente preferidos como os únicos aliados possíveis ou consistentes de uma decolonialidade que abjurou não só o liberalismo e o marxismo como “herdeiros do Iluminismo”, mas evidentemente a própria democracia. Mas até que ponto separa realmente uma decolonialidade fixada numa hostilidade maniqueísta para com o Ocidente dos populismos de direita e autoritários atualmente ascendentes em toda a Europa, para não dizer na América do Norte? Apesar da afirmação caracteristicamente mas irrefletidamente autoconfiante de Mignolo, muitas vezes repetida em seus escritos e em numerosas entrevistas, de que o Ocidente termina a leste de Jerusalém, é um termo notoriamente relativo e elástico, tão fácil e prontamente denunciado num determinado ponto como poderia ser invocado em outro. Orbán da Hungria ou Andrzej Duda da Polônia poderiam muito bem expressar fidelidade aos valores cristãos ocidentais supostamente sob ameaça de imigração não-europeia (não-branca) e no momento seguinte denunciar a política ocidental-liberal, ostensivamente mais tolerante à imigração da União Europeia. O “Ocidente” está a oeste de qualquer “Oriente” etnoculturalista e cripto-universal que esteja comandando a lealdade decolonial. E, mutatis mutandis, o mesmo se aplica ao Oriente – ou deveremos dizer o “de-Ocidente”? É de perguntar, dados os acontecimentos recentes na Rússia e na Ucrânia, onde Mignolo situaria esta última no mappa mundi Leste/Oeste da decolonialidade.
Parece razoável concluir que alguns, talvez muitos, entre os entusiastas de Mignolo e da decolonialidade, não permitirão, no final, que seu entusiasmo os leve até aos extremos perversos e francamente reacionários exibidos no PDCI. Isso é algum consolo. Mas, enquanto a proibição culturalista da teoria decolonial aos universais não for desafiada e derrubada, as raízes materiais do colonialismo e do imperialismo não podem ser rastreadas histórica e socialmente até à sua fonte última: o capitalismo. E enquanto a pré-condição para a abolição do colonialismo e do imperialismo e para a eventual libertação das suas vítimas – da nossa libertação – não for conscientemente entendida como o universal social de uma sociedade pós-capitalista e sem classes que transcendeu a dominação da forma mercadoria – o universal do comunismo, neste sentido – a “descolonialidade” permanece, na melhor das hipóteses, um exercício fútil, um desvio e um beco sem saída.
Infelizmente, pouco ou nada disto parece penetrar no pensamento daqueles que são enganados e aprisionados no jargão da decolonialidade. Seria difícil imaginar um aparelho linguístico e cognitivo melhor concebido para cegar o leitor para este plano da realidade social e histórica do que o que está exposto no PDCI – embora pareça ter pouca consciência do que obscurece.
Como Adorno escreveu em um prefácio de 1967 para The Jargon of Authenticity, aqui com um otimismo incomum:
Por mais irresistível que o jargão pareça na Alemanha de hoje, ele é na verdade fraco e doentio. O fato de o jargão se ter tornado uma ideologia em si mesmo destrói esta ideologia assim que este fato é reconhecido... O jargão é a forma historicamente apropriada de inverdade na Alemanha dos últimos anos. Por isso se pode descobrir uma verdade na negação determinada do jargão.
Hesita-se em atribuir ao jargão da decolonialidade algo parecido com a “forma historicamente apropriada de inverdade” na, digamos, atual América do Norte, e muito menos na América Latina, embora, como uma variação ou subconjunto do antiuniversalismo culturalista, possa de fato, ser um deles. Mas talvez a sua pura opacidade em relação a qualquer coisa que se assemelhe à realidade social ou histórica possa ser a graça salvadora negativa do jargão: a coisa mais próxima que existe da sua autonegação determinada. Isso e, para tentar ser otimista, o fato de o jargão em obras como o PDCI se tornar tão flagrante e transparente que, apesar da sua dimensão mais sinistra e abertamente reacionária, convida prontamente à paródia e ao riso.
Sobre o autor
Neil Larsen é professor emérito de literatura comparada na Universidade da Califórnia, Davis, e trabalha com marxismo, teoria crítica, literatura latino-americana e política.
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