Fernando Gaiger Silveira
Folha de S.Paulo
O economista Arminio Fraga, em coluna publicada em 30/5 nesta Folha, classifica —corretamente— a atual conjuntura como uma “tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política” e se propõe a analisá-la em sua dimensão econômica, para ao final elencar um conjunto de propostas que, se adotadas, colocariam o país “em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo”.
Nesse artigo, intitulado “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”, Fraga defende a ideia de que o Estado —por ele identificado como oneroso, ineficiente e gerador de desigualdade— representa o principal obstáculo a impedir a economia brasileira de entrar em “um círculo virtuoso de crescimento inclusivo e sustentável”.
Salvador Teixeira Werneck Vianna
Folha de S.Paulo
O economista Arminio Fraga, em coluna publicada em 30/5 nesta Folha, classifica —corretamente— a atual conjuntura como uma “tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política” e se propõe a analisá-la em sua dimensão econômica, para ao final elencar um conjunto de propostas que, se adotadas, colocariam o país “em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo”.
Convém assinalar que essa análise e essas propostas já haviam sido apresentadas pelo autor em artigo publicado na edição 115 (set./dez. de 2019) da Revista Novos Estudos, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Nesse artigo, intitulado “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”, Fraga defende a ideia de que o Estado —por ele identificado como oneroso, ineficiente e gerador de desigualdade— representa o principal obstáculo a impedir a economia brasileira de entrar em “um círculo virtuoso de crescimento inclusivo e sustentável”.
As propostas são de reformas no setor público —administrativa, previdenciária e tributária— que, combinadas, abririam espaço fiscal de oito a nove pontos percentuais do PIB. Algo como metade desses recursos se destinaria a compor um superávit primário que em poucos anos traria a dívida pública a um patamar inferior a 70% do PIB; a outra metade seria utilizada para financiar investimentos públicos em infraestrutura e nas áreas de educação e saúde.
Comparando os argumentos apresentados nos dois artigos, é inevitável —e no mínimo curioso— constatar que os impactos devastadores da pandemia de Covid-19 em nada alteraram a análise empreendida, nem o conjunto de propostas.
Este texto tem o objetivo de alertar o equívoco desse diagnóstico sobre o Estado brasileiro, que se baseia em argumentos falaciosos de senso comum e ignora uma ampla literatura empírica disponível, e os riscos desastrosos trazidos pelas propostas sugeridas. Pretendemos também discutir algumas questões sobre a desigualdade no Brasil, que quase certamente se agudizará em decorrência dos impactos sociais e econômicos da pandemia, com foco particular nos efeitos da tributação e do gasto previdenciário sobre a distribuição de renda.
Comecemos pelos equívocos da tese que considera o Estado no Brasil oneroso, ineficiente e concentrador. Dada a restrição de espaço, focaremos no último aspecto.
A noção de que as políticas públicas, em especial as de educação e seguridade social, são geradoras ou perpetuadoras da desigualdade simplifica os efeitos redistributivos dessas políticas e tem por base a análise de fatos estilizados.
São dois os erros usuais nessa abordagem: 1) não leva em conta que parcela central das transferências monetárias públicas (previdência e auxílios laborais) tem seus benefícios definidos pelas contribuições dos afiliados aos sistemas previdenciários e 2) desconsidera os efeitos redistributivos dos benefícios em espécie ("benefits in kind"), notadamente educação e saúde públicas.
Comparando os argumentos apresentados nos dois artigos, é inevitável —e no mínimo curioso— constatar que os impactos devastadores da pandemia de Covid-19 em nada alteraram a análise empreendida, nem o conjunto de propostas.
Este texto tem o objetivo de alertar o equívoco desse diagnóstico sobre o Estado brasileiro, que se baseia em argumentos falaciosos de senso comum e ignora uma ampla literatura empírica disponível, e os riscos desastrosos trazidos pelas propostas sugeridas. Pretendemos também discutir algumas questões sobre a desigualdade no Brasil, que quase certamente se agudizará em decorrência dos impactos sociais e econômicos da pandemia, com foco particular nos efeitos da tributação e do gasto previdenciário sobre a distribuição de renda.
Comecemos pelos equívocos da tese que considera o Estado no Brasil oneroso, ineficiente e concentrador. Dada a restrição de espaço, focaremos no último aspecto.
A noção de que as políticas públicas, em especial as de educação e seguridade social, são geradoras ou perpetuadoras da desigualdade simplifica os efeitos redistributivos dessas políticas e tem por base a análise de fatos estilizados.
São dois os erros usuais nessa abordagem: 1) não leva em conta que parcela central das transferências monetárias públicas (previdência e auxílios laborais) tem seus benefícios definidos pelas contribuições dos afiliados aos sistemas previdenciários e 2) desconsidera os efeitos redistributivos dos benefícios em espécie ("benefits in kind"), notadamente educação e saúde públicas.
É a desigualdade no mercado de trabalho que se reflete no acesso ao sistema previdenciário e na maneira como os benefícios impactam a desigualdade —e não o inverso. E é devido, em grande medida, à relação afiliação-contribuição-benefício que a previdência é, grosso modo, neutra em termos distributivos.
Verdade é que, ao se avaliar os dois sistemas —o regime geral (RGPS) e os regimes próprios (RPPS)—, ficam patentes os perfis redistributivo (progressivo) do primeiro e concentrador (regressivo) do segundo.
O caráter redistributivo do RGPS decorre das regras de concessão de aposentadoria por idade e para os segurados especiais; o regressivo do RPPS decorre do perfil do funcionalismo e da ausência —até recentemente— de regras que reduzam a taxa de reposição dos benefícios frente ao valor recebido quando na ativa. Vale notar que as reformas realizadas nos últimos governos pouco alteraram seus impactos redistributivos, mesmo a mais recente, que alterou profundamente as regras de concessão.
A saúde e a educação públicas, por sua vez, têm perfis de prevalência do gasto altamente progressivos e impactam significativamente a desigualdade, sendo que alguns gastos nessas áreas, particularmente em educação superior e em serviços médico-hospitalares de média e alta complexidade, cujos perfis não são redistributivos, têm se alterado com a inclusão dos mais pobres nesses gastos.
Não resta dúvida que há espaço para tornar o gasto social mais progressivo, mas onde há muito a se avançar é na tributação, uma vez que nossos tributos diretos têm em seu conjunto um efeito redistributivo apenas marginal. Segundo estimativas a partir dos microdados da POF 2017/18 (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE, o índice de Gini da renda monetária familiar per capita se reduz muito modestamente, de 0,567 para 0,557 (um ponto percentual) ao se considerar a incidência dos tributos diretos.
O ajuste draconiano proposto por Fraga é defendido com base no argumento que considera “gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB”. Dado que os gastos públicos extraordinários mobilizados para mitigar os efeitos da pandemia sobre a renda e o emprego levarão a relação dívida/PIB neste ano a níveis próximos a 100%, superávits primários de quatro a cinco pontos do PIB conduziriam a dívida a uma “trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas”.
Verdade é que, ao se avaliar os dois sistemas —o regime geral (RGPS) e os regimes próprios (RPPS)—, ficam patentes os perfis redistributivo (progressivo) do primeiro e concentrador (regressivo) do segundo.
O caráter redistributivo do RGPS decorre das regras de concessão de aposentadoria por idade e para os segurados especiais; o regressivo do RPPS decorre do perfil do funcionalismo e da ausência —até recentemente— de regras que reduzam a taxa de reposição dos benefícios frente ao valor recebido quando na ativa. Vale notar que as reformas realizadas nos últimos governos pouco alteraram seus impactos redistributivos, mesmo a mais recente, que alterou profundamente as regras de concessão.
A saúde e a educação públicas, por sua vez, têm perfis de prevalência do gasto altamente progressivos e impactam significativamente a desigualdade, sendo que alguns gastos nessas áreas, particularmente em educação superior e em serviços médico-hospitalares de média e alta complexidade, cujos perfis não são redistributivos, têm se alterado com a inclusão dos mais pobres nesses gastos.
Não resta dúvida que há espaço para tornar o gasto social mais progressivo, mas onde há muito a se avançar é na tributação, uma vez que nossos tributos diretos têm em seu conjunto um efeito redistributivo apenas marginal. Segundo estimativas a partir dos microdados da POF 2017/18 (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE, o índice de Gini da renda monetária familiar per capita se reduz muito modestamente, de 0,567 para 0,557 (um ponto percentual) ao se considerar a incidência dos tributos diretos.
O ajuste draconiano proposto por Fraga é defendido com base no argumento que considera “gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB”. Dado que os gastos públicos extraordinários mobilizados para mitigar os efeitos da pandemia sobre a renda e o emprego levarão a relação dívida/PIB neste ano a níveis próximos a 100%, superávits primários de quatro a cinco pontos do PIB conduziriam a dívida a uma “trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas”.
Sobre esse ponto, duas questões: 1) todos os países (em particular os mais afetados pela pandemia) estão expandindo fortemente seus gastos e suas dívidas, que irão se estabilizar (não se sabe quando) em patamares mais elevados; 2) à parte a inexistência de qualquer evidência empírica ou teórica que sustentem a defesa desse número taumatúrgico para o patamar da dívida, é importante frisar que antes da pandemia a trajetória da dívida estava estabilizada, e mesmo assim Fraga defendia o ajuste.
O argumento segundo o qual, no Brasil, as expansões do déficit e da dívida pública ocasionarão aumento da demanda por títulos com prazos mais curtos, com potenciais impactos inflacionários, tampouco se sustenta: não há rigorosamente nenhum foco de pressão inflacionária sobre a economia brasileira em curto e médio prazos. Na verdade, dado o atual nível da taxa básica de juros (que pode e deve cair ainda mais), o custo fiscal desse endividamento torna-se bem menor para o governo.
O superávit e a necessidade de incrementos nos investimentos nas áreas de saúde, infraestrutura e ciência e tecnologia seriam alcançados, segundo Fraga, por novas reformas previdenciárias, pela redução dos gastos com o funcionalismo público e por uma diminuição expressiva dos chamados gastos tributários.
As reformas adicionais da previdência contemplariam a adesão à reforma pelos estados e munícipios e correções nos parâmetros de concessão de pensões e do cálculo das aposentadorias de alguns grupos (policiais e militares, em especial).
Vale destacar que, no caso dos estados, os custos previdenciários estão estreitamente relacionados a dois segmentos: educação e segurança pública. Devem eles ter tratamentos preferenciais ou não? Em que medida? Isso é central na discussão dos regimes próprios dos estados.
A economia com o funcionalismo por meio da redução do prêmio salarial camufla que esse prêmio é, de fato, expressivo na esfera federal e nas carreiras jurídicas (Judiciário e Ministério público) e ligadas a gestão pública —fisco, Tesouro, Orçamento, gestão e política monetária. No caso de municípios e estados, o prêmio é bem reduzido, sendo marginal ou negativo para algumas carreiras, entre as quais as ligadas à educação e à saúde públicas.
O argumento segundo o qual, no Brasil, as expansões do déficit e da dívida pública ocasionarão aumento da demanda por títulos com prazos mais curtos, com potenciais impactos inflacionários, tampouco se sustenta: não há rigorosamente nenhum foco de pressão inflacionária sobre a economia brasileira em curto e médio prazos. Na verdade, dado o atual nível da taxa básica de juros (que pode e deve cair ainda mais), o custo fiscal desse endividamento torna-se bem menor para o governo.
O superávit e a necessidade de incrementos nos investimentos nas áreas de saúde, infraestrutura e ciência e tecnologia seriam alcançados, segundo Fraga, por novas reformas previdenciárias, pela redução dos gastos com o funcionalismo público e por uma diminuição expressiva dos chamados gastos tributários.
As reformas adicionais da previdência contemplariam a adesão à reforma pelos estados e munícipios e correções nos parâmetros de concessão de pensões e do cálculo das aposentadorias de alguns grupos (policiais e militares, em especial).
Vale destacar que, no caso dos estados, os custos previdenciários estão estreitamente relacionados a dois segmentos: educação e segurança pública. Devem eles ter tratamentos preferenciais ou não? Em que medida? Isso é central na discussão dos regimes próprios dos estados.
A economia com o funcionalismo por meio da redução do prêmio salarial camufla que esse prêmio é, de fato, expressivo na esfera federal e nas carreiras jurídicas (Judiciário e Ministério público) e ligadas a gestão pública —fisco, Tesouro, Orçamento, gestão e política monetária. No caso de municípios e estados, o prêmio é bem reduzido, sendo marginal ou negativo para algumas carreiras, entre as quais as ligadas à educação e à saúde públicas.
Nosso receio é que, pela maior força política dos de fato privilegiados, a redução seja generalizada e, com isso, afete a qualidade dos servidores dessas áreas e implique a precarização ainda maior das condições de trabalho dos servidores menos escolarizados.
Temos concordância em relação à ideia de que há o que cortar nos gastos tributários e na concessão de isenções para alguns rendimentos, notadamente os de capital. Vale notar, no entanto, que a eliminação e a redução de alguns dos benefícios fiscais vão encontrar elevada resistência por implicarem aumento da incidência tributária sobre a classe média e os pequenos e médios empresários.
Maior limite de isenção para aposentadorias e pensões, isenção integral dos proventos de aposentadorias para os contribuintes com doenças crônicas, dedução integral da base de incidência dos gastos com saúde, dedução limitada dos gastos com educação privada afetariam de modo especial as classes médias altas, o que implica alto custo político. De outra parte, os benefícios fiscais para o Simples e o MEI e a desoneração da folha salarial contam com grande resistência por parte do Legislativo e dos chamados pequenos e médios negócios.
Falta ao autor, assim, explicitar melhor suas fontes de economia, pois sem isso a economia pode até ser alcançada, mas com efeitos bastante negativos sobre o crescimento, a oferta de bens públicos e a própria desigualdade.
Uma observação final. O tema da desigualdade, em todas as suas dimensões, afirma-se como imperativo na agenda mundial. No Brasil em particular, a redução efetiva da desigualdade deve ser peça-chave de uma estratégia de desenvolvimento, e decerto tem peso o interesse pelo tema de uma figura pública de relevo como Arminio Fraga.À luz das evidências e da história, porém, é forçoso concluir que sua contribuição é de pouco proveito para o desenho e a viabilização efetiva de tal estratégia —e mesmo para a questão urgente da travessia da tempestade perfeita. Trata-se, na verdade, de uma variação da já obsoleta tese da austeridade expansionista, com um leve verniz igualitário, que difere muito pouco da agenda que ele alegadamente tenciona criticar.
Temos concordância em relação à ideia de que há o que cortar nos gastos tributários e na concessão de isenções para alguns rendimentos, notadamente os de capital. Vale notar, no entanto, que a eliminação e a redução de alguns dos benefícios fiscais vão encontrar elevada resistência por implicarem aumento da incidência tributária sobre a classe média e os pequenos e médios empresários.
Maior limite de isenção para aposentadorias e pensões, isenção integral dos proventos de aposentadorias para os contribuintes com doenças crônicas, dedução integral da base de incidência dos gastos com saúde, dedução limitada dos gastos com educação privada afetariam de modo especial as classes médias altas, o que implica alto custo político. De outra parte, os benefícios fiscais para o Simples e o MEI e a desoneração da folha salarial contam com grande resistência por parte do Legislativo e dos chamados pequenos e médios negócios.
Falta ao autor, assim, explicitar melhor suas fontes de economia, pois sem isso a economia pode até ser alcançada, mas com efeitos bastante negativos sobre o crescimento, a oferta de bens públicos e a própria desigualdade.
Uma observação final. O tema da desigualdade, em todas as suas dimensões, afirma-se como imperativo na agenda mundial. No Brasil em particular, a redução efetiva da desigualdade deve ser peça-chave de uma estratégia de desenvolvimento, e decerto tem peso o interesse pelo tema de uma figura pública de relevo como Arminio Fraga.À luz das evidências e da história, porém, é forçoso concluir que sua contribuição é de pouco proveito para o desenho e a viabilização efetiva de tal estratégia —e mesmo para a questão urgente da travessia da tempestade perfeita. Trata-se, na verdade, de uma variação da já obsoleta tese da austeridade expansionista, com um leve verniz igualitário, que difere muito pouco da agenda que ele alegadamente tenciona criticar.
Sobre os autores
Fernando Gaiger Silveira
Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor da Unieuro
Salvador Teixeira Werneck Vianna
Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV
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