12 de junho de 2020

Por que a polícia é assim?

A polícia foi criada para suprimir a militância sindical e a esquerda, antes de se tornar uma ferramenta para espancar os mais marginalizados da sociedade, especialmente os negros pobres. Devemos desmontar este instrumento brutal de controle social.

Alex Gourevitch

Jacobin

Policiais bloqueiam uma estrada no quarto dia de protestos em 29 de maio de 2020 em Minneapolis, Minnesota. Scott Olson / Getty

Tradução / A polícia está fora de controle. Eles matam pessoas desarmadas, pobres e, desproporcionalmente, negros com quase total impunidade. Eles perturbam protestos, antagonizam protestantes, prendem jornalistas, e violam liberdades civis. Eles torturam detentos e possuem locais secretos para interrogatórios. Seus sindicatos os protegem de responsabilização, exigem proteção legal especial, e enfraquecem a autoridade política de qualquer prefeito, governador, ou figura pública que os critique até mesmo levemente. Eles se recusam a coletar e compartilhar dados nacionais sobre com que frequência, quando, e contra quem eles utilizam de violência em patrulha. Eles rejeitam os requerimentos mínimos de uma sociedade democrática para saber como eles operam.

A polícia se tornou um órgão independente e organizado que se relaciona com o público mais ou menos do modo que um exército ocupante se relaciona com a população nativa. Como as coisas ficaram assim?

Um excelente trabalho tem demonstrado como a polícia preserva hierarquias raciais, em parte ao se valer da força desproporcionalmente contra minorias, especialmente pessoas negras. A polícia foi central para a teoria de W. E. B. Du Bois sobre como a classe dominante utilizou a ideologia racial para dividir trabalhadores que compartilhavam interesses econômicos. Na medida em que protestos recentes têm despertado o público para essa função de “controle social” da polícia, eles também abriram um espaço para fazer uma pergunta básica: por que existe a polícia? Quais interesses eles servem, e por que eles se tornaram tão militarizados?

Como se vê, a instituição surgiu para policiar todas as pessoas cuja liberdade a classe dominante temia. Nos Estados Unidos, como em outros países, a polícia foi criada para gerir os problemas sociais de uma sociedade capitalista ‒ pobreza, crime, e conflito de classe ‒ enquanto suprime ameaças “radicais”. Na medida em que essas ameaças se tornaram mais graves, a polícia se tornou mais militarizada. A instituição que tem sido direcionada com força e ferocidade contra pessoas negras é, hoje, a parte mais visível e violenta de um aparato multifinalístico de disciplina e controle. Uma vez que compreendemos as origens da polícia e porque eles são militarizados, podemos reconhecer porque todos os trabalhadores compartilham um interesse comum na transformação da polícia.

Essa história também é um aviso de que não haverá um completo ajuste de contas com a polícia sem o enfrentamento dos interesses sociais que se opõem à transformações sociais críticas. Há muitos, incluindo os maiores nomes corporativos, que estão prontos para proclamar a intolerável ação polícia em sua atual forma descontrolada. Mas eles nunca contestaram, e jamais vão contestar, a função elementar de controle social da polícia. Na medida em que a questão do que fazer para avançar surge no horizonte, vale a pena observar atentamente o passado para saber e estabelecer os limites dessa instituição.

Os primórdios do policiamento

A polícia é uma invenção recente. No início da república norte-americana, forças policiais formalmente constituídas eram essencialmente desconhecidas. A manutenção da ordem tomou a forma de grupos armados e patrulhas irregulares, compostos por cidadãos que temporariamente se reuniam em nome da lei para prender indivíduos específicos. As cidades não possuíam policiais regularmente designados, empregadas total e formalmente pelo Estado, com autoridade legal especial para utilizar violência contra a população.

A introdução de forças policiais foi uma resposta a um problema moderno: desordem social criada pela classe trabalhadora. Os pobres urbanos livres desestabilizavam a classe dominante norte-americana. Diferente de escravos e servos por dívida, eles não estavam sob a autoridade jurídica de nenhum indivíduo em particular, e eles possuíam liberdades civis, por vezes políticas, que podiam utilizar como achassem melhor. “As multidões das grandes cidades somam apoio ao governo puro da mesma forma que as chagas somam forças ao corpo humano”, escreveu Thomas Jefferson, que preferia a propriedade de escravos e pequenas terras em contraponto ao trabalho assalariado. Desse modo, milícias de cidadãos seriam suficientes; nenhuma polícia ou exército seria necessário.

Formada primeiramente nos Estados Unidos (e Inglaterra) entre o início e a metade do século XIX, a polícia gozou de ampla discrição para prender qualquer um que não era capaz de fornecer uma explicação socialmente aceita sobre o que fazia. Como Sam Mitrani observa em sua história sobre o Departamento de Polícia de Chicago e o Comitê da Câmara Municipal, encarregados na década de 1850 de estabelecer uma força policial moderna, a polícia deveria possuir ampla liberdade, já que “questões não criminais em particular, mas que se permitidas seguirem sem checagem em uma população densa como a nossa, resultariam bastante danosas para a cidade”. Da mesma forma em grandes cidades do Sul. Uma citação de Charleston em 1845 argumenta claramente:

Por toda a esparsa população nacional, onde gangues de negros estão restritas às plantações sob controle imediato e disciplina de seus respectivos proprietários, os escravos não eram permitidos ficarem ociosos e vagarem em busca de confusão… Os meros passeios montados ocasionais e a supervisão geral de uma patrulha podem ser suficientes. Mas, algum sistema mais enérgico e escrutinador é absolutamente necessário nas cidades, onde por conta da grande densidade populacional e proximidade dos assentamentos contíguos deve haver a necessidade de uma circunspecção mais atenta e cuidadosa.

Como Alex Vitale, autor do livro Fim do policiamento [que será publicado este ano pela autonomia Literária], apontou, patrulhas de escravos eram predominantemente “rurais e amadoras”, funcionando apenas para policiar escravos que conseguiam escapar da regular autoridade jurídica e violência física do proprietário de escravos e seus supervisores. Mas nas cidades, os escravos adquiriram liberdades civis, senão de jure, ao menos de facto, e se misturaram aos trabalhadores livres que também assustavam as elites dominantes: “Eles [escravos] podiam se reunir com terceiros, frequentar tavernas subterrâneas ilícitas e até mesmo estabelecer associações religiosas e benevolentes, frequentemente em conjunto a negros livres, o que produziu enorme terror social entre os brancos”. Essas cidades, aponta Vitale, estabeleceram forças policiais formais, algumas vezes chamadas de “guardas municipais” que eram reguladores permanentes e profissionais da “paz social”.

Mesmo no Sul pós-emancipação, o policiamento permaneceu um fenômeno primariamente urbano, já que a meação, a peonagem, e arranjos similares vinculavam pessoas negras de forma tão rigorosa à terra e seus empregadores que eles eram livres no sentido mais mínimo. A polícia não era necessária na área rural para garantir o sistema de casta racial da agricultura Jim Crow. Como o sociólogo Christopher Muller demonstrou, as taxas de policiamento e encarceramento de negros eram menores em condados que possuíam lavouras escravocratas: “Onde a elite branca proprietária de terras era capaz de reconstituir uma força de trabalho agricultora dependente, eles tinham poucos motivos para utilizar o sistema de arrendamento de condenados [convict lease system] para punir seus trabalhadores. Mas em condados urbanos e em condados onde afro-americanos tinham adquirido consideráveis propriedades de terras, homens negros enfrentaram comparativamente altas taxas de encarceramento por crimes contra a propriedade.” Por todo o país, em cidades costeiras e industriais, a polícia passou a existir para controlar a liberdade relativa da crescente massa de trabalhadores.

Nos primeiros anos, forças urbanas policiavam principalmente as atividades de lazer da classe trabalhadora. Registros de prisão contam essa história. Em 1862, ¾ das detenções em Chicago foram por conduta “embriagada e desordeira” ou por visitar casas de “desordem” ou “má fama”. Em 1878, aproximadamente metade das detenções se encaixavam nessa categoria, e mais de ⅔ das detenções na cidade podiam ser atribuídas ao “tráfico de álcool”, a primeira e duradoura guerra às drogas da América. Em Chicago, irlandeses e alemães tendiam a ser aqueles jogados nos “vagões”, mas logo outros europeus orientais, como poloneses e húngaros, também se juntaram à eles. Quem enfrentava o pior variava de acordo com as hierarquias étnicas e raciais internas às classes trabalhadoras das diferentes cidades.

Embora as primeiras forças policiais possuíssem ampla liberdade para prender os pobres, eles eram poucos, mal financiados e, em geral, minimamente equipados. Os ricos frequentemente não estavam dispostos a pagar os impostos necessários para manter uma força policial substancial, profissionalizada e totalmente equipada. Preferia-se contratar seguranças privados, mercenários e detetives individual, protegendo apenas propriedades e fábricas pessoais.

Mas quando a classe trabalhadora começou a reagir, em greves industriais, os capitalistas se encontraram sufocados. Seus capachos e assassinos pagos não estavam à altura do serviço. Então, eles recorreram à polícia.

Repressão trabalhista, militarização e profissionalização

As grandes forças policiais se tornaram mais militarizadas quando adquiriram um novo papel: dispersores de greves. O evento inaugural foi a Grande Greve de 1877, que percorreu o sistema ferroviário burguês e testemunhou brevemente os trabalhadores em toda a cidade de Saint Louis. Apesar das tropas federais serem utilizadas para reprimir a greve, os proprietários urbanos começaram a pensar mais seriamente sobre uma força policial permanente capaz de atuar rapidamente, com vigor, e em uma nova escala. Em Chicago, um grupo de cidadãos ricos levantou US$ 28 mil, que utilizaram para comprar rifles, equipamento de cavalaria e uma metralhadora para as forças públicas.

A onda de greves de 1886 abalou ainda mais as mentes da burguesia urbana. Greves agora incluíam milhares ‒ ocasionalmente dezenas de milhares ‒ de trabalhadores, algumas vezes armados, e preparados para paralisar cidades inteiras mesmo quando não estavam armados. Essa força social exigia uma escala totalmente nova de violência para repressão. Durante o fechamento da fábrica McCormick Reaper Works, 200 policiais quebraram uma parede de piquetes e atacaram a sede do sindicato próximo a planta da fábrica, agredindo os grevistas. Cyrus McCormick, um dos mais ricos e poderosos empregadores, recompensou a polícia fornecendo refeições gratuitas para os policiais que vigiassem sua rua.

Naquela primavera, “clubes de cidadãos” ou “associações de cidadãos” em várias cidades começaram a recolher dinheiro para depósitos urbanos de armamentos e forças policiais mais permanentes. Depois do incidente de Haymarket em Chicago, em que 4 policiais morreram e vários anarquistas se reuniram em uma “caça às bruxas”, o Chicago Commercial Club angariou fundos para construir um depósito de armas próximo ao centro da cidade, para que armas estivessem disponíveis para a polícia. Outras cidades fizeram o mesmo, deixando um resíduo permanente de ocupação militar em cidades militarizadas: provisões de bastante armamento para uso não contra exércitos invasores, mas trabalhadores.

Haymarket, 1886.

A famosa greve de Homestead de 1892, em que trabalhadores armados dominaram seguranças da Pinkerton, foi o golpe final. A greve provou que os seguranças privados mais bem treinados não eram páreos para ação direita nas indústrias, especialmente quando os trabalhadores estavam dispostos a trazer suas próprias armas para o piquete. Empregadores e outros indivíduos abastados concordaram que era o momento de começar a pagar impostos para financiar uma força policial bem equipada com poderes para atuar repressivamente.

O desafio era que fazer as forças policiais serem nominalmente democráticas, sob o controle de governantes eleitos, e extraídas da população que eles deveriam controlar. A resposta da classe dominante foi “profissionalização”.

Profissionalização significava transformar a polícia em um ramo da administração pública, com menor controle direto das câmaras municipais democraticamente eleitas. Também significava inculcar um senso de que eles eram um corpo político distinto da população geral. A polícia recebeu uniformes melhores e treinamento militar.

Eles também adquiriram novos poderes legais. Durante as greves das décadas de 1880 e 1890, a polícia nas cidades como Milwaukee, Buffalo, Chicago, e Akron frequentemente juramentavam detetives particulares e forças de segurança como “agentes especiais”, que gozavam de relativa imunidade de acusações criminais pelo que era considerado vigilantismo.

Por vezes, os agentes do Estado formalmente neutro eram indistinguíveis dos empregadores que defendiam. Das cidades mineradoras do Colorado às freguesias açucareiras da Louisiana e às grandes cidades do Nordeste, empregadores encontraram diversas formas de apontar a polícia na direção desejada.

Por exemplo, durante a greve dos trabalhadores ferroviários de Buffalo em 1892, o superintendente da ferrovia abandonou a greve quando o general liderando 5 mil homens da milícia estatal entrou na cidade para ajudar a polícia a reprimir a greve. Eles fecharam tavernas, apreenderam panfletos pró-greve, prenderam líderes grevistas sob falsas acusações, implementaram uma ordem policial para limpar a cidade de “vagabundos” e “criadores de problemas”, e deram suporte a um decreto municipal que “proibiu as reuniões de rua em bairros de classe trabalhadora.”

Essas práticas se estenderam pelo século XX. Durante a greve de Lawrence em 1912, empregadores e vereadores corruptos induziram a polícia a agredir e prender famílias que tentavam enviar seus filhos para fora da cidade assolada. Eles paravam as famílias na estação ferroviária, apreendiam as passagens, reuniam as crianças e juntavam famílias inteiras em caminhões que os levavam para a delegacia de Lawrence. Do massacre de Everett em 1916, nos arredores de Seattle, à greve Auto-Lite de Toledo, Ohio, em 1934, o padrão continuou.

Até a década de 1930, a polícia havia se tornado um aparato repressivo totalmente militarizado cujo papel central era reprimir a militância trabalhista e organizações de esquerda. Eles eram conhecidos por serem especialmente cruéis ao lidar com elementos de esquerda mais radicais como os Trabalhadores Industriais do Mundo (“Wobblies”). A campanha anti-Wobbly na década de 1910 foi quase uma guerra urbana, incluindo assassinato aberto, e posteriores campanhas de terror predefinidas contra comunistas e os Panteras Negras.

Em 1912, a polícia de San Diego utilizou mangueiras de bombeiros contra os Wobblies antes de trancafiando-los em “cercados” de arame ilegais, sujeitando-os a agressões letais em muitos casos. De acordo com um historiador do episódio, o “incidente provavelmente marca a primeira vez na história do Condado de San Diego em que o chefe de polícia, o xerife e os delegados federais, tinham voluntariamente trabalhado juntos no interesse da manutenção da ordem”. Nada orientou o senso comum que aquilo tinha sido uma pequena guerra de classe. E, em tons que evocam o atual momento, um comissário especial questionou: “a questão naturalmente surge, portanto, quem são os grandes criminosos; quem são os verdadeiros anarquistas; quem são os verdadeiros violadores da constituição; quem são os verdadeiros indesejáveis.”

Quando não estavam à altura da tarefa, ou quando precisavam de ajuda extra, a polícia sempre pôde contar com a Guarda Nacional e as tropas federais. Como afirma um estudo, “números substancialmente maiores de tropas foram despachadas em resposta a distúrbios trabalhistas… do que foram reunidas por qualquer outra razão até a Guerra Hispano-Americana”. Por muitas décadas “o exército estadunidense chegou perto de ser uma força policial nacional.”

Talvez tenha sido mais preciso dizer que a polícia era uma força militar doméstica.

Uma força de ocupação

A polícia tem sempre gozado de apoio de amplos setores do Estado, especialmente os setores executivo e judiciário. Josiah Lambert observa em sua história do direito à greve:

A tumultuada história das relações industriais entre 1877 e 1932 fornece um testemunho alarmante da afinidade entre repressão de greves e violações de liberdades civis… Empregadores rotineiramente recorreram à espionagem trabalhista, cláusulas de não sindicalização, demissões discricionárias, listas negras e forças armadas privadas para reprimir greves durante esse período. Governadores e presidentes declararam lei marcial, permitindo prisões em massa, suspensão de habeas corpus e de procedimentos legais, e a utilização de forças militares para extinguir greves. Os tribunais esvaziaram comunidades inteiras com medidas cautelares trabalhistas, negando direitos ao devido processo legal, liberdade de reunião, expressão e movimento.

Isso continuou após o estabelecimento de direitos para barganhas coletivas na década de 1930. Em 1968, a Guarda Nacional enfestou Memphis com tanques e baionetas para controlar a greve sanitária. Tão recente quanto a greve da fábrica Hormel de 1986 em Austin, Minnesota, a Guarda Nacional “funcionava como uma força de ocupação… tomando quaisquer medidas necessárias para manter a cidade e fábricas abertas. A Guarda isolou boa parte de Austin. O acesso às áreas residenciais e comerciais era restrito. Carros eram parados, motoristas questionados.”

Hormel strike, 1986.

Diversos elementos da classe dominante local de Austin apoiaram a polícia, sentindo que a repressão da greve importava mais que a lei. Como Peter Rachleff recorda em sua história da greve, “um juiz local até mesmo admitiu que ele estava violando direitos de Primeira Emenda dos P-9ers [sindicato grevista], mas disse que ele pensou que a proteção da ‘ordem pública precisava de tal ação… A secretaria de Educação em Austin decretou que a greve não era para ser discutida em escolas públicas… Na escola católica de ensino médio, o diretor foi demitido após alugar a quadra esportiva para o P-9 realizar um jogo de basquete beneficente”.

Embora a reação à militância trabalhista e à esquerda tenha dado a luz à polícia totalmente militarizada, outros desenvolvimentos do século XX completaram o processo de transformar a polícia nos robocops que vemos hoje.

O mais importante é os Estados Unidos se tornaram um império global enquanto, eventualmente, a militância trabalhista recuou. O imperialismo no exterior encontrou seu caminho para casa. Existem mais ex-soldados para se recrutar para a polícia, fundos de segurança massivos para distribuição, técnicas de “contra-insurgência” para domesticar trabalhadores, excedente militar para circular, e novas funções de segurança nacional e antiterrorismo para a polícia exercer. Forças policiais povoadas com veteranos, que utilizam armas desenvolvidas pelo Departamento de Defesa, e constroem alianças transnacionais com outras forças policiais autoritárias, estão ainda mais inclinadas a agirem como a ala doméstica do imperialismo norte-americano. Tendo operado fora das regras no exterior, por que segui-las em casa?

O recuo da militância trabalhista, com início nos primeiros anos da década de 1970, indicou que o ímpeto por trás da militarização da polícia diminuiu. Mas o aparato repressivo massivo que nasceu continuou existindo. Ao mesmo tempo, o Estado decidiu abordar a pobreza, o crescimento do crime, e o conflito racial do modo mais punitivo possível. Em vez de recorrer a programas de emprego, garantias de renda, e serviço de saúde universal, moradia, e educação, o que exigiria que os mais privilegiados pagassem consideravelmente mais impostos, governos federal e estaduais escolheram a opção mais repressiva e barata: prisões e polícia.

Isto nos deu o encarceramento em massa, as prisões de acordo com a “qualidade de vida”, a guerra às drogas, as forças policiais inchadas e um policiamento mais agressivo. Minorias geograficamente concentradas, especialmente pessoas negras em bairros pobres e de classe trabalhadora urbana, encaram o pior disso. Unidades policiais com capacidades crescentes para violência, cujo tamanho e poder de fogo já tiveram alguma relação com a ameaça que as greves de massa e uma esquerda organizada representavam, mas que agora atacam uma população cada vez mais desafortunada e desamparada. As classes média e alta predominantemente brancas, isoladas da brutalidade policial, permaneceram indiferentes ao passo que cidades se renderam à autoridade policial extrema e arbitrária.

Hoje, pessoas negras continuam enfrentando a pior e mais desproporcional quota deste policiamento hostil. Elas estão no pior lugar em uma ampla rede de controle social. Considere a questão mais explosiva: assassinatos por policiais. Tornamo-nos extremamente conscientes de que a polícia parece ter uma propensão especial para matar pessoas negras desarmadas. Raramente é acrescentado que a polícia quase exclusivamente mata pessoas pobres, sendo que aproximadamente metade são brancos.

Encarceramento em massa tem uma história similar. Desde o início da década de 1970 até o presente, o encarceramento quintuplicou. Pessoas negras têm desproporcionalmente maior probabilidade de serem enviadas à prisão. Mas essa disparidade profundamente injusta remonta à década de 1940 ‒ a era da migração em massa de negros para as cidades do Norte ‒ e tem permanecido essencialmente e tristemente constante.

A mudança dramática da era do encarceramento em massa tem sido em disparidades de classe. Como o sociólogo Bruce Western demonstra, do início da década de 1980 até a década de 2000, uma proporção negros-brancos em admissões prisionais permaneceu basicamente estável e não cresceu acima de 5 para 1. Durante o mesmo período, entretanto, a proporção de escolaridade ensino médio-superior entre pessoas negras cresceu menos de 5 para 1, para mais de 10 para 1. Para brancos, a disparidade cresceu ainda mais, subindo um pouco acima de 10 para 1, para muito acima de 20 para 1.

Um estudo de acompanhamento demonstra que, em um período anterior, homens negros com ensino superior ainda tinham 1.5 vezes mais chances de serem encarcerados do que brancos desistentes do ensino médio. Mas durante a era do encarceramento em massa essa proporção mudou, de tal forma que um branco desistente do ensino médio tem agora 4 vezes mais chances de ser encarcerado do que uma pessoa negra com ensino superior. Outros estudos têm demonstrado um crescimento ainda maior ‒ enquanto em 1970, alguém com baixa escolaridade tivesse 7 vezes mais chances de ser encarcerado do que alguém com alta escolaridade, em 2017, essa disparidade explodiu para 48 para 1.

Então, em um período de tempo em que a taxa de encarceramento nacional quintuplicou, disparidades raciais permaneceram quase constantes, enquanto disparidades de classe, especialmente entre aqueles sem ensino superior ou com emprego precário e aqueles com ensino superior ou renda fixa, têm disparado. A era do encarceramento em massa tem visto um período realmente arrebatador de agressão policial aos pobres.

Tudo isso nos alerta que há, ou deve haver, um corpo político amplo e trans-racial para a transformação da polícia. A polícia tende a agir com excesso especial em relação a não brancos. Mas, desde a sua origem, e de modo bastante evidente hoje, eles exercem aquele poder contra grandes faixas da população. Há uma potencial maioria com um interesse duradouro e compartilhado em forçar a sociedade a encontrar outras soluções menos punitivas, mais emancipatórias para os problemas sociais de nossa sociedade capitalista. Essa maioria terá que se forjar em um movimento unificado com poder suficiente para extrair aquelas concessões não apenas da polícia, mas daqueles interesses sociais que têm armado a polícia e que recorrerá à polícia novamente quando a situação exigir. Para extrair essas concessões, o movimento terá que, entre outras coisas, reviver e ampliar a própria militância trabalhista que a polícia passou tantas décadas reprimindo.

A polícia hoje

Nós herdamos uma força policial que recebeu enormes poderes, dinheiro e armas para reprimir os trabalhadores e a esquerda, que foram então direcionados aos pobres urbanos, particularmente pessoas negras, para ostensivamente resolver o crime e administrar a desordem. Em uma das ironias amargas da história, mesmo na medida em que o movimento trabalhista recuava, a polícia criou um dos sindicatos mais influentes politicamente e efetivos socialmente ‒ comprometido fanaticamente à sua própria cultura interna e servidores. Quando tudo isso foi alcançado, a polícia tinha se tornado sua própria força política independente.

A independência política da polícia é também isolamento político ‒ e o apoio político de ex-presidente Trump tem apenas acelerado essa tendência. Muitos capitalistas não se devotam espontaneamente e exclusivamente ao financiamento e apoio à polícia. Em vez disso, corporações desde Apple, Nike, até à Universidade de Harvard enviam mensagens públicas de apoio ao “Black Lives Matter” [Vidas Negras Importam]. Mesmo após ser saqueado, a Nordstrom emitiu um pronunciamento apoiando os protestos. Da Amazon ao Lyft, do TikTok ao Bank of America, uma lista que cresce rapidamente de grandes corporações e pequenas companhias estão repentinamente correndo para doar dinheiro para organizações de justiça racial como NAACP, Black Lives Matter, e Know Your Rights.

Esses são exercícios irrisórios de promoção de marca e demonstração de virtude. Se essas mesmas corporações enfrentassem um desafio real aos seus lucros, ativos e dotações, elas mudariam o tom. Elas ainda estão no negócio de sabotagem dos sindicatos, segregação residencial, enfraquecimento de programas de bem-estar social e resistência a novos impostos. Elas ainda querem cercar suas propriedades com armas, mesmo que isso signifique recorrer a empresas de segurança privada menores. Mas suas recentes manobras de publicidade também são um sinal dos tempos ‒ de uma percepção de que a polícia, do modo como é constituída atualmente, tornou-se um risco.

Vivemos na posteridade de uma história. A polícia está fora de controle porque se tornou um poder bem organizado demasiadamente massivo, e porque agora treina esse poder contra os elementos mais marginalizados e desempoderados da sociedade. Embora isso seja verdade há muito tempo, os corajosos protestantes recentes expuseram essa verdade para todos verem. Los Angeles anunciou agora pelo menos US$ 100 milhões em cortes para o seu departamento de polícia, distritos escolares começaram a suspender contratos com a polícia, e o mais surpreendente, a Câmara Municipal de Minneapolis anunciou planos para dissolver e reconstituir sua força policial inteira.

Talvez a polícia espere que a desordem que eles criaram ganhe novamente apoio. Provocação e escalonamento parece ser a principal jogada para assegurar sua autoridade cada vez mais frágil ‒ frágil porque sua violência não está mais a serviço da proteção de uma ordem social em risco. A propriedade, o mercado, e as corporações estão atualmente seguras mesmo sem batalhões armados vagando nas ruas para matar pessoas negras pobres e desarmadas e atropelando protestantes não-violentos com seus SUVs.

Não é surpreendente que a polícia tenha se assemelhado a uma força saqueadora com total ausência de autoridade moral. Os outros saqueadores não precisam mais dela, não dessa forma pelo menos.

Mas as suas reformas não são nossas. Somos nós que devemos estabelecer os limites.

Partes deste artigo foram retiradas de Perspectives on Politics.

Sobre o autor

Alex Gourevitch é professor associado de ciência política na Brown University e autor de From Slavery To the Cooperative Commonwealth: Labour and Republican Liberty no século XIX.

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