7 de junho de 2020

Karl Marx e a corporação

Há mais de 150 anos, quando as corporações como a conhecemos hoje ainda era uma novidade, Marx viu nela tanto a essência do capitalismo quanto uma prefiguração do socialismo: “A abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista.”

J.W. Mason

Jacobin

Um monumento de Karl Marx. Fotografia: Wikimedia Commons.

Tradução / O capital, para Marx, não é uma coisa, é uma relação social, uma forma de organizar a atividade humana. Ou, de outro ponto de vista, é um processo. É a conversão de uma soma de dinheiro em uma massa de mercadorias, que são transformadas, através de um processo de produção, em uma massa diferente de mercadorias, que são novamente convertidas em uma soma de dinheiro (espera-se que maior), permitindo que o processo comece novamente. O capital é uma soma de dinheiro que dá retorno, é uma massa de mercadorias usadas na produção e é uma forma de autoridade sobre o processo de produção, cada qual em sua vez.

Quando temos uma única empresa representativa, administrada por seu proprietário e financiada com seus próprios lucros obtidos, não há necessidade de se preocupar com a posição do “capitalista” nesse processo. Eles são os donos do dinheiro, são os administradores dos meios de produção e são os mestres do processo de produção. Aconteça o que acontecer no circuito do capital, o capitalista é quem faz acontecer.

Esta é a estrutura do Volume 1 de O Capital. Lá, o capitalista é apenas a personificação do capital. Porém, uma vez que os mercados de crédito permitem que os capitalistas usem fundos emprestados em vez de seus próprios fundos, ainda mais quando temos sociedades anônimas com gerentes assalariados encarregados do processo de produção, esses papéis não são mais desempenhados pelos mesmos indivíduos. E não é nada óbvio quais são as relações entre eles ou qual deles deve ser considerado o capitalista. Este é o assunto da Parte V do Volume 3 de O Capital, que explora a relação da propriedade do dinheiro como tal (“capital portador de juros”) com a propriedade de empresas capitalistas.

Para os propósitos presentes, a parte interessante começa no Capítulo 23. Lá, Marx introduz a distinção entre o capitalista monetário, que possui dinheiro, mas não administra o processo de produção, e o capitalista industrial, funcional ou produtivo, que controla a empresa, mas depende de dinheiro adquirido de outro lugar. “O capitalista produtivo que opera com fundos emprestados”, escreve ele, “representa o capital apenas como capital funcional”, isto é, apenas no próprio processo de produção. “Ele é a personificação do capital enquanto . . . é investido lucrativamente na indústria ou no comércio, e tais operações são realizadas com ele. . . conforme prescrito pelo ramo de indústria em questão”.

A possibilidade de conduzir uma empresa capitalista com recursos emprestados implica a divisão do excedente em duas partes – uma atribuível à gestão da empresa, a outra à propriedade como tal. “O atributo social específico do capital sob a produção capitalista – o de ser propriedade comandando a força de trabalho de outrem”, agora aparece como juros, o retorno simplesmente por possuir dinheiro. Assim, “a outra parte da mais-valia – o lucro da empresa – deve necessariamente aparecer como proveniente não do capital como tal, mas do processo de produção. . . Portanto, o capitalista industrial, distinto do proprietário do capital, [aparece] como um funcionário independente do capital. . . na verdade, como trabalhador assalariado”.

Então agora temos um conjunto de indivíduos personificando o capital no momento D, quando o capital está em sua forma mais abstrata como dinheiro, e um conjunto diferente de indivíduos personificando-o nos momentos M e P, quando o capital se cristaliza em uma determinada atividade produtiva. Um efeito dessa separação é obscurecer o vínculo entre lucro e processo de trabalho: os donos do dinheiro que recebem o lucro na forma de juros (ou dividendos) são diferentes dos gestores reais do processo de produção. Não só isso, os dois muitas vezes tem experiências opostas. Nesse sentido, a divisão entre o capitalista monetário e o capitalista industrial borra as linhas do conflito social.

Marx continua:

O juro como tal expressa… a propriedade do capital como meio de apropriação dos produtos do trabalho de outrem. Mas ele representa essa característica do capital como algo que lhe pertence fora do processo de produção… O juro representa essa característica não como diretamente contraposta ao trabalho, mas como não relacionada ao trabalho e simplesmente como uma relação de um capitalista com outro…. No juro, portanto, naquela forma específica de lucro em que o caráter antitético do capital assume uma forma independente, isso é feito de tal maneira que a antítese é completamente obliterada e abstraída. O juro é uma relação entre dois capitalistas, não entre capitalista e trabalhador.

Poderíamos ler Marx aqui como se nos estivesse alertandondo contra uma oposição fácil entre capital “produtivo” e “financeiro”, na qual podemos em sã consciência tomar o lado do primeiro. Pelo contrário, essas são apenas partes do mesmo excedente extraído de nós no processo de trabalho. É importante notar neste contexto que Marx fala de um “capitalista produtivo”, não de capital produtivo. O capitalista produtivo e o capitalista monetário são, por assim dizer, dois corpos humanos que o mesmo capital ocupa de uma só vez.

Uma vez que os piratas queimaram seus campos, confiscaram suas posses e levaram seus parentes, não deveria lhe importar como eles dividem o saque: acho que esta é uma leitura válida do argumento de Marx aqui. Ou, como ele mesmo diz: “Se o capitalista é o proprietário do capital sobre o qual opera, ele embolsa toda a mais-valia. É absolutamente irrelevante para o trabalhador se o capitalista faz isso ou se ele tem que pagar uma parte do capital a uma terceira pessoa como sua proprietária legal.”

Mas enquanto o desenvolvimento do capital portador de juros obscurece as verdadeiras relações de produção em um sentido, esclareça-as em outro. Ele separa os direitos exercidos pela propriedade como tal dos direitos devidos ao trabalho específico realizado pelo capitalista dentro da empresa. Com o proprietário-gerente, esses dois se misturam. (Isso ainda é um grande problema para as contas nacionais.) Agora, a parte do lucro aparente que era, na verdade, um pagamento pelo trabalho do capitalista aparece de forma distinta como “salário de superintendência”.

A análise de Marx aqui parece um bom ponto de partida para discussões sobre a posição dos gerentes nas economias modernas.

As funções específicas que o capitalista como tal deve desempenhar. . . [com o desenvolvimento do crédito] são apresentadas como meras funções do trabalho. Ele cria mais-valia não porque trabalha como capitalista, mas porque também trabalha, independentemente de sua capacidade de capitalista. Essa porção de mais-valia não é mais mais-valia, mas seu oposto, um equivalente do trabalho realizado. . . . o próprio processo de exploração aparece como um simples processo de trabalho no qual o capitalista em funcionamento apenas realiza um tipo de trabalho diferente do trabalhador.

Como Marx posteriormente enfatiza, uma consequência do desenvolvimento da administração como uma categoria distinta de trabalho é que os lucros ainda recebidos pelos proprietários não podem mais ser justificados como compensação pela organização do processo de produção. Mas e os próprios gestores, como devemos pensar sobre eles? Eles são realmente trabalhadores ou capitalistas? Bem, ambos – sua posição é ambígua. Por um lado, eles estão desempenhando uma função de coordenação social que qualquer divisão estendida do trabalho exigirá. Mas, por outro lado, eles são os representantes da classe capitalista no processo de trabalho coercitivo e adversário que é específico do capitalismo.

Vale a pena citar a discussão prolongadamente:

O trabalho de supervisão e gestão é naturalmente exigido onde quer que o processo direto de produção assuma a forma de um processo social combinado, e não do trabalho isolado de produtores independentes. No entanto, tem uma dupla natureza. Por um lado, todo trabalho em que muitos indivíduos cooperam requer necessariamente uma vontade dominante para coordenar e unificar o processo. . . muito parecido com o de um maestro de orquestra. Este é um trabalho produtivo, que deve ser realizado em todos os modos de produção combinados.

Por outro lado, o trabalho de supervisão surge necessariamente em todos os modos de produção a partir da antítese entre o trabalhador, como produtor direto, e o proprietário dos meios de produção. Quanto maior esse antagonismo, maior o papel desempenhado pela supervisão. Por isso, atinge seu pico no sistema escravagista. Mas é indispensável também no modo de produção capitalista, pois o processo de produção nele é simultaneamente um processo pelo qual o capitalista consome força de trabalho. Assim como nos estados despóticos, a supervisão e a interferência geral do governo envolvem tanto o desempenho de atividades comuns decorrentes da natureza de todas as comunidades, quanto as funções específicas decorrentes da antítese entre o governo e a massa do povo.

Em um desses apartes ácidos que o tornam tão estimulante para ler, Marx cita um defensor americano da escravidão explicando que, como os escravos não estavam dispostos a fazer o trabalho nas plantações por conta própria, era justo compensar os senhores pelo esforço necessário para compeli-los. trabalhar. Nesse sentido, não importa que os Patrões estejam realizando trabalho produtivo. Suas alegações são apenas uma versão dos niilistas alemães: “é justo que você me dê o que eu quero, já que me esforcei tanto para tirá-lo de você”. Ou o argumento de Dinesh D’Souza de que a igualdade de oportunidades seria injusta com ele, já que ele fez um grande esforço para dar aos filhos uma vantagem sobre os outros.

Mas, novamente, o capitalista industrial não é apenas um escravocrata. Eles têm uma função essencial de coordenação, ainda que exercida pelas mesmas pessoas e nas mesmas atividades, como a coercitiva disciplina do trabalho que extrai maior esforço dos trabalhadores e os priva de sua autonomia. A maneira como esses dois lados do processo de trabalho se desenvolvem juntos é uma das principais contribuições do trabalho marxista e influenciado pelo marxismo, eu penso em – Braverman, Noble, Marglin, Barbara Garson. Parece-me que, por mais paradoxal que possa parecer, é esse papel positivo dos gerentes que é, em última análise, o argumento mais forte contra o capitalismo. Porque o desenvolvimento da gestão profissional mina fatalmente a suposta conexão entre a função econômica desempenhada pelos capitalistas e a forma econômica de propriedade.

Marx faz exatamente este argumento:

O modo de produção capitalista trouxe as coisas a um ponto em que o trabalho de supervisão, totalmente divorciado da propriedade do capital, é sempre facilmente obtido. Tornou-se, portanto, inútil para o capitalista realizá-lo ele mesmo. Um regente de orquestra não precisa possuir os instrumentos de sua orquestra, nem está dentro do escopo de suas funções como regente ter algo a ver com os “salários” dos outros músicos. As fábricas cooperativas fornecem a prova de que o capitalista não se tornou menos redundante como funcionário da produção. . . Na medida em que o trabalho do capitalista não. . .limitar-se unicamente à função de exploração do trabalho alheio; na medida em que se origina, portanto, da forma social do processo de trabalho, da combinação e da cooperação de muitos para um resultado comum, é . . . independente do capital.

A conexão que Marx faz entre empresas de capital conjunto (o que hoje chamamos de corporações) e empresas cooperativas é para mim uma das partes mais interessantes de toda essa seção. Em ambos, o crítico é que o trabalho de gestão, ou coordenação, é apenas um tipo de trabalho entre outros, e não tem conexão necessária com reivindicações de propriedade.

Os salários da administração, tanto para o gerente comercial quanto para o industrial, estão completamente isolados dos lucros da empresa nas fábricas cooperativas de trabalhadores, bem como nas sociedades por ações capitalistas… As sociedades anônimas em geral — desenvolvidas com o sistema de crédito — têm uma tendência cada vez maior de separar esse trabalho de gestão em função da propriedade do capital… assim como o desenvolvimento da sociedade burguesa assistiu a uma separação das funções de juízes e administradores da propriedade da terra, de quem eram atributos nos tempos feudais. Uma vez que, por um lado… o próprio capital-dinheiro assume um caráter social com o adiantamento do crédito, sendo concentrado nos bancos e emprestado por eles em vez de seus proprietários originais, e já que, por outro lado, o mero administrador que não tem nenhum título sobre o capital… desempenha todas as funções reais pertencentes ao capitalista em funcionamento como tal, apenas o funcionário permanece e o capitalista desaparece como supérfluo do processo de produção.

Essa, para mim, é uma das maneiras centrais pelas quais podemos ver o capitalismo como um passo necessário no caminho para o socialismo. Somente sob o capitalismo se desenvolveu a indústria em grande escala; somente o ácido do mercado foi capaz de romper os vínculos das pequenas unidades produtivas familiares e liberar suas peças constituintes para recombinação em escala muito maior. Assim, a única forma em que a organização de grandes empresas nos é familiar é como empresas capitalistas. (Pelo menos, esse é o argumento de Marx. Provavelmente ele subestima a capacidade dos Estados de organizar a produção em grande escala.) Mas só porque grandes empresas industriais e capitalismo andam juntos historicamente, isso não quer dizer que o capitalismo seja o único cenário institucional em que elas podem existir ou que as condições exigidas para seu desenvolvimento são exigidas para sua existência continuada.

De fato, à medida que as empresas capitalistas se desenvolvem, sua organização interna torna-se progressivamente menos parecida com o mercado. Os mercados existem apenas nas superfícies, as membranas externas, das empresas, que internamente são organizadas em princípios bem diferentes; e à medida que a escala das empresas cresce, cada vez menos vida econômica ocorre nessas superfícies. Assim, enquanto o capital continua, nominalmente, a ser propriedade privada, as relações de propriedade desempenham um papel cada vez menor na organização concreta da produção. O “mero gerente”, como diz Marx, “não tem nenhum título sobre o capital”; no entanto, ele ou ela “desempenha todas as funções reais” do capitalista.

Quando Marx estava escrevendo sobre isso na década de 1870, ele achava que a tendência à separação entre propriedade e controle estava claramente estabelecida, mesmo que a maioria das empresas capitalistas da época ainda fossem gerenciadas diretamente por seus proprietários.

Com o desenvolvimento da cooperação por parte dos trabalhadores e das empresas de capital aberto por parte da burguesia, até mesmo o último pretexto para a confusão entre lucro da empresa e salário da administração foi removido e o lucro apareceu também na prática, como inegavelmente aparecia em teoria, como mera mais-valia, um valor pelo qual nenhum equivalente foi pago.

O argumento chega até esse ponto no Capítulo 23.

Os próximos capítulos concentram-se no outro lado da questão, o capital que rende juros — isto é, o capital que aparece a seus proprietários simplesmente como dinheiro, sem estar incorporado em nenhum processo de produção. O capítulo 24 é um ataque aos escritores que reduzem ambos ao capital monetário e imaginam que a acumulação de capital é apenas um exemplo do poder dos juros compostos. (Entre outras coisas, este capítulo antecipa os pontos essenciais das críticas da esquerda a Piketty por pessoas como Galbraith e Varoufakis, e por mim.) O Capítulo 26 ataca a confusão oposta – o tratamento do dinheiro apenas como capital em geral e do juro como simplesmente um reflexo da produtividade física do capital e não um fenômeno especificamente monetário. Esta é a ortodoxia de hoje, representada para Marx por Lord Overstone. O Capítulo 25 antecipa Minsky sobre a elasticidade das finanças e se alinha aos teóricos do crédito-moeda como Thornton e escritores da escola bancária como Tooke e Fullarton, contra os teóricos da quantidade e a escola da moeda. A dívida de Marx com Ricardo é bem conhecida, mas é menos reconhecido o quanto ele aprendeu com esse grupo de escritores – a melhor discussão que conheço é a de Arie Arnon. Quando Tooke morreu, Marx escreveu a Engels que ele havia sido “o último economista inglês de qualquer valor”.

Marx retorna ao capitalista industrial ou funcional no Capítulo 27, que se concentra nas sociedades anônimas. Marx credita às sociedades por ações “uma enorme expansão da escala de produção e das empresas, que era impossível para os capitais individuais”. E é crítico que essas novas empresas sejam públicas em nome e substância (o “aberto” em “corporações de capital aberto” é significativo).

O desenvolvimento das sociedades anônimas continua a transformação sociológica que começa com o desenvolvimento do capital que rende juros e a capacidade de operar com fundos emprestados – ou seja, a

transformação do capitalista em funcionamento em mero gerente, administrador do capital alheio, e do proprietário de capital em mero proprietário, mero capitalista monetário. Mesmo que os dividendos que recebem incluam os juros e os lucros da empresa. . . este lucro total passa a ser recebido apenas sob a forma de juros, isto é, como mera compensação pela propriedade de capital que agora está inteiramente divorciada da função no processo real de reprodução, assim como esta função na pessoa do gerente é divorciada da propriedade de capital. . . . Este resultado do desenvolvimento final da produção capitalista é uma fase de transição necessária para a reconversão do capital em propriedade dos produtores, embora não mais como propriedade privada dos produtores individuais, mas sim . . . como propriedade social absoluta. . . .a sociedade anônima é uma transição para a conversão de todas as funções do processo de reprodução que ainda permanecem vinculadas à propriedade capitalista, em meras funções de produtores associados.

Em resumo, a sociedade anônima “é a abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista”.

Colaboradores

J.W. Mason é professor assistente de Economia na John Jay College, na Universidade da Cidade de New York e pesquisador no Roosevelt Institute. Publica o blog The Slack Wire.

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