O liberalismo é frequentemente apresentado como um conjunto vago de princípios como razão, liberdade e o estado de direito. Mas, ao longo de quase dois séculos, a The Economist forneceu uma janela para a vertente dominante do liberalismo em ação - com a conquista imperial e regimes não democráticos defendidos em nome da defesa do “livre comércio”.
Isso é central.
Desde o início, a Economist tem suas velas amarradas ao principal Estado capitalista da Terra. Isso se reflete não apenas na cobertura, com um impulso implacável por trazer a economia mundial em foco para seus leitores, por meio da coleta, medição e tabulação (muitas vezes pela primeira vez) de vários preços, dados de comércio e índices de ações, relatórios empresariais, boletins de notícias e assim por diante.
É também uma função da localização de seus editores dentro desse sistema mundial em expansão – o vaivém entre o centro econômico de Londres, os corredores político-administrativos de Westminster e Whitehall e os impérios formais e informais.
James Wilson, o fabricante de chapéus que virou economista político e fundou a Economist, a usou como um trampolim para a alta política e finanças: em quatro anos ele já estava no parlamento e desfrutando de um rápido avanço – tomando parte no Conselho da Índia, no Tesouro e, em seguida, na Junta comercial.
Em 1859, ele foi enviado para a Índia como o primeiro “Chanceler do Tesouro Indiano”, com a tarefa de conceber um novo estado fiscal para o governo do Raj britânico na esteira da rebelião indiana (incluindo garantias estatais sobre formas de investimento interno); ao mesmo tempo, o Chartered Bank, do qual ele foi um dos co-fundadores em Londres em 1852, estava abrindo filiais por toda a Ásia para lucrar com o ópio indiano que era derramado sobre a China.
Uma entrevista com
Alexander Zevin
Alexander Zevin
Entrevistado por
Daniel Zamora e Anton Jager
Daniel Zamora e Anton Jager
No final da década de 1980, a The Economist era a campeã - na verdade, se definia como o “guia geral” - para a globalização neoliberal. |
Lida de maneira meticulosa por Karl Marx, Franklin Roosevelt e Bill Gates, a Economist é hoje uma das revistas mais poderosas da ordem mundial liberal. Criada em meio ao laissez-faire do século XIX na Grã-Bretanha, a revista que para Vladimir Lênin “fala pelos milionários britânicos” em muitos aspectos encarna a vertente dominante do liberalismo.
Essa vertente não é o liberalismo sobre o qual você lê nos livros introdutórios na universidade, mas aquele que defende o livre-comércio de maneira implacável ao redor de todo o mundo – através dos canos das armas de fogo, se necessário. Em seu recente livro Liberalism at Large: The World According to the Economist (“Liberalismo à Solta: O Mundo Segundo a Economist”), Alexander Zevin usa a icônica revista como um prisma para compreender as forças materiais e ideológicas que moldaram a visão de mundo do liberalismo moderno.
Daniel Zamora e Anton Jäger, da Jacobin, conversaram com Zevin sobre as raízes históricas das ideias da Economist, os vínculos peculiares da revista com o sistema financeiro britânico e as ações políticas concretas que constituem o “liberalismo realmente existente”, para além de seus supostos ideais.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Você usa a história da revista Economist como um prisma para investigar o que você chama de “liberalismo realmente existente”. Como você distingue essa vertente do liberalismo de abordagens mais convencionais?
Muito já foi escrito sobre o liberalismo, mas bem pouco a partir de uma perspectiva genuinamente histórica – e ainda menos de maneira global e comparativa. O relato padrão tende a tratar o liberalismo como um corpo de pensamento sem limites, vagamente coerente em torno de alguns princípios abstratos de liberdade, encontrados neste ou naquele grande pensador.
John Locke e Adam Smith são pontos de partida populares. A partir daí, todo tipo de ideias são atribuídas ao liberalismo – razão, tolerância, individualismo, secularismo, pluralismo, democracia, igualdade – de maneiras que vão contra aquilo que tantos liberais realmente pensaram e fizeram.
Minha abordagem é diferente. Essa história não começa com a teoria política do século XVII ou com o pensamento econômico do século XVIII, mas na era napoleônica, quando atores políticos começaram a se chamar de liberais na Espanha e na França.
O termo, então, migra para a Grã-Bretanha, onde passa por um desenvolvimento duplo, mas único: as ideias políticas de império da lei e de liberdades civis se fundem com as máximas econômicas do livre-comércio e de livre-mercado nas teorias de “governo limitado”. O liberalismo surge como uma força organizacional-ideológica mais potente do que em qualquer outro lugar da Europa.
A revista The Economist foi fundada por volta desse ponto, em 1843. Ao contrário de algum pensador ou tema específico, a publicação oferece um registro contínuo do liberalismo em ação, conforme enfrenta três desafios: demandas crescentes dos trabalhadores por democracia, a ascensão das altas finanças no interior da ordem global capitalista e a expansão dos impérios europeus. Meu tratado histórico gira em torno dessas questões.
Assim, meu livro rejeita as abordagens mais soltas com relação às ideias liberais – ao mesmo tempo em que mantém flexibilidade, permitindo incluir as maneiras como essas ideias se transformaram, se recombinaram e reagiram a outras tradições e argumentos. A Economist não é a única ou a mais pura expressão do liberalismo – mas argumento que por 175 anos ela tem sido a expressão dominante, com o maior impacto global.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Em certo sentido, você parece explicar a representatividade única da Economist em termos do lugar específico que a Inglaterra desempenhou na história do liberalismo.
Alexander Zevin
Daniel Zamora e Anton Jäger, da Jacobin, conversaram com Zevin sobre as raízes históricas das ideias da Economist, os vínculos peculiares da revista com o sistema financeiro britânico e as ações políticas concretas que constituem o “liberalismo realmente existente”, para além de seus supostos ideais.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Você usa a história da revista Economist como um prisma para investigar o que você chama de “liberalismo realmente existente”. Como você distingue essa vertente do liberalismo de abordagens mais convencionais?
Alexander Zevin
Muito já foi escrito sobre o liberalismo, mas bem pouco a partir de uma perspectiva genuinamente histórica – e ainda menos de maneira global e comparativa. O relato padrão tende a tratar o liberalismo como um corpo de pensamento sem limites, vagamente coerente em torno de alguns princípios abstratos de liberdade, encontrados neste ou naquele grande pensador.
John Locke e Adam Smith são pontos de partida populares. A partir daí, todo tipo de ideias são atribuídas ao liberalismo – razão, tolerância, individualismo, secularismo, pluralismo, democracia, igualdade – de maneiras que vão contra aquilo que tantos liberais realmente pensaram e fizeram.
Minha abordagem é diferente. Essa história não começa com a teoria política do século XVII ou com o pensamento econômico do século XVIII, mas na era napoleônica, quando atores políticos começaram a se chamar de liberais na Espanha e na França.
O termo, então, migra para a Grã-Bretanha, onde passa por um desenvolvimento duplo, mas único: as ideias políticas de império da lei e de liberdades civis se fundem com as máximas econômicas do livre-comércio e de livre-mercado nas teorias de “governo limitado”. O liberalismo surge como uma força organizacional-ideológica mais potente do que em qualquer outro lugar da Europa.
A revista The Economist foi fundada por volta desse ponto, em 1843. Ao contrário de algum pensador ou tema específico, a publicação oferece um registro contínuo do liberalismo em ação, conforme enfrenta três desafios: demandas crescentes dos trabalhadores por democracia, a ascensão das altas finanças no interior da ordem global capitalista e a expansão dos impérios europeus. Meu tratado histórico gira em torno dessas questões.
Assim, meu livro rejeita as abordagens mais soltas com relação às ideias liberais – ao mesmo tempo em que mantém flexibilidade, permitindo incluir as maneiras como essas ideias se transformaram, se recombinaram e reagiram a outras tradições e argumentos. A Economist não é a única ou a mais pura expressão do liberalismo – mas argumento que por 175 anos ela tem sido a expressão dominante, com o maior impacto global.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Em certo sentido, você parece explicar a representatividade única da Economist em termos do lugar específico que a Inglaterra desempenhou na história do liberalismo.
Alexander Zevin
Isso é central.
Desde o início, a Economist tem suas velas amarradas ao principal Estado capitalista da Terra. Isso se reflete não apenas na cobertura, com um impulso implacável por trazer a economia mundial em foco para seus leitores, por meio da coleta, medição e tabulação (muitas vezes pela primeira vez) de vários preços, dados de comércio e índices de ações, relatórios empresariais, boletins de notícias e assim por diante.
É também uma função da localização de seus editores dentro desse sistema mundial em expansão – o vaivém entre o centro econômico de Londres, os corredores político-administrativos de Westminster e Whitehall e os impérios formais e informais.
James Wilson, o fabricante de chapéus que virou economista político e fundou a Economist, a usou como um trampolim para a alta política e finanças: em quatro anos ele já estava no parlamento e desfrutando de um rápido avanço – tomando parte no Conselho da Índia, no Tesouro e, em seguida, na Junta comercial.
Em 1859, ele foi enviado para a Índia como o primeiro “Chanceler do Tesouro Indiano”, com a tarefa de conceber um novo estado fiscal para o governo do Raj britânico na esteira da rebelião indiana (incluindo garantias estatais sobre formas de investimento interno); ao mesmo tempo, o Chartered Bank, do qual ele foi um dos co-fundadores em Londres em 1852, estava abrindo filiais por toda a Ásia para lucrar com o ópio indiano que era derramado sobre a China.
Como mostro no livro, o crescente poder do capital financeiro não só foi importante de todas as maneiras que os historiadores econômicos têm discutido – mas também como a base de toda uma política liberal, literalmente uma visão de mundo. Walter Bagehot, o famoso editor-banqueiro, escreveu sobre as “somas incalculáveis” que Londres estava enviando para o exterior na década de 1870. Bagehot tornou o negócio da Economist a análise dessa nova realidade político-econômica e a prescrição das políticas públicas mais adequadas para sustentá-la e aprofundá-la no país e no exterior.
Essa orientação é nítida em sua teorização sobre o papel dos bancos centrais na política liberal – como credores de última instância, independentes de “intromissões”, com o dever de colocar sob controle as crises gigantescas que esse capitalismo globalizante já estava gerando.
Ela também está presente em suas análises dos melhores sistemas constitucionais liberais para sociedades passando por essas mudanças – na Grã-Bretanha, na América, na França e além. A necessidade de inspirar a confiança dos investidores levou Bagehot a favorecer poderes executivos fortes e direitos eleitorais restritos, com variações locais para se adequar ao que ele chamava de “caráter nacional”.
Essa maneira de ver o mundo é tão lugar comum hoje que a consideramos algo natural. A política parece ocorrer dentro dos limites estabelecidos pela mobilidade de capital. Quando a Argentina passa por dificuldades para pagar os detentores de seus títulos; quando o Federal Reserve dos EUA aumenta as taxas de juros; quando uma coalizão “populista” assume o gabinete na Itália – certas perguntas se seguem, quase que automaticamente.
Que reformas fará Buenos Aires? Como o fluxo de capitais saindo dos mercados emergentes afetará seu crescimento e estabilidade? Os planos de gastos italianos são compatíveis com os crescentes spreads dos títulos italianos? As respostas a essas perguntas são políticas. Elas foram apresentadas dessa forma pela primeira vez na revista Economist.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Algo fascinante, aqui, são os laços estreitos que a própria Economist teve com o laissez-faire moderno.
Alexander Zevin
Essa orientação é nítida em sua teorização sobre o papel dos bancos centrais na política liberal – como credores de última instância, independentes de “intromissões”, com o dever de colocar sob controle as crises gigantescas que esse capitalismo globalizante já estava gerando.
Ela também está presente em suas análises dos melhores sistemas constitucionais liberais para sociedades passando por essas mudanças – na Grã-Bretanha, na América, na França e além. A necessidade de inspirar a confiança dos investidores levou Bagehot a favorecer poderes executivos fortes e direitos eleitorais restritos, com variações locais para se adequar ao que ele chamava de “caráter nacional”.
Essa maneira de ver o mundo é tão lugar comum hoje que a consideramos algo natural. A política parece ocorrer dentro dos limites estabelecidos pela mobilidade de capital. Quando a Argentina passa por dificuldades para pagar os detentores de seus títulos; quando o Federal Reserve dos EUA aumenta as taxas de juros; quando uma coalizão “populista” assume o gabinete na Itália – certas perguntas se seguem, quase que automaticamente.
Que reformas fará Buenos Aires? Como o fluxo de capitais saindo dos mercados emergentes afetará seu crescimento e estabilidade? Os planos de gastos italianos são compatíveis com os crescentes spreads dos títulos italianos? As respostas a essas perguntas são políticas. Elas foram apresentadas dessa forma pela primeira vez na revista Economist.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Algo fascinante, aqui, são os laços estreitos que a própria Economist teve com o laissez-faire moderno.
Alexander Zevin
Não é exagero dizer que a Economist incorporava o exemplo teoricamente mais sofisticado – e implacável – do pensamento inicial do laissez-faire. Tento reconstruir o aspecto desse corpo de pensamento, o contextualizando e os escritores que o adotaram nas páginas da Economist.
Isso é importante, já que muitos relatos minimizam ou ignoram esse elemento na história do liberalismo, e não é difícil ver o porquê. Aí estão os vilões que espreitam nas notas de rodapé de O Capital. Tento deixá-los falar, sem dizer ao leitor para que fique horrorizado.
A defesa que a Economist faz do livre-comércio é nitidamente milenarista. Wilson argumentava que o livre-comércio absoluto resultaria no fim do próprio ciclo comercial [de crescimentos e crises]: dentro do país, só poderia gerar as curas para “a ignorância, a depravação, a imoralidade e a falta de religião”, além de por um fim “à carência, ao pauperismo e à fome”; no exterior, faria “mais do que qualquer outro agente visível para estender a civilização... sim, para extinguir a própria escravidão.”
Nesse registro orientado à providência, a Economist se opunha a quase todas as “interferências” nas operações do mercado como transgressões contra o divino. Embora o periódico certamente tenha atacado os protecionistas no Parlamento comprometidos com as Leis do Milho ou as Leis de Navegação, foi muito mais veemente ao denunciar outro grupo: políticos e autores que, agindo por benevolência, filantropia ou caridade – todas as três palavras se tornaram insultos nas páginas da Economist – tentavam amenizar o sofrimento das classes inferiores.
Boas ações teriam consequências imprevistas, quase sempre na forma de algum mal. Isso seria tão verdadeiro para o caso do Estado empreendendo uma tarefa “mais adequada a Deus do que ao homem” quando limitava a jornada de trabalho, quanto para indivíduos e grupos privados.
Com base nisso, a Economist se opôs a quase todos os projetos de reforma legislativa – projetos como o investimento na criação da ferrovia transcontinental nos EUA, os projetos de regulação das condições de trabalho nas fábricas, a lei das 10 horas de trabalho diário e a criação de um Conselho de Saúde (“existe um mal pior do que tifo, cólera ou água impura, que é a imbecilidade mental”).
A revista condenou não apenas o clamor por educação pública, mas mesmo por escolas de caridade; não apenas tentativas oficiais de embargo de bens produzidos por escravos, mas também tentativas por parte dos abolicionistas (aqueles “verdadeiros grandes filantropos”); e rejeitou aquilo que agora consideraríamos leis básicas para empresas, bancos, patentes e direitos autorais. A revista de Wilson desempenhou um papel fundamental nas definições da resposta oficial à Grande Fome na Irlanda, com consequências previsivelmente devastadoras.
Daniel Zamora e Anton Jäger
É famosa a afirmação de Lenin de que um jornal também seria uma forma de organizar e unificar a visão de mundo da classe trabalhadora. Em certo sentido, a Economist não é apenas o Pravda para a classe dominante anglo-americana? A personificação perfeita da forma dominante de liberalismo?
Alexander Zevin
Não pode ser por acaso que tantos marxistas leram – e vários até escreveram para – a Economist. Às vezes, pode parecer que estamos lendo Marx por um espelho distorcido de parque de diversões. De fato, o que Bagehot elogiava como sendo a genialidade do sistema político inglês – que um gabinete, semelhante a um “conselho de diretores”, governava a nação, por trás de uma tela de pompa real – não é diferente da descrição de Marx do governo parlamentar como sendo o comitê executivo da burguesia. Evidentemente, os julgamentos são invertidos.
O próprio Marx estudava cuidadosamente a Economist – tanto para obter informações sobre as peripécias do capital global quanto para compreender a visão de mundo de seus administradores. Marx a chamava de a tribuna da “aristocracia das finanças” – e portanto, uma fração poderosa da classe dominante – e ele a usou em 18 de Brumário de Luis Bonaparte para mostrar as maneiras iliberais com que os liberais estavam reagindo à ameaça da democracia popular, aumentando os preços dos fundos públicos aos primeiros sinais de um Golpe de Estado que esmagaria a Assembleia Nacional francesa. Lenin também lia a Economist, e se referia a ela como um jornal que – muito simplesmente – “fala pelos milionários britânicos”.
Certamente há paralelos com o Pravda, mas também existem diferenças. A Economist teve de ser (de um modo geral) um pouco mais franca com sua rica claque de leitores. O marxista polonês Daniel Singer – um incomum correspondente da Economist em Paris em 1968 – uma vez afirmou que antes da explosão de circulação durante a década de 1980, você podia ler a Economist para “ouvir a burguesia falando consigo mesma, e ela podia falar de maneira bem aberta”.
Em parte, penso que isso deve refletir a diferença entre a tarefa de organizar a visão de mundo de uma classe dominante que já é para si mesma, com uma classe cuja existência ainda não encontrou uma expressão política coerente; entre um jornal cuja missão é mobilizar para a derrubada do capitalismo, e outro cuja intenção de operá-lo sem problemas. Será que os socialistas poderiam algum dia produzir uma revista como a Economist? Seria um sinal de força se eles fossem capazes de fazer isso?
Daniel Zamora e Anton Jäger
Uma parte importante de seu argumento é sobre a relação entre liberalismo e guerra. Uma história bastante difundida associa o livre-comércio à paz, e a União Europeia a adotou como seu credo. Você, no entanto, nos conta outra história, onde os liberais promovem o livre-mercado “através do cano das armas de fogo”.
Alexander Zevin
Essa é uma das principais descobertas do livro. Não que existia o imperialismo liberal, o que já é bem conhecido, pelo menos para os pesquisadores de mentalidade crítica. O que escavei foi quando, onde e como o imperialismo se tornou tão central para a vertente dominante do liberalismo. Um momento-chave – um ponto de inflexão – foi uma briga épica entre James Wilson, o fundador da Economist, e dois de seus camaradas liberais, que começou durante a Guerra da Crimeia.
Richard Cobden e John Bright são os dois nomes mais famosos associados à luta pelo livre comércio na Grã-Bretanha – fabricantes de têxteis e membros importantes da Liga da Lei Anti-Milho.
O lema de Cobden (e da Liga) era “Livre-comércio, Paz e Boa Vontade Entre as Nações”, e os próprios escritos dele enfatizavam tanto a prosperidade que o livre-comércio unilateral traria quanto sua tendência a erradicar a guerra. (Inscrito no Free Trade Hall em Manchester, esse lema encantou o presidente dos EUA Woodrow Wilson quando ele fez um discurso lá em 1919 a caminho de Paris; o prédio é hoje um hotel Radisson). Cobden e Bright foram fundamentais para iniciar a Economist – concordando em 1843 em encomendar 20.000 cópias para distribuição pela Liga.
James Wilson trabalhou em estreita colaboração com Cobden e Bright, e a princípio sua revista era igualmente fervorosa ao vincular a causa do livre-comércio à paz: um dos primeiros artigos defendia a substituição de todo o corpo diplomático por mercadores frios e calculistas.
Em 1854, no entanto, a Economist rompeu decisivamente com esta linha de raciocínio: a noção de que o laissez-faire significava não-interferência dentro do país, bem como no exterior, virou fumaça. O que foi que incendiou esse estopim? Uma série de conflitos imperiais durante a década de 1850, que começaram na Crimeia e se estenderam até a Segunda Guerra do Ópio com a China e a repressão à rebelião indiana.
James Wilson havia se tornado membro do governo. Ele tinha um lugar reservado na bancada do Tesouro no parlamento e, nos bastidores, organizava empréstimos e impostos de guerra. A Economist não só justificou as guerras, mas também atacou violentamente aqueles como Cobden e Bright, que se opunham publicamente a elas no parlamento e na imprensa, como “ferramentas do czar” e “inimigos das instituições livres”. A revista se voltou contra a ideia de que o livre-comércio por si só levaria à paz.
Agora, essa era uma “doutrina medonha e superficial” – permitindo que a Rússia seguisse descontrolada, “soberanos bárbaros oprimindo seus súditos” e “intimidando e dividindo seus vizinhos mais fracos”. Para criar um mundo de relações comerciais livres e valores políticos liberais, a força poderia – e deveria – ser usada. “Podemos nos arrepender da guerra”, meditavam, enquanto os navios britânicos bombardeavam Guangzhou, “mas não podemos negar que grandes vantagens se seguem em seu rastro”.
Para Cobden, justificar essas guerras com base no livre-comércio era um absurdo hipócrita: “palavras sem significado, meros ecos do passado”. Também era uma traição. Questionado sobre se havia visto uma edição em 1855 que pressionava pela expansão da guerra contra a Rússia, Cobden respondeu: “nunca vejo a Economist, embora tenha na minha consciência o fato de que fui um dos principais interessados em iniciá-la.”
Ler a revista naquele momento era “uma tarefa à qual eu não condenaria nem um cachorro”. Cobden chegou a refletir meio vagamente sobre “a grande classe capitalista” que ele ajudou a organizar – se perguntando se sua riqueza e beligerância eram compatíveis com um “movimento político democrático”.
Para ser franco, uma vertente radical do liberalismo continuou a carregar a tocha de um pacifismo cobdenista. Contudo, a partir da década de 1850, essa posição permaneceu inconsistente e minoritária – muito menos proeminente e eficaz do que a linha seguida – com pouquíssimas exceções – pela Economist.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Houve, no entanto, uma exceção sob Francis Hirst, que via o imperialismo como uma ameaça ao liberalismo e não hesitou em publicar na revista os tribunos pacifistas J. A. Hobson e Bertrand Russell.
Alexander Zevin
Francis Hirst é a mais intrigante exceção à regra. Uma erupção do cobdenismo em uma publicação que fez mais do que qualquer outra para expulsar essas opiniões da vertente dominante do debate liberal. Em julho e agosto de 1914, Hirst argumentou que a Grã-Bretanha deveria permanecer neutra, pressionando seus amigos dentro do Gabinete, juntando-se a comitês pela neutralidade – embora com pouco efeito, dado o enorme ímpeto estrutural e ideológico para a guerra.
Ainda mais digno de nota: com o conflito em andamento, Hirst pressionou por uma paz negociada e se recusou a se alinhar às fileiras de apoio à guerra, como fizeram muitos de seus amigos liberais. Ele não só via a guerra como a sentença de morte do liberalismo, “assassinado” por um governo liberal que jurou defendê-lo – com tarifas e impostos, seguidos de censura e recrutamento obrigatório.
Ele também tentou explicitar os perigos que a guerra representava para a hegemonia dos financistas da City em Londres e para a “delicada arquitetura” do sistema financeiro global. “[Desse jeito] a grama crescerá em Lombard Street antes do final do ano”, disse Hirst a um editor júnior em desespero. O conselho de curadores da Economist logo ficou alarmado, e Hirst foi despedido em 1916.
Mas se Hirst foi excepcional a esse respeito, ele não escapou das contradições no cerne do liberalismo dominante. A Primeira Guerra Mundial trouxe duas dessas contradições nitidamente em foco. Em primeiro lugar, Hirst havia se tornado um defensor do Novo Liberalismo – que argumentava que o Estado poderia desempenhar um papel mais ativo na economia, em termos de educação, seguridade social e assim por diante.
Hirst, porém, sempre insistiu que a “reforma social” exigiria mais do que novos impostos. Os liberais deveriam conter o imperialismo, chegar a um entendimento com a Alemanha e cortar os gastos com armas. A realidade do Novo Liberalismo no poder, entretanto, foi completamente diferente: se os liberais alcançaram alguns objetivos progressistas antes de 1914, foi concordando em escalar – e não reduzir – a corrida armamentista com a Alemanha.
Em segundo lugar, Hirst defendia que o sistema financeiro era uma força pela paz no período que antecedeu 1914: quanto mais financeiramente interdependente fosse o mundo, menor a ameaça de guerra. Os investimentos estrangeiros seriam “reféns da paz” – uma opinião sustentada não apenas por Hirst, mas por Hobson, Norman Angell e outros liberais.
A Primeira Guerra Mundial feriu profundamente essa tese. Todavia, já havia amplas evidências a contradizendo na Economist muito antes da eclosão da guerra: do Leste Asiático – onde o melhor de todos os clientes do centro financeiro de Londres desde a virada do século era o Japão, que emprestara £ 84 milhões para construir um império – até as crises marroquinas, bem mais perto da Europa. E se os fluxos de capital fossem estopins de longo prazo, ao invés de sinalizadores da paz?
Daniel Zamora e Anton Jäger
O outro tópico importante do seu livro é a resposta do liberalismo à ascensão da democracia. Por que você acha que a Economist nos oferece lições históricas valiosas sobre a relação do liberalismo com a democracia? Como foi que chegamos a pensar em “liberalismo” e “democracia” como um casal ideal ao invés de um antagonismo, e que papel a Economist desempenhou nisso?
Alexander Zevin
Não sou o primeiro a apontar que liberalismo e democracia são dois conceitos distintos – e que sua conjunção é recente e carregada de atritos. Como mostrou Duncan Bell, a categoria de “democracia liberal”, e sua elevação à condição de ideologia mais autêntica (ou distinta) do Ocidente, começou para valer na década de 1930 – fornecendo uma poderosa autojustificação para os Estados euro-atlânticos em seus confronto geopolítico e ideológico com “ameaças totalitárias” de esquerda e direita.
A Guerra Fria deu uma supercarga nessa dinâmica: excluindo os Estados comunistas (que também reivindicavam o rótulo de democráticos, mas não de liberais), a ideia se enraizou nas disciplinas de Ciência Política e de História em cursos sobre a civilização ocidental (com subsídios bem úteis, por meio do Congresso pela Liberdade Cultural, apoiado pela CIA)
O liberalismo, nesse sentido, pode ser uma tradição inventada, mas a ideia de que o liberalismo possuiria algum núcleo democrático básico, ou de que ele tenderia internamente para a realização da democracia, tem perdurado. Para os liberais em meu livro, a democracia é um problema – um problema a ser resistido durante o século XIX, por meio de restrições ao voto com base na propriedade, nível de educação e região; um problema a ser administrado e contido durante o século XX, quando a pressão da classe trabalhadora e as exigências da guerra total tornaram-se fortes demais para que pudessem resistir a elas.
Se novos contra-movimentos democráticos surgirem como resultado da crise atual – e isso de forma alguma é uma certeza, dada a fraca posição estrutural dos trabalhadores no contexto de desemprego nas alturas e de lockdowns – os liberais terão de enfrentar dilemas semelhantes. Os historiadores liberais têm suas próprias teleologias. Ao invés de falarmos de um progresso gradual – menos ainda de um progresso inevitável – em direção à democracia, deveríamos estar falando sobre uma história de tensão, resistência, soluções alternativas e rupturas.
Daniel Zamora e Anton Jäger
A história intelectual do neoliberalismo tem sido, nos últimos anos, objeto de crescente interesse. Mas qual é o aspecto dessa mudança – do liberalismo para o neoliberalismo – a partir da perspectiva de um periódico como a Economist?
Alexander Zevin
Há muito a se dizer em resposta a essa pergunta.
Em primeiro lugar, um ponto no campo histórico: uma das coisas que me impressionaram no tratado histórico de Quinn Slobodian, Globalists (“Globalistas”), é como as preocupações de seus neoliberais de “Genebra” – como construir a economia global após os impérios e isolá-la das demandas políticas no nível da nação – possuem tantas continuidades com as preocupações dos liberais mais antigos.
Temos agora uma compreensão muito mais sofisticada do neoliberalismo do que aquela que o pintava como hostil ao Estado, ao bem-estar social, à família e aos direitos humanos – Jessica Whyte, Ben Jackson, Keith Tribe, Melinda Cooper e muitos outros têm feito um excelente trabalho sobre esses temas. Penso que ainda há um trabalho interessante a ser feito, no entanto, sobre a relação entre liberalismo e neoliberalismo.
Ludwig von Mises, F. A. Hayek e os participantes do Colóquio Walter Lippmann – todos rejeitavam as “falácias do laissez-faire”, mas, ao fazê-lo, construíram uma certa imagem intelectual delas que se adequava aos seus fins. Suas batalhas na década de 1930 não foram apenas contra planejadores socialistas, mas contra outros liberais – como Keynes – e, portanto, pelo controle do liberalismo como tradição intelectual.
Em segundo lugar, no final da década de 1980, a Economist era uma grande defensora da – na verdade, se definiria como o “guia geral” para – a globalização neoliberal. Na verdade, a publicação demorou a abraçar o neoliberalismo, pelo menos em sua forma monetarista. Conto no livro as brigas editoriais que eclodiram em torno disso – em trocas com Milton Friedman, que atacou a Economist por apoiar controles de preços e outras políticas de renda, e entre editores de seção, sobre endossar ou não Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
É um pouco como dar uma olhada por trás das cortinas do livro The Great Moving Right Show (“A Grande Guinada à Direita”), de Stuart Hall – para revelar as lutas dentro das lutas e, em seguida, a construção de uma nova hegemonia em resposta às crises dos anos 1970. A Economist complica as duas pontas dessa história: tanto o advento do chamado consenso keynesiano após 1945 quanto seu colapso rumo ao thatcherismo na virada dos anos 1980.
Daniel Zamora e Anton Jäger
A esse respeito, como exatamente a Economist respondeu à década “populista”? Esse desenvolvimento desafia de muitas maneiras as ideias que a revista há muito promove – globalização, desigualdade, financeirização e assim por diante. Então, como ela explica Trump ou Brexit?
Alexander Zevin
O liberalismo parece ter sido bem incapaz de prever e explicar aquilo que ele chama de “populismo”. A cobertura incerta sobre o Brexit e Trump pela Economist atesta esse fato, assim como a cobertura proveniente de outros veículos de comunicação: pense no New York Times com seu velocímetro eleitoral quebrado prevendo o triunfo de Hillary Clinton, ou no Guardian e seus extravagantes testes de personalidade populista.
A mídia adotou o termo em parte por ele ser tão impreciso: permite-lhes, como argumentaram Marco D’Eramo e Wolfgang Streeck, evitar distinções, em defesa de um estreito campo central, no qual é permitida a persistência de uma forma de política emaciada. Tipos muito diferentes de movimentos que rejeitam esse status quo podem ser rotulados como se fossem igualmente simplistas, iludidos ou perigosos.
Ainda assim, o centro liberal tem se provado mais hábil em conter essas ameaças – em parte devido ao poder das instituições que os próprios liberais criaram, desde bancos centrais e gigantes da mídia até órgãos partidários e organizações internacionais.
No Reino Unido, o Corbynismo foi desarmado e derrotado com base em acusações espúrias de anti-semitismo, abrindo caminho para uma oposição “forense” (isto é, comportada); nos Estados Unidos, Bernie Sanders foi despachado em favor de uma cifra decrépita do lobby dos cartões de crédito e da máquina de segurança; na Itália, Matteo Salvini está fora do governo. Isso não significa que os liberais conseguiram encontrar uma resposta, ou que eles tenham feito qualquer coisa, exceto adiar uma crise muito mais severa – embora em termos menos favoráveis à esquerda, e talvez também a eles mesmos…
Não é que as publicações liberais não reconheçam a necessidade de mudança. Enquanto escrevo isto, Mark Carney, o presidente do Banco da Inglaterra, está na Economist, soando para todo o mundo como quando Keynes falou sobre o futuro econômico de nossos netos: a necessidade de novos “valores públicos” para substituir aqueles sinalizados por preços e mercados; mais e melhores “apoio social e assistência médica”; ousadia no enfrentamento das mudanças climáticas.
Ele pode estar certo, mas ainda assim as instituições liberais não sentiram necessidade de ceder às forças sociais que defendem essas mudanças – atacando ferozmente os movimentos, partidos e representantes que tentaram atrelá-las a programas políticos. Vencer a batalha de ideias não vai ser suficiente.
Sobre o entrevistado
Alexander Zevin é historiador e editor da revista New Left Review. É o autor de Liberalism at Large: The World According to the Economist (“Liberalismo à Solta: O Mundo Segundo a Economist”).
Sobre os entrevistadores
Daniel Zamora é um sociólogo de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles e Cambridge University. Seu livro, "Le Dernier Homme e A Finada da Revolução: Foucault après Mai 68", em co-autoria com Mitchell Dean, será publicado em inglês pela Verso em 2020.
Isso é importante, já que muitos relatos minimizam ou ignoram esse elemento na história do liberalismo, e não é difícil ver o porquê. Aí estão os vilões que espreitam nas notas de rodapé de O Capital. Tento deixá-los falar, sem dizer ao leitor para que fique horrorizado.
A defesa que a Economist faz do livre-comércio é nitidamente milenarista. Wilson argumentava que o livre-comércio absoluto resultaria no fim do próprio ciclo comercial [de crescimentos e crises]: dentro do país, só poderia gerar as curas para “a ignorância, a depravação, a imoralidade e a falta de religião”, além de por um fim “à carência, ao pauperismo e à fome”; no exterior, faria “mais do que qualquer outro agente visível para estender a civilização... sim, para extinguir a própria escravidão.”
Nesse registro orientado à providência, a Economist se opunha a quase todas as “interferências” nas operações do mercado como transgressões contra o divino. Embora o periódico certamente tenha atacado os protecionistas no Parlamento comprometidos com as Leis do Milho ou as Leis de Navegação, foi muito mais veemente ao denunciar outro grupo: políticos e autores que, agindo por benevolência, filantropia ou caridade – todas as três palavras se tornaram insultos nas páginas da Economist – tentavam amenizar o sofrimento das classes inferiores.
Boas ações teriam consequências imprevistas, quase sempre na forma de algum mal. Isso seria tão verdadeiro para o caso do Estado empreendendo uma tarefa “mais adequada a Deus do que ao homem” quando limitava a jornada de trabalho, quanto para indivíduos e grupos privados.
Com base nisso, a Economist se opôs a quase todos os projetos de reforma legislativa – projetos como o investimento na criação da ferrovia transcontinental nos EUA, os projetos de regulação das condições de trabalho nas fábricas, a lei das 10 horas de trabalho diário e a criação de um Conselho de Saúde (“existe um mal pior do que tifo, cólera ou água impura, que é a imbecilidade mental”).
A revista condenou não apenas o clamor por educação pública, mas mesmo por escolas de caridade; não apenas tentativas oficiais de embargo de bens produzidos por escravos, mas também tentativas por parte dos abolicionistas (aqueles “verdadeiros grandes filantropos”); e rejeitou aquilo que agora consideraríamos leis básicas para empresas, bancos, patentes e direitos autorais. A revista de Wilson desempenhou um papel fundamental nas definições da resposta oficial à Grande Fome na Irlanda, com consequências previsivelmente devastadoras.
Daniel Zamora e Anton Jäger
É famosa a afirmação de Lenin de que um jornal também seria uma forma de organizar e unificar a visão de mundo da classe trabalhadora. Em certo sentido, a Economist não é apenas o Pravda para a classe dominante anglo-americana? A personificação perfeita da forma dominante de liberalismo?
Alexander Zevin
Não pode ser por acaso que tantos marxistas leram – e vários até escreveram para – a Economist. Às vezes, pode parecer que estamos lendo Marx por um espelho distorcido de parque de diversões. De fato, o que Bagehot elogiava como sendo a genialidade do sistema político inglês – que um gabinete, semelhante a um “conselho de diretores”, governava a nação, por trás de uma tela de pompa real – não é diferente da descrição de Marx do governo parlamentar como sendo o comitê executivo da burguesia. Evidentemente, os julgamentos são invertidos.
O próprio Marx estudava cuidadosamente a Economist – tanto para obter informações sobre as peripécias do capital global quanto para compreender a visão de mundo de seus administradores. Marx a chamava de a tribuna da “aristocracia das finanças” – e portanto, uma fração poderosa da classe dominante – e ele a usou em 18 de Brumário de Luis Bonaparte para mostrar as maneiras iliberais com que os liberais estavam reagindo à ameaça da democracia popular, aumentando os preços dos fundos públicos aos primeiros sinais de um Golpe de Estado que esmagaria a Assembleia Nacional francesa. Lenin também lia a Economist, e se referia a ela como um jornal que – muito simplesmente – “fala pelos milionários britânicos”.
Certamente há paralelos com o Pravda, mas também existem diferenças. A Economist teve de ser (de um modo geral) um pouco mais franca com sua rica claque de leitores. O marxista polonês Daniel Singer – um incomum correspondente da Economist em Paris em 1968 – uma vez afirmou que antes da explosão de circulação durante a década de 1980, você podia ler a Economist para “ouvir a burguesia falando consigo mesma, e ela podia falar de maneira bem aberta”.
Em parte, penso que isso deve refletir a diferença entre a tarefa de organizar a visão de mundo de uma classe dominante que já é para si mesma, com uma classe cuja existência ainda não encontrou uma expressão política coerente; entre um jornal cuja missão é mobilizar para a derrubada do capitalismo, e outro cuja intenção de operá-lo sem problemas. Será que os socialistas poderiam algum dia produzir uma revista como a Economist? Seria um sinal de força se eles fossem capazes de fazer isso?
Daniel Zamora e Anton Jäger
Uma parte importante de seu argumento é sobre a relação entre liberalismo e guerra. Uma história bastante difundida associa o livre-comércio à paz, e a União Europeia a adotou como seu credo. Você, no entanto, nos conta outra história, onde os liberais promovem o livre-mercado “através do cano das armas de fogo”.
Alexander Zevin
Essa é uma das principais descobertas do livro. Não que existia o imperialismo liberal, o que já é bem conhecido, pelo menos para os pesquisadores de mentalidade crítica. O que escavei foi quando, onde e como o imperialismo se tornou tão central para a vertente dominante do liberalismo. Um momento-chave – um ponto de inflexão – foi uma briga épica entre James Wilson, o fundador da Economist, e dois de seus camaradas liberais, que começou durante a Guerra da Crimeia.
Richard Cobden e John Bright são os dois nomes mais famosos associados à luta pelo livre comércio na Grã-Bretanha – fabricantes de têxteis e membros importantes da Liga da Lei Anti-Milho.
O lema de Cobden (e da Liga) era “Livre-comércio, Paz e Boa Vontade Entre as Nações”, e os próprios escritos dele enfatizavam tanto a prosperidade que o livre-comércio unilateral traria quanto sua tendência a erradicar a guerra. (Inscrito no Free Trade Hall em Manchester, esse lema encantou o presidente dos EUA Woodrow Wilson quando ele fez um discurso lá em 1919 a caminho de Paris; o prédio é hoje um hotel Radisson). Cobden e Bright foram fundamentais para iniciar a Economist – concordando em 1843 em encomendar 20.000 cópias para distribuição pela Liga.
James Wilson trabalhou em estreita colaboração com Cobden e Bright, e a princípio sua revista era igualmente fervorosa ao vincular a causa do livre-comércio à paz: um dos primeiros artigos defendia a substituição de todo o corpo diplomático por mercadores frios e calculistas.
Em 1854, no entanto, a Economist rompeu decisivamente com esta linha de raciocínio: a noção de que o laissez-faire significava não-interferência dentro do país, bem como no exterior, virou fumaça. O que foi que incendiou esse estopim? Uma série de conflitos imperiais durante a década de 1850, que começaram na Crimeia e se estenderam até a Segunda Guerra do Ópio com a China e a repressão à rebelião indiana.
James Wilson havia se tornado membro do governo. Ele tinha um lugar reservado na bancada do Tesouro no parlamento e, nos bastidores, organizava empréstimos e impostos de guerra. A Economist não só justificou as guerras, mas também atacou violentamente aqueles como Cobden e Bright, que se opunham publicamente a elas no parlamento e na imprensa, como “ferramentas do czar” e “inimigos das instituições livres”. A revista se voltou contra a ideia de que o livre-comércio por si só levaria à paz.
Agora, essa era uma “doutrina medonha e superficial” – permitindo que a Rússia seguisse descontrolada, “soberanos bárbaros oprimindo seus súditos” e “intimidando e dividindo seus vizinhos mais fracos”. Para criar um mundo de relações comerciais livres e valores políticos liberais, a força poderia – e deveria – ser usada. “Podemos nos arrepender da guerra”, meditavam, enquanto os navios britânicos bombardeavam Guangzhou, “mas não podemos negar que grandes vantagens se seguem em seu rastro”.
Para Cobden, justificar essas guerras com base no livre-comércio era um absurdo hipócrita: “palavras sem significado, meros ecos do passado”. Também era uma traição. Questionado sobre se havia visto uma edição em 1855 que pressionava pela expansão da guerra contra a Rússia, Cobden respondeu: “nunca vejo a Economist, embora tenha na minha consciência o fato de que fui um dos principais interessados em iniciá-la.”
Ler a revista naquele momento era “uma tarefa à qual eu não condenaria nem um cachorro”. Cobden chegou a refletir meio vagamente sobre “a grande classe capitalista” que ele ajudou a organizar – se perguntando se sua riqueza e beligerância eram compatíveis com um “movimento político democrático”.
Para ser franco, uma vertente radical do liberalismo continuou a carregar a tocha de um pacifismo cobdenista. Contudo, a partir da década de 1850, essa posição permaneceu inconsistente e minoritária – muito menos proeminente e eficaz do que a linha seguida – com pouquíssimas exceções – pela Economist.
Daniel Zamora e Anton Jäger
Houve, no entanto, uma exceção sob Francis Hirst, que via o imperialismo como uma ameaça ao liberalismo e não hesitou em publicar na revista os tribunos pacifistas J. A. Hobson e Bertrand Russell.
Alexander Zevin
Francis Hirst é a mais intrigante exceção à regra. Uma erupção do cobdenismo em uma publicação que fez mais do que qualquer outra para expulsar essas opiniões da vertente dominante do debate liberal. Em julho e agosto de 1914, Hirst argumentou que a Grã-Bretanha deveria permanecer neutra, pressionando seus amigos dentro do Gabinete, juntando-se a comitês pela neutralidade – embora com pouco efeito, dado o enorme ímpeto estrutural e ideológico para a guerra.
Ainda mais digno de nota: com o conflito em andamento, Hirst pressionou por uma paz negociada e se recusou a se alinhar às fileiras de apoio à guerra, como fizeram muitos de seus amigos liberais. Ele não só via a guerra como a sentença de morte do liberalismo, “assassinado” por um governo liberal que jurou defendê-lo – com tarifas e impostos, seguidos de censura e recrutamento obrigatório.
Ele também tentou explicitar os perigos que a guerra representava para a hegemonia dos financistas da City em Londres e para a “delicada arquitetura” do sistema financeiro global. “[Desse jeito] a grama crescerá em Lombard Street antes do final do ano”, disse Hirst a um editor júnior em desespero. O conselho de curadores da Economist logo ficou alarmado, e Hirst foi despedido em 1916.
Mas se Hirst foi excepcional a esse respeito, ele não escapou das contradições no cerne do liberalismo dominante. A Primeira Guerra Mundial trouxe duas dessas contradições nitidamente em foco. Em primeiro lugar, Hirst havia se tornado um defensor do Novo Liberalismo – que argumentava que o Estado poderia desempenhar um papel mais ativo na economia, em termos de educação, seguridade social e assim por diante.
Hirst, porém, sempre insistiu que a “reforma social” exigiria mais do que novos impostos. Os liberais deveriam conter o imperialismo, chegar a um entendimento com a Alemanha e cortar os gastos com armas. A realidade do Novo Liberalismo no poder, entretanto, foi completamente diferente: se os liberais alcançaram alguns objetivos progressistas antes de 1914, foi concordando em escalar – e não reduzir – a corrida armamentista com a Alemanha.
Em segundo lugar, Hirst defendia que o sistema financeiro era uma força pela paz no período que antecedeu 1914: quanto mais financeiramente interdependente fosse o mundo, menor a ameaça de guerra. Os investimentos estrangeiros seriam “reféns da paz” – uma opinião sustentada não apenas por Hirst, mas por Hobson, Norman Angell e outros liberais.
A Primeira Guerra Mundial feriu profundamente essa tese. Todavia, já havia amplas evidências a contradizendo na Economist muito antes da eclosão da guerra: do Leste Asiático – onde o melhor de todos os clientes do centro financeiro de Londres desde a virada do século era o Japão, que emprestara £ 84 milhões para construir um império – até as crises marroquinas, bem mais perto da Europa. E se os fluxos de capital fossem estopins de longo prazo, ao invés de sinalizadores da paz?
Daniel Zamora e Anton Jäger
O outro tópico importante do seu livro é a resposta do liberalismo à ascensão da democracia. Por que você acha que a Economist nos oferece lições históricas valiosas sobre a relação do liberalismo com a democracia? Como foi que chegamos a pensar em “liberalismo” e “democracia” como um casal ideal ao invés de um antagonismo, e que papel a Economist desempenhou nisso?
Alexander Zevin
Não sou o primeiro a apontar que liberalismo e democracia são dois conceitos distintos – e que sua conjunção é recente e carregada de atritos. Como mostrou Duncan Bell, a categoria de “democracia liberal”, e sua elevação à condição de ideologia mais autêntica (ou distinta) do Ocidente, começou para valer na década de 1930 – fornecendo uma poderosa autojustificação para os Estados euro-atlânticos em seus confronto geopolítico e ideológico com “ameaças totalitárias” de esquerda e direita.
A Guerra Fria deu uma supercarga nessa dinâmica: excluindo os Estados comunistas (que também reivindicavam o rótulo de democráticos, mas não de liberais), a ideia se enraizou nas disciplinas de Ciência Política e de História em cursos sobre a civilização ocidental (com subsídios bem úteis, por meio do Congresso pela Liberdade Cultural, apoiado pela CIA)
O liberalismo, nesse sentido, pode ser uma tradição inventada, mas a ideia de que o liberalismo possuiria algum núcleo democrático básico, ou de que ele tenderia internamente para a realização da democracia, tem perdurado. Para os liberais em meu livro, a democracia é um problema – um problema a ser resistido durante o século XIX, por meio de restrições ao voto com base na propriedade, nível de educação e região; um problema a ser administrado e contido durante o século XX, quando a pressão da classe trabalhadora e as exigências da guerra total tornaram-se fortes demais para que pudessem resistir a elas.
Se novos contra-movimentos democráticos surgirem como resultado da crise atual – e isso de forma alguma é uma certeza, dada a fraca posição estrutural dos trabalhadores no contexto de desemprego nas alturas e de lockdowns – os liberais terão de enfrentar dilemas semelhantes. Os historiadores liberais têm suas próprias teleologias. Ao invés de falarmos de um progresso gradual – menos ainda de um progresso inevitável – em direção à democracia, deveríamos estar falando sobre uma história de tensão, resistência, soluções alternativas e rupturas.
Daniel Zamora e Anton Jäger
A história intelectual do neoliberalismo tem sido, nos últimos anos, objeto de crescente interesse. Mas qual é o aspecto dessa mudança – do liberalismo para o neoliberalismo – a partir da perspectiva de um periódico como a Economist?
Alexander Zevin
Há muito a se dizer em resposta a essa pergunta.
Em primeiro lugar, um ponto no campo histórico: uma das coisas que me impressionaram no tratado histórico de Quinn Slobodian, Globalists (“Globalistas”), é como as preocupações de seus neoliberais de “Genebra” – como construir a economia global após os impérios e isolá-la das demandas políticas no nível da nação – possuem tantas continuidades com as preocupações dos liberais mais antigos.
Temos agora uma compreensão muito mais sofisticada do neoliberalismo do que aquela que o pintava como hostil ao Estado, ao bem-estar social, à família e aos direitos humanos – Jessica Whyte, Ben Jackson, Keith Tribe, Melinda Cooper e muitos outros têm feito um excelente trabalho sobre esses temas. Penso que ainda há um trabalho interessante a ser feito, no entanto, sobre a relação entre liberalismo e neoliberalismo.
Ludwig von Mises, F. A. Hayek e os participantes do Colóquio Walter Lippmann – todos rejeitavam as “falácias do laissez-faire”, mas, ao fazê-lo, construíram uma certa imagem intelectual delas que se adequava aos seus fins. Suas batalhas na década de 1930 não foram apenas contra planejadores socialistas, mas contra outros liberais – como Keynes – e, portanto, pelo controle do liberalismo como tradição intelectual.
Em segundo lugar, no final da década de 1980, a Economist era uma grande defensora da – na verdade, se definiria como o “guia geral” para – a globalização neoliberal. Na verdade, a publicação demorou a abraçar o neoliberalismo, pelo menos em sua forma monetarista. Conto no livro as brigas editoriais que eclodiram em torno disso – em trocas com Milton Friedman, que atacou a Economist por apoiar controles de preços e outras políticas de renda, e entre editores de seção, sobre endossar ou não Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
É um pouco como dar uma olhada por trás das cortinas do livro The Great Moving Right Show (“A Grande Guinada à Direita”), de Stuart Hall – para revelar as lutas dentro das lutas e, em seguida, a construção de uma nova hegemonia em resposta às crises dos anos 1970. A Economist complica as duas pontas dessa história: tanto o advento do chamado consenso keynesiano após 1945 quanto seu colapso rumo ao thatcherismo na virada dos anos 1980.
Daniel Zamora e Anton Jäger
A esse respeito, como exatamente a Economist respondeu à década “populista”? Esse desenvolvimento desafia de muitas maneiras as ideias que a revista há muito promove – globalização, desigualdade, financeirização e assim por diante. Então, como ela explica Trump ou Brexit?
Alexander Zevin
O liberalismo parece ter sido bem incapaz de prever e explicar aquilo que ele chama de “populismo”. A cobertura incerta sobre o Brexit e Trump pela Economist atesta esse fato, assim como a cobertura proveniente de outros veículos de comunicação: pense no New York Times com seu velocímetro eleitoral quebrado prevendo o triunfo de Hillary Clinton, ou no Guardian e seus extravagantes testes de personalidade populista.
A mídia adotou o termo em parte por ele ser tão impreciso: permite-lhes, como argumentaram Marco D’Eramo e Wolfgang Streeck, evitar distinções, em defesa de um estreito campo central, no qual é permitida a persistência de uma forma de política emaciada. Tipos muito diferentes de movimentos que rejeitam esse status quo podem ser rotulados como se fossem igualmente simplistas, iludidos ou perigosos.
Ainda assim, o centro liberal tem se provado mais hábil em conter essas ameaças – em parte devido ao poder das instituições que os próprios liberais criaram, desde bancos centrais e gigantes da mídia até órgãos partidários e organizações internacionais.
No Reino Unido, o Corbynismo foi desarmado e derrotado com base em acusações espúrias de anti-semitismo, abrindo caminho para uma oposição “forense” (isto é, comportada); nos Estados Unidos, Bernie Sanders foi despachado em favor de uma cifra decrépita do lobby dos cartões de crédito e da máquina de segurança; na Itália, Matteo Salvini está fora do governo. Isso não significa que os liberais conseguiram encontrar uma resposta, ou que eles tenham feito qualquer coisa, exceto adiar uma crise muito mais severa – embora em termos menos favoráveis à esquerda, e talvez também a eles mesmos…
Não é que as publicações liberais não reconheçam a necessidade de mudança. Enquanto escrevo isto, Mark Carney, o presidente do Banco da Inglaterra, está na Economist, soando para todo o mundo como quando Keynes falou sobre o futuro econômico de nossos netos: a necessidade de novos “valores públicos” para substituir aqueles sinalizados por preços e mercados; mais e melhores “apoio social e assistência médica”; ousadia no enfrentamento das mudanças climáticas.
Ele pode estar certo, mas ainda assim as instituições liberais não sentiram necessidade de ceder às forças sociais que defendem essas mudanças – atacando ferozmente os movimentos, partidos e representantes que tentaram atrelá-las a programas políticos. Vencer a batalha de ideias não vai ser suficiente.
Sobre o entrevistado
Alexander Zevin é historiador e editor da revista New Left Review. É o autor de Liberalism at Large: The World According to the Economist (“Liberalismo à Solta: O Mundo Segundo a Economist”).
Sobre os entrevistadores
Daniel Zamora é um sociólogo de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles e Cambridge University. Seu livro, "Le Dernier Homme e A Finada da Revolução: Foucault après Mai 68", em co-autoria com Mitchell Dean, será publicado em inglês pela Verso em 2020.
Anton Jäger é doutorando na Universidade de Cambridge, trabalhando com a história do populismo nos Estados Unidos. Junto com Daniel Zamora, ele trabalha atualmente em uma história intelectual da renda básica.
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