1 de junho de 2020

Quando o tumulto funciona

A revolta é uma resposta racional à pobreza e à opressão. E embora nem sempre seja o caso, a pesquisa mostra que pode ser eficaz na conquista de mudanças sociais.

Paul Heideman


Manifestantes entusiasmados enquanto a delegacia do 3º distrito policial queima em 28 de maio de 2020 em Minneapolis, Minnesota. (Stephen Maturen / Getty Images).

Tradução
/ O liberalismo tem uma relação claramente contraditória com o protesto dos negros. Por um lado, os liberais se acham os melhores amigos (na linguagem contemporânea, “aliados”) da causa da igualdade racial. Pelo outro, desde pelo menos a década de 1930, eles têm desviado da militância negra, convencidos de que não servia para muita coisa, exceto para fortalecer o posicionamento dos reacionários.

Com tumultos estourando em diversas cidades, a divisão de opinião dos liberais foi novamente revelada. Algumas das suas tentativas de equilíbrio entre apoio à causa e condenação dos levantes são risíveis, como a ideia ridiculamente paternalista de que a destruição de propriedade é necessariamente realizada por “anarquistas brancos”. Além de ser uma regurgitação das racionalizações policiais para a repressão, esse tipo de argumento apaga efetivamente as muitas formas de protesto negro que não se enquadram no modelo aprovado pelos liberais.

Pensadores mais sofisticados encontraram meios mais sutis de expressar seu desconforto com as revoltas, argumentando que, por mais justificadas que sejam, apenas fazem fortalecer os conservadores e reacionários. Esses tipos estão com sorte, pois, um novo artigo do cientista político Omar Wasow publicado semana passada, no qual ele argumenta que as revoltas da década de 1960 assustaram os eleitores brancos e os empurraram para os braços de Richard Nixon.

O artigo de Wasow é uma peça rigorosa da ciência social, e a validade de suas conclusões não se altera relativamente à sua conveniência para os radicais. É perfeitamente possível que as revoltas da década de 1960 tenham, de fato, aumentado o apoio à campanha de ordem pública de Nixon.

No entanto, o artigo recebeu uma atenção especial nesta semana, justamente daqueles que procuram estender tais conclusões para além de sua base empírica. Ross Douthat, o escritor conservador do New York Times que costuma defender as fórmulas mágicas dos liberais, usou o artigo como argumento de que os liberais carregam “o fardo especial de impedir e conter” distúrbios civis, a fim de prevenir uma reação política mais ampla.

Não muito tempo atrás, os liberais estavam trucidando o governo Trump por sua extrapolação irresponsável. Mas eles estão fazem exatamente a mesma coisa ao usarem os anos 1960 como “prova” de que distúrbios civis são sempre, em qualquer lugar, contraproducentes. A ideia de que distúrbios civis podem ter efeitos diferentes em momentos diferentes é uma complexidade que os liberais preferem desconsiderar.

Tomemos como exemplo as primeiras revoltas do Black Lives Matter (BLM) [Vidas Negras Importam] em 2014-15, centradas nas cidades de Ferguson, no Estado de Missouri e Baltimore, no Estado de Maryland. Para Douthat, esses levantes acabaram com o entusiasmo conservador pela reforma do sistema prisional e abriram caminho para o próprio Donald Trump.

Mas há pouquíssimas evidências para esse argumento. Na verdade, os dados da opinião pública sugerem fortemente que esses episódios contribuíram para ideias raciais mais progressistas. Na última década, o Pew Research Center vem perguntando às pessoas se os EUA já fizeram o suficiente para garantir a igualdade entre brancos e negros ou se precisam fazer mais. Uma olhada nos resultados torna óbvio o impacto do BLM.


Entre a população americana como um todo, de 2014 a 2015 houve um grande salto na proporção de pessoas afirmando que o país ainda precisava mudar para garantir direitos iguais. O tamanho do salto diminui muito pouco se olharmos apenas para os cidadãos brancos. Mesmo entre os republicanos, há um aumento muito claro na crença de que mais ações são necessárias para a igualdade racial. Entre os policiais, entretanto, mais de 80% consideram mudanças adicionais desnecessárias. Outra pesquisa acadêmica comprova esse impacto com mais rigor ainda.

Na história recente dos tumultos, Ferguson e Baltimore não são excepções. Há muitas evidências de que os tumultos em geral trouxeram mudanças progressistas. Um artigo recente examinou as consequências do levante de Rodney King e concluiu que, em Los Angeles, as revoltas aumentaram a mobilização de eleitores para o Partido Democrata e o apoio à educação pública.

No Reino Unido, tumultos estouraram em 1990, quando Margaret Thatcher tentou impor um imposto extraordinariamente regressivo sobre os serviços locais. Embora a corrente dominante do Partido Trabalhista tenha condenado as revoltas como obra dos “anarquistas”, uma campanha de defesa dos acusados surgiu como parte do movimento de resistência aos impostos. Esse esforço de baixo para cima gerou uma crise para o Partido Conservador que provocou a renúncia de Thatcher e a revogação do imposto de capitação.

Mesmo o caso da década de 1960 é mais complicado do que sugere a fábula liberal sobre os eleitores-brancos-assustados de Nixon. Por um lado, há evidências substanciais de que as revoltas levaram a maiores investimentos governamentais nas cidades desfavorecidas onde ocorreram. O livro pioneiro de James W. Button, Black Violence, de 1978, documentou as maneiras pelas quais as revoltas forçaram políticos a prestar mais atenção aos efeitos das políticas públicas sobre os pobres urbanos, um grupo que, até então, tinham gosto em negligenciar. Numa época em que muitos cientistas sociais viam até mesmo os movimentos de protesto como uma espécie de psicose em massa, Button mostra que os tumultos eram uma resposta racional ao fato de serem ignorados.

Pesquisas posteriores mostraram que os distúrbios civis poderiam aumentar os gastos com assistência social, mesmo em áreas onde o racismo era mais forte. Em outras palavras, mesmo que as revoltas tenham levado a opinião do público branco em uma direção conservadora, elas também trouxeram benefícios importantes para as áreas onde ocorreram.

Embora os efeitos políticos dos tumultos sejam mais complexos do que o conto da carochinha que o moralismo liberal sugere, há um sentido importante que vai além. Afinal, quaisquer que sejam seus efeitos políticos, tumultos acontecem com certa regularidade nos EUA. Quando as pessoas são desalojadas; quando a descartabilidade de suas vidas é testemunhada diariamente em vídeos de seus pares sendo mortos por agentes do Estado; quando o sistema político ignora completamente sua situação, elas, mais cedo ou mais tarde, tentarão levar seus problemas à grande arena nacional, por todos os meios necessários.

Como disse Cardi B em um vídeo revigorante e honesto: “Ver as pessoas saqueando, extremamente indignadas, sabe, isso me faz sentir que: sim! Finalmente! Finalmente, esses filhos da puta vão nos ouvir agora”. Embora os liberais gostem muito de falar sobre a importância da escuta em momentos como esses, eles deixaram bem claro que preferiam não fazê-lo.

Sobre o autor

Paul Heideman é doutor em estudos americanos pela Rutgers University-Newark.

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