10 de junho de 2020

Martin Luther King sabia que não há nada pacífico na não-violência se você estiver fazendo isso certo

Os comentaristas do establishment adoram citar Martin Luther King para deslegitimar protestos de militantes radicais e envergonhar manifestantes indisciplinados. Mas King não era um defensor de um protesto passivo e complacente – para ele, a mobilização consistia em forjar uma força coletiva poderosa que pudesse coagir as elites no poder a concederem demandas por justiça.

Alexander Livingston


Martin Luther King Jr. dirige-se a uma multidão dos degraus do Lincoln Memorial durante a marcha de 28 de agosto de 1963, em Washington, DC.

Tradução / A repressão política nos EUA é ao mesmo tempo espetacular e banal. Vimos ambos nas últimas semanas, enquanto forças policiais militarizadas conduzem campanhas de contrainsurgência contra civis norte-americanos e a brutalidade é acompanhada de apelos para que os manifestantes permaneçam pacíficos.

Quando as elites governantes clamam pela paz, elas estão exigindo docilidade. Quando citam cinicamente citações descontextualizadas de Martin Luther King e invocam os direitos dos “manifestantes pacíficos” enquanto criticam protestos realmente existentes, eles anunciam que nenhum protesto efetivo jamais será pacífico o suficiente para encontrar sua aprovação. As elites dirigentes, os especialistas e a polícia usam a retórica da não-violência para disciplinar os manifestantes e transferir a responsabilidade pela violência do Estado para suas vítimas.

Nós não devemos cair na armadilha deles. Não há nada de pacífico na não-violência se você usar ela direito.

Não-violência não é seguir regras, trabalhar dentro das instituições existentes, ou manter os protestos inofensivos. Ação direta não-violenta ainda é ação direta. Não é auto-sacrifício virtuoso ou moralizante, mas uma teoria do poder e um repertório de táticas para usá-la. Não-violência efetiva é exercer uma ação coletiva para perturbar o funcionamento normal da sociedade.

Martin Luther King sabia disso melhor do que a maioria das pessoas. Embora os críticos estejam certos de que King rejeitava regularmente as rebeliões como tática, ele defendia os próprios manifestantes como expressão de raiva justificada contra uma ordem racista e capitalista que havia deixado moradores negros do interior da cidade brutalizados, explorados e abandonados. Para ele, o tumulto era uma raiva ardente; o tipo de reconstrução radical da sociedade norte-americana que ele imaginava exigia que ela ardesse por muito tempo.

É verdade que King pensava que a ação direta não violenta, militantemente perseguida, era moralmente superior ao tumulto – mas mais importante, ele achava que representava um caminho mais promissor para confrontar diretamente o Estado. A não-violência, como ele chegou a conceituar até o final de sua vida, era um meio de canalizar a raiva popular para uma força de combate que poderia representar uma ameaça mais direta ao governo Johnson.

Para articular essa visão de “desobediência civil de massa”, King olhou para o movimento operário. Em seu relatório de 1966 para a Conferência de Liderança Cristã do Sul, King citou a greve de trinta e cinco mil trabalhadores aéreos naquele verão como um exemplo de poder não-violento em ação. Patrões e políticos, insistiu ele, tiveram que ser coagidos a fazer concessões. Os trabalhadores das companhias aéreas alavancaram esse tipo de coação através de uma não-cooperação coordenada e disciplinada, ganhando o primeiro contrato de múltiplas companhias aéreas.

O relatório de King abraçou a definição de poder do presidente da United Automobile Workers (UAW), Walter Reuther, como “a capacidade de fazer a maior corporação do mundo, a General Motors, dizer sim quando querem dizer não”. Os trabalhadores forçam os gestores a fazer o que não querem, interferindo na sua capacidade de lucro. É a mão-de-obra que mantém as máquinas funcionando param totalmente quando os trabalhadores se recusam a trabalhar. Greves manejam o poder sobre as empresas ao desestruturar o poder dos empregadores em sua fonte.

A desobediência civil em massa, como King a imaginou na Campanha dos Pobres, foi um programa semelhante de coerção não-violenta, forçando o governo federal a buscar uma transformação radical da sociedade norte-americana.

A onda de protestos em curso é uma prova da fragilidade do poder estatal quando as pessoas retêm coletivamente sua cooperação. Os apelos do presidente Donald Trump pela “dominação” dos protestos têm se mostrado fúteis, já que a intensificação da repressão deslegitima ainda mais o sistema atual. Os tumultos policiais fizeram com que os protestos se espalhassem como fogo incontrolável. Mesmo a destruição e o saque de propriedades não provocaram nenhum recuo. Muito pelo contrário: as pesquisas registram amplo apoio aos objetivos do movimento Black Lives Matter.

A pandemia criou claramente a abertura para esta insurgência não violenta. O ataque à saúde pública, o abandono de pessoas pobres e não-brancas e o desemprego maciço expuseram as patologias do sistema político à luz do dia. Os milhões de postos de trabalho perdidos e suspensos estão mantendo os manifestantes nas ruas, e as perturbações anteriores provavelmente diminuíram o custo da agitação constante. Esta confluência de fatores tornou possível transformar a raiva coletiva em solidariedade multirracial para uma verdadeira desobediência civil em massa.

As elites estão desesperadas para deslegitimar essa raiva, invocando novamente King e os mitos da não-violência. Protestos civilizados, pacificados, são o que elas querem. Mas ao mesmo tempo que King utilizava de uma linguagem cristã de amor para traduzir a satyagraha gandhiana para o vernáculo político da tradição do evangelho social negro, ele nunca duvidou que a raiva poderia se tornar uma força criativa. Há solidariedade em reconhecer a raiva e há poder em usá-la para sustentar a resistência coletiva diante da violência. O que ele advertiu contra foi à raiva que turva o julgamento e nos aproxima da violência reativa que o próprio Estado usa.

Conservar a raiva sem violência, então, não se trata de falar em tom civilizado, mas de usar esta raiva para energizar a resistência coletiva sem ser consumida por ela. Como tem argumentado Barbara Deming, a não-violência não é uma fantasia de pureza espiritual; é um meio de lutar contra a violência com raiva mas com equilíbrio.

Refletindo sobre as lições das greves das companhias aéreas, Martin Luther King observou: “Influência e persuasão moral podem continuar a preparar o clima para a mudança, mas deve haver um poder real de mudança se quisermos alcançar nosso propósito.” O desafio colocado pela visão de King da desobediência civil em massa é: como converter a indignação e a raiva em poder? Enfrentar esse desafio hoje não deveria ser uma oportunidade de moralizar ou dar palestras a ativistas; é uma provocação para reconhecer o que a paz realmente exige de nós.

A paz que a luta não-violenta visa não se encontra na acomodação frente ao status quo, em seguir as regras ou no cumprimento das normas da propriedade liberal. A paz só pode ser conquistada na luta contra os “males triplos” do capitalismo, do racismo e do militarismo, que são a base do reinado da violência.

Sobre o autor

Alexander Livingston é professor associado do departamento de governo da Universidade de Cornell e autor de Damn Great Empires! William James e a política do pragmatismo.

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