29 de junho de 2020

Como o sistema financeiro está impedindo que a América do Sul enfrente a COVID-19

A resposta sanitária na Argentina frente à pandemia foi muito melhor do que o desastroso governo de Jair Bolsonaro no Brasil. No entanto, à medida que os dois países buscam se recuperar da crise, ambos ficam debilitados por estarem subordinados ao sistema financeiro global e sofrem a ameaça de transformar o choque de hoje em uma crise prolongada nos próximos tempos.

Nicolás Aguila


A frente do Banco Central da Argentina. (Ricardo Ceppi / Getty Images).

Nas últimas semanas, Brasil e Argentina estiveram nas manchetes – mas por razões bem diferentes. A Argentina é elogiada por ter iniciado o lockdown cedo, que já dura mais de 90 dias até então, atualmente o mais longo do mundo, e por seu total de mortes e casos relativamente baixo (2.246 e 122.524, respectivamente, até 19/07/2020).

O Brasil, em contraste, chama atenção devido as perigosas atitudes do presidente Jair Bolsonaro na pandemia, a qual ele definiu como uma “gripezinha.” Sua resposta tem sido permeada de caos: o afastamento de seu Ministro de Saúde após menos de um mês do pedido de demissão de seu antecessor, enquanto lutava publicamente contra governadores que impunham o lockdown e atacava abertamente instituições democráticas, ao conclamar por intervenção militar no Congresso e Supremo Tribunal Federal.

O Brasil está em meio à uma crise política, e o total de mortes e casos, respectivamente em 78.772 e 2.074.860, ainda cresce acentuadamente – tornando toda região da América Latina o principal epicentro de COVID-19. Mesmo os números oficiais estão agora em questão, com Bolsonaro ordenando que o total de casos não seja mais divulgado e apagando dados do site oficial.

Apesar destas diferenças marcantes, os dois países sul-americanos devem enfrentar duras conseqüências econômicas resultantes da pandemia global, além dos próprios problemas domésticos que têm em comum. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) estima uma contração significativa destas economias em 2020: 6,5% na Argentina e 5,2% no Brasil.

A razão para qual Argentina e Brasil tiveram duas abordagens muito diferentes à crise de saúde pública, e que ainda enfrentarão problemas econômicos externos semelhantes, reside no papel em comum que exercem na divisão internacional do trabalho. Em resumo, os dois países são produtores de commodities agrárias e minerais no mercado mundial e possuem uma inserção financeira subordinada no sistema financeiro global.

A crise do COVID-19 reduziu o fluxo de renda da terra e causou uma saída de capital estrangeiro na região, piorando problemas já existentes. A crise global de saúde pública expôs novamente a fragilidade do desenvolvimento capitalista na América do Sul, estabelecendo a necessidade de profundas mudanças estruturais.

Papel no mercado mundial
O papel da Argentina e Brasil na divisão internacional do trabalho, historicamente, tem sido de fornecedores baratos de commodities minerais e agrárias para o mercado mundial. Isso porque condições naturais favoráveis (fertilidade, padrões de chuvas, temperatura, entre outras) permitem que estes países possam produzir mais comida e materiais brutos de forma mais produtiva e com menor custo por unidade.

Uma vez que o preço das commodities agrárias e minerais é estabelecido pela terra de menor produtividade (caso contrário, o preço não será suficiente para manter a produção e haverá demanda solvente insatisfatória), a produtividade extra do trabalho em terras argentinas e brasileiras se torna um lucro adicional, que toma a forma de renda da terra.

Portanto, quando Argentina e Brasil vendem estas commodities no mercado mundial, o preço comercial carrega um fluxo de renda da terra em direção à estes países. Primeiramente, a renda da terra vai direto para o bolso dos proprietários – uma classe que, da perspectiva do processo de valorização, não é nada mais do que um parasita social. Isto é, ela não participa de nenhuma forma no processo de produção e ainda assim extrai uma porção do valor criado neste.

Entretanto, diferentes mecanismos permitem uma redistribuição direta (isto é, por meio da mediação da nação-estado) ou indireta desta renda para capitais industriais e trabalhadores. Por exemplo, tributos em exportação permitem que o Estado capture uma parte da renda da terra dos proprietários e a direcione para capitais industriais por meio de subsídios e para trabalhadores por meio de programas sociais, entre outras medidas.

Como resultado, a expansão da renda da terra permite crescimento da acumulação de capital na Argentina e Brasil para além dos limites impostos pela restrita capacidade produtiva dos capitais industriais locais, que são heterogêneos e de baixa produtividade (em sua maioria, pequenos capitais tecnologicamente atrasados que conseguiram sobreviver compensando sua baixa taxa de lucro via pagamento de salários baixos e apropriação de renda da terra); ao passo em que uma queda relativa no fluxo de renda de terra significa estagnação ou contração destas economias.

Em outras palavras, uma entrada maior de renda da terra fornece um impulso para produzir, o que estimula demanda por trabalho, e portanto, crescimento salarial; por outro lado, quando a renda da terra está estagnada ou reduzida, ocorre o oposto.

Considerando que a renda da terra é inerentemente instável, porque estes países passam por ciclos econômicos e políticos acentuados. A história da Argentina e Brasil aparece, portanto, como um pêndulo que oscila entre períodos de crescimento, incorporados por governos populistas de centro-esquerda que adotam em algum grau políticas pró trabalhadores, para períodos de contração personificados por governos neoliberais que atacam abertamente a classe trabalhadora.

Queda comercial
Considerando o papel exercido pela Argentina e Brasil na acumulação capitalista global, fica mais fácil compreender o efeito da pandemia do coronavírus em suas economias. O impacto mais importante da crise é a contração do fluxo de renda da terra. Isso aparece, primeiramente, como deterioração dos termos de troca, afetando ambos devido à queda nos preços, assim como a diminuição de demanda externa.

A maioria das commodities que constituem as principais exportações da Argentina e Brasil registrou queda de preços desde o início de 2020. De acordo com o Banco Central de cada país, desde o início do ano, o preço dos materiais brutos mais importantes para Argentina caiu em 14% até maio (7% a menos do que mesmo mês no ano anterior), e entre os mais relevantes para o Brasil, houve queda de mais de 3% de janeiro a abril (ainda que fosse 3% a mais do que o mesmo período no ano anterior).

No que se refere à demanda externa, a Cepal estima uma redução de 6% no volume de exportações da região. Estima-se que a queda de exportações para a China seja bem maior (um queda de valor em 24,4%), com impacto significativo na Argentina e Brasil, devido a importância da China enquanto parceira comercial. Em particular, com redução na compra de ferro, cobre, zinco, alumínio, soja e óleo de soja.

Ainda, a queda na demanda chinesa devido à crise de COVID-19 irá afetar as exportações de insumos intermediários e com isso, a produção industrial. A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) projetou que o Brasil pode perder US$ 84 bilhões ao ano por conta da redução em 2% das exportações chinesas em insumos intermediários, afetando particularmente os setores automotivo e de metais – duas atividades importantes para a economia brasileira (e a argentina também). A indústria já registrou importantes quedas de produção nestes dois países em março, comparado com o mesmo mês do ano anterior.

Considerando este cenário, a Cepal estima que o valor de exportações na região irá cair pelo menos 17,6% em toda América do Sul e 15,1% no Brasil.

A queda comercial irá levar a uma contração significativa no influxo de renda da terra à estes países, e portanto na capacidade do Estado de se apropriar e redistribuir, o que deve continuar mesmo nos próximos meses. Por sua vez, isso irá restringir recursos da Argentina e Brasil para implementar políticas anticíclicas na escala vista em economias desenvolvidas.

Inserção financeira subordinada

A posição subordinada da Argentina e Brasil nos mercados financeiros internacionais é o outro lado da moeda de seu papel na produção global. Sua subordinação encontra expressão, antes de tudo, nas dificuldades que enfrentam para adquirir dólares dos EUA ou capital emprestável, denominado nesta moeda, para participarem do comércio global (incluindo importação de meios necessários de consumo e produção), isso sem contar as reservas cambiais. Em algum momento, a necessidade de adquirir dólares excede a capacidade que eles têm de produzir ou pegar emprestado, os levando à um limite de crescimento, o que é tipicamente conhecido como “restrição externa”.

O impacto original no comércio por conta do coronavírus será piorado pela condição financeira subordinada dos países sul-americanos, o que já levou à fuga de capitais e a suspensão de financiamento externo, criando posteriormente escassez de dólares. A UNCTAD estima que o capital acumulado líquido de portfólio não-residente (isto é, majoritariamente investimentos estrangeiros de curto prazo em mercados de capitais acionários e de títulos), o fluxo de saída do Brasil foi o maior do mundo entre janeiro e fevereiro, mesmo que a entidade tenha considerado apenas o acionário, enquanto para os outros países as ações na bolsa também estão inclusa. Em março e abril, o país ultrapassou Índia e Indonésia, mas os fluxos de saída seguiram crescendo, chegando a mais de U$12 bilhões por mês. Entretanto, no final de maio houve um retorno incipiente de fluxos externos ao país, quando o Brasil emitiu bonds [títulos de crédito] de cinco e dez anos, sob taxas de juros mais baixas do que o esperado.

Para a América Latina como um todo, a Cepal estima que, não apenas haverá uma redução no fluxo de capital rumo à região (US$ 80 bilhões a menos em comparação com 2019), como também haverá fuga de capitais da região. Somado a isso, a UNCTAD estima que a região deve vivenciar a maior queda de fluxo em investimento estrangeiro direto, uma redução esperada entre 40% e 55%.

Como resultado, as taxas de comércio na Argentina e Brasil já sofreram uma intensa pressão e perdas significativas de valor. Desde janeiro, o real brasileiro depreciou-se em 33% (chegou a cair até 48% em meados de maio, antes de começar a se recuperar). A queda foi tão acentuada, que até o início de abril, o real era a terceira moeda mais atingida no mundo, atrás de África do Sul e México. Por outro lado, o peso argentino se depreciou em 15%, ainda que a taxa informal de câmbio tenha se depreciado em 61%.

Considerando que a sobrevalorização da taxa de câmbio é o principal mecanismo indireto de apropriação de renda da terra para ambos, Argentina e Brasil, uma desvalorização irá ainda limitar o total que pode ser distribuído entre capitais industriais e trabalhadores. Em resumo, isso se dá porque a desvalorização aumenta o preço de exportados (um crescimento que vai para o bolso de proprietários de terra) enquanto aumenta o preço de importados. Importados mais caros aumentam custos para capitais industriais domésticos que compram meios de produção no exterior. Eles também aumentam os preços de bens de consumo (muitos dos quais não são produzidos localmente) aos trabalhadores, rebaixando seus salários reais.

Para conter a depreciação de suas moedas, os Bancos Centrais da Argentina e Brasil tiveram que vender dólares dos EUA, levando à uma acelerada perda de reservas internacionais. Desde 10 de março até o final de maio, a Argentina perdeu US$ 2,2 bilhões, enquanto o Brasil perdeu US$ 21,9 bilhões (cerca de 5% e 6% de suas reservas totais no início do período, respectivamente), embora o Brasil tenha se recuperado deste ponto mais baixo no início de maio.

Pagando dívidas
Por sua vez, a perda de reservas irá afetar os dois países de diversas formas. Um problema será o pagamento de suas dívidas externas. Este problema é particularmente mais grave para Argentina, que atualmente está em processo de renegociação da dívida, que pode levar ao nono déficit de dívida pública do país. A dívida externa argentina está majoritariamente nas mãos do governo central e representa 73,6% de seu PIB. Isso se deve, em grande parte, ao resultado do grande fluxo de dívida externa adquirida pela administração de Mauricio Macri, que promoveu um impulso fictício à escala de acumulação. Nesta situação, adquirir mais dívida externa como meio de financiamento está quase fora de cogitação para a Argentina.

No Brasil, corporações não financeiras possuem uma parte muito maior de dívida externa, o que pode levar à falências se não houver acesso ao dólar estadunidense. Por exemplo, a petroleira estatal, Petrobras, é a companhia de petróleo mais endividada do mundo e dado o colapso no preço do petróleo, provavelmente enfrentará severas dificuldades.

Neste contexto, adquirir moeda estrangeira já se tornou mais caro para países sul-americanos. O custo de tomar empréstimos, para Argentina e Brasil, cresceu absurdamente desde o início de março. O Índice de Títulos da Dívida de Mercados Emergentes [Emerging Markets Bond Index – EMBI, em inglês], que mostra o spread entre taxas de juros de títulos em dólar e Títulos do Tesouro dos EUA (T-Bills), mais do que dobrou nas semanas que foram do início de março ao fim de abril. Desde então, se recuperou, mas ainda é significativamente maior do que os níveis pré COVID-19. O Índice Corporativo de Mercados Emergentes do Bank of America registrou um aumento similar.

Além disso, a saída em massa de investidores estrangeiros de mercados emergentes foi particularmente acentuada no mercado acionário, adicionando combustível ao incêndio no mercado de bolsas de valores doméstico. No Brasil, a queda foi tão intensa que circuit breakers foram acionados para evitar perdas maiores, seis vezes em oito dias. Neste país, a tendência já havia iniciado em 2019, quando investidores estrangeiros retiraram um montante líquido de R$15,2 bilhões (U$3,7 bilhões) do mercado de ações do país.

Conflitos à vista
Conforme a ameaça da crise da balança de pagamentos se tornou mais premente para ambos países, diversas propostas foram ventiladas sobre como confrontar a situação – propostas típicas que sugerem aumentar a provisão de dólares. É surpreendente que estes debates não estejam focados na economia nacional em si, como já foram no passado. Em vez disso, a característica internacional da crise do coronavírus forçou economistas de direita e esquerda à considerarem a natureza global do capitalismo e a necessidade de soluções com esta abrangência.

Economistas e políticos de direita – da América do Sul e do mundo – estão advogando políticas que basicamente recaem em três categorias:

Primeiramente, uma extensão das linhas de swap de divisas da Reserva Federal, algo que já foi anunciado ao Brasil (provendo até US$ 60 bilhões por no mínimo seis meses), seguindo uma experiência anterior conduzida após a crise de 2008. Similarmente, o Sistema de Reserva Federal dos EUA [FED], iniciou um acordo de empréstimo [repo lending facility, em inglês] com Bancos Centrais estrangeiros, incluindo o Banco Central da Argentina, para emprestar dólares utilizando T-Bills como colateral.

Em segundo lugar, aumento nos empréstimos ou concessões do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial para países em necessidade e algum cancelamento das dívidas à eles.

Terceiro, a concessão de Direitos Especiais de Saque [Special Drawing Rights -SDR], pelo FMI. Todas estas políticas se referem (parcialmente) à necessidades de curto prazo de dólar dos países da região. Entretanto, elas não enfrentam o atual sistema monetário internacional e não oferecem transformações estruturais às finanças globais.

Em contraste, economias progressistas estão, em geral, clamando por três diferentes tipos de políticas. Primeiro, eles demandam o fim das sanções econômicas dos EUA. Estas, não afetam Argentina e Brasil, mas certamente impactam outros países latino-americanos, como Cuba e Venezuela. Segundo, clamam por aumento no controle de capitais. Finalmente, demandam o perdão de dívidas injustas e a provisão de ajuda aos países que buscam reestruturar seus compromissos externos.

Estas políticas também dizem respeito às necessidades de dólar dos países Sul-Americanos, ao passo em que confrontam, em algum nível, o atual sistema financeiro internacional. Não há dúvidas de que seriam parte integral de qualquer estratégia para fornecer o necessário alívio à região no curto prazo. Entretanto, não são resposta para os problemas estruturais da região, na medida em que mantém a posição destes países na estrutura produtiva e financeira da economia mundial.

Como vimos, a crítica situação econômica enfrentada pela Argentina e Brasil é resultado de seus papéis enquanto fornecedores globais de commodities agrárias e minerais e sua inserção subordinada ao sistema financeiro global. Sua posição internacional foi ainda piorada pelo COVID-19, levando à grandes dificuldades econômicas. Enquanto as propostas de políticas irão fornecer apenas um alívio de curto-prazo sem transformar radicalmente a divisão internacional do trabalho e o sistema financeiro global, os problemas, ambos da Argentina e Brasil, irão persistir.

Em vez de depender de velhas fórmulas, este momento requer que economistas de esquerda pensem de forma crítica e ousada – fornecendo soluções radicais para problemas que são estruturais.

Sobre o autor

Nicolás Aguila é membro do projeto de pesquisa do EReNSEP , chamado “A Economia Política da Crise do COVID-19.”

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