2 de junho de 2020

Pandemia, ignorância e novos lugares coletivos

Nosso mal não vem de Emmanuel Macron mas do acoplamento entre propriedade privada e concentração de capital. É possível reinventar uma via comum ao redor de escolas que reúnam intelectuais, trabalhadores do mundo inteiro, artistas, a fim de elaborar ideias novas a partir do real.

Alain Badiou


A Marseille, rue Bénédit. En réponse à leur première affiche "Et après ?", deux artistes proposent une suite. Photo Yohanne Lamoulère. Tendance floue

Tradução / A pandemia atual está ligada de um lado a uma causa natural: a existência do vírus e seus modos de transmissão e subsistência, do morcego ao homem; e também a uma causa “social”: o volume e a velocidade, ambos consideráveis, dos deslocamentos humanos, que fazem com que o vírus circule em algumas semanas da China à Europa e às Américas sem nada que o possa fazer parar, senão o parar de quase todo esse tumulto humano, a parada chamada “confinamento”.

Por parte dos estados burgueses (não existe hoje, infelizmente, nenhum outro), o que acontece? Eles são constrangidos a adotar medidas que ultrapassem sua estrita lógica de classe. É preciso que, da melhor maneira possível, funcione o sistema hospitalar; é preciso poder requisitar quartos de hotel para confinar os doentes; é preciso também limitar nas fronteiras os movimentos das populações que carregam consigo o vírus, etc. Mas através de tudo isso, os estados devem de forma imperativa proteger o futuro da própria estrutura da sociedade em sua integralidade, a saber, sua natureza de classe. Governar se torna um exercício mais difícil do que em circunstâncias menos originais. Felizmente para os estados existentes, o inimigo verdadeiro não é o vírus, mas o comunismo, que é tão fraco hoje em dia que eles podem retirá-lo da ordem do dia, pelo menos a curto prazo, sem maiores danos.

Nós culpamos Macron? No regime parlamentar, que é o regime político natural do capitalismo desenvolvido e que na França é louvado sob o duplo nome fetiche de “democracia” e de “nossa República”, nós vimos outros! Se for preciso retirar Macron, os donos do jogo o farão eles mesmos, sob os aplausos dos descontentes de todo gênero que há dois anos pensam que Macron é a causa de todos seus males. Assim, para dizer tudo, há dois séculos nosso mal provém do acoplamento, que no presente momento é particularmente tenso, entre a propriedade privada (que nós podemos celebrar e prometer à todos) e a “lei de bronze” da concentração do capital (que faz com que naquilo que é decisivo, a propriedade privada lucre muito pouco).

O que me parece perigoso dentro dessa conjuntura, e que favorece todas as formas de reação, é a ignorância das evidências e do pouco crédito dado à razão e aos enunciados científicos estáveis. As verdadeiras ciências constituem um dos raros setores da atividade humana que merecem a confiança, um dos principais tesouros comuns da humanidade, da matemática à biologia, passando pela física e pela química, assim como pelos estudos marxistas quanto à sociedade e à política, sem esquecer as descobertas psicanalíticas quanto aos problemas da subjetividade. O verdadeiro problema é que a confiança na racionalidade é muito comumente ignorante e cega e que, portanto, como se vê hoje em dia, muita gente, talvez a maioria, tenha confiança nas falsas ciências, nos milagres absurdos, nas velharias e nos impostores. Isso torna a situação absolutamente obscura e gera as profecias inconsistentes que dizem sobre o “dia depois”. É o porque dos dirigentes revolucionários de todas as épocas saberem que sem preparação ideológica da opinião, a ação política é muito difícil.

O centro do balanço da crise pandêmica, e aliás de todas as “crises”, deve então ser a constituição, por todos os militantes voluntários, de uma vasta rede de escolas onde o conjunto daquilo que deve ser conhecido para viver, agir e criar em nossas sociedades seria ensinado a todos aquele que desejassem.

Seria preciso fazer uma investigação internacional sobre tudo o que pode já existir nessa direção. Investigação tão necessária quanto delicada que se debruce sobre as formas falsas, associativas ou oficiais, que não estão senão, caridosas e falsamente humanistas, não ao serviço da humanidade real, mas de uma integração à ordem existente e às suas desigualdades constitutivas.

Partindo de minha própria experiência, posso dizer que a Ecole des actes, criada em Aubervilliers com o suporte do Teatro da Comuna, me parece, ela, propor um lugar bem orientado para as tarefas de transmissão e de invenção que se impõem hoje em dia. Essa escola reúne populações para quem o encontro é essencial: os intelectuais, os trabalhadores advindos do mundo inteiro, artistas, assim como mulheres, homens e crianças dessa cidade multinacional. Esse encontro se organiza ao redor de “assembleias” – lugares coletivos de elaboração de novas ideias a partir da hipótese da “lei de vida dos povos” que foi formulada, reconhecida e respeitada. Antes mesmo da epidemia, lá se concebia e se aprendia simultaneamente, a partir das experiências e questões do público popular, em seu núcleo, proletários nômades (os mal nomeados “imigrantes”), bem como as coisas que, dentro das diversas formas de racionalidade, são necessárias para sobreviver, para falar, para ler e para pensar.

As escolas desse tipo poderiam organizar igualmente – A Ecole des actes tenta a experiência – ajudas materiais e administrativas àqueles que precisam, como uma cantina para refeições quentes, uma dispensa para primeiros socorros, uma reflexão concreta sobre o habitat, conselhos para obtenção de direitos, aqueles que existem e aqueles que devem existir em função da lei de vida dos povos. Assim como outras coisas que eu não penso, mas que eles vão inventar.

Como se pode ver, a forma “assembleia” está no centro do dispositivo, e não por estar ligada aos mestres. Sob sua vertente mais “política”, no sentido amplo e aberto que se impõe hoje em dia, a Ecole des actes organiza todas semanas – eu assisti algumas vezes – uma assembleia dita geral, em que qualquer um que tiver qualquer coisa a dizer ou um questão a fazer, ou uma crítica, ou uma nova proposição, pode intervir. As intervenções são traduzidas nas línguas faladas na escola. Eu vi que se traduzia em inglês (para as pessoas originárias de Bangladesh), em soninké, em fulo e em árabe. É igualmente uma pista internacionalista muito necessária.

Talvez se poderia demandar a esta escola e a todos outros grupos do mesmo gênero, onde quer que estejam, que elas organizem de tempos em tempos outras assembleias abertas, onde se discutiríamos os próprios princípios, a necessidade e o futuro desse gênero de instituição. Certamente, a política exige o controle do tempo e o sangue frio que protege dos embalos utópicos, bem como das profecias sobre o fim do mundo. Contudo, combinando uma visão da situação geral e as lições tiradas do exemplo concreto do qual eu falo, creio que se pode racionalmente dizer que, em um futuro acessível ao pensamento, uma espécie de federação internacional das escolas seria em seguida uma etapa importante para se retirar, ao menos alguns elementos essenciais, algumas linhas de força, de um programa político novo, situado além das nossas falsas “democracias” e da derrota dos comunismos de estado.

Se felizmente uma discussão nova se abrir a partir desse tipo de proposta, a pandemia terá uma chance de não ter sido biologicamente mortífera, intelectualmente miserável e politicamente estéril.

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