12 de julho de 2020

A ameaça às liberdades civis vai muito além da "cultura do cancelamento"

O debate em torno da “cultura do cancelamento” já cheira a mofo, mas existem ameaças reais às liberdades civis na sociedade atual. A esquerda deve reivindicar o legado da liberdade de expressão para alargar seu escopo e trazer para o debate a sua dimensão de classe.

Leigh Phillips




Tradução / Nos últimos anos tem havido um acentuado e inquietante aumento na disposição de uma leva de atores tanto à esquerda quanto no centro e à direita, tanto no governo quanto na sociedade civil, de engajar-se em práticas e atitudes de censura e de abandono da presunção de inocência, do princípio do devido processo legal e outras liberdade civis nucleares.

Algumas iniciativas têm sido realizadas por diferentes setores para conter essa tendência, como o esforço recente concentrado em uma carta aberta da revista Harper, lamentando o fenômeno. A carta, assinada por algo em torno de 150 intelectuais, escritores e acadêmicos, incluindo figuras como Noam Chomsky, Margaret Atwood e Salman Rushdie provocou respostas polarizadas.

O editor da revista Current Affair, Nathan Robinson, por exemplo, argumenta que tudo não passaria de um mito propagado pela direita, uma calúnia contra a esquerda – e que aqueles que perpetram os supostos atos de censura são, na verdade, relativamente impotentes e que quando se investiga os incidentes da tal “censura” da “cultura do cancelamento”, descobre-se que, no fim das contas, os alvos não estão realmente em apuros.

Como a carta da Harper era bem inofensiva e se recusava a mencionar qualquer incidente específico, Robinson selecionou uma pequena amostra de acontecimentos que ele imagina que devem corresponder àquilo que os signatários estão comentando a respeito e tenta demonstrar que esses incidentes foram insignificantes e inconsequentes, apenas nos distraindo de questões reais.

A verdade é que ao limitar a discussão aos atos de linchamento virtual por parte de uma turba extremamente conectada – como, por exemplo, nas preocupações do autor britânico Jon Ronson sobre o constrangimento público no Twitter ou no mal-definido termo da “cultura do cancelamento” – perde-se completamente de vista a atmosfera muito mais ampla de uma ameaça agressiva e crescente às liberdades civis.

É compreensível que uma breve carta aberta não possa oferecer um catálogo de episódios, mas ainda assim é lamentável, uma vez que isso permite que Robinson e outros mantenham uma atitude de “não há nada aqui para se ver, dispersar”.

Quando, de fato, consideramos tal catálogo, descobrimos que é insustentável negar que isso esteja acontecendo ou desmerecer esses fatos como inconsequentes. São exemplos demais, simplesmente.

Reconhecendo o problema

Considere os esforços para banir das universidades da América do Norte os ativistas do Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), outros oponentes do atual governo israelense e críticos do sionismo em geral. Desde 2016, a legislação de Ontário tem sido o lugar de múltiplas tentativas de condenar e criminalizar as atividades dos BDS e pressionar a administração dos campi a cancelar as “Semanas do Apartheid Israelense”.

Em 2014, a Universidade de Illinois em Urbana-Champaign recuou em uma oferta de emprego a um professor de inglês, Steven Salaita, após alguns professores, alunos e doadores afirmarem que seus tweets críticos à administração de Netanyahu durante a guerra de Gaza seriam anti semitas. Por causa dessa controvérsia, ele foi expulso da carreira acadêmica e agora trabalha como motorista de ônibus. O cientista político Norman Finkelstein, outro crítico da ocupação israelense, teve a posse negada na Universidade de Depaul em 2007, após uma campanha bem sucedida da Liga Anti-Difamação e do advogado Alan Dershowitz. De forma parecida, ele também enfrenta problemas em encontrar empregos e diz ter dificuldades em pagar o aluguel.

Quando apela-se para a liberdade acadêmica e levantam-se questões sobre o devido processo em todos esses casos, a resposta da direita pró-Likudnik tem ecoado a retórica de “não dar plataforma” empenhada pela esquerda, argumentando que a crítica ao governo de Israel seria um discurso de ódio e que, portanto, não deveria ser protegido (e, de fato, no Canadá, ao contrário dos Estados Unidos, discursos de ódio não são constitucionalmente protegidos). Eles também repetem as demandas da esquerda liberal por uma deferência identitária do tipo “lugar de fala” (na qual apenas os grupos oprimidos implicados em determinada questão poderiam se manifestar sobre ela), afirmando que os não-judeus não conseguem compreender o sofrimento judeu e por isso deveriam calar-se e ouvir.

Apesar do cancelamento, Salaita não endossa a carta da Harper. Talvez isso seja compreensível porque o professor de inglês Cary Nelson é um dos signatários e estava também entre os que lideraram a denúncia contra a contratação de Salaita. Deve ser igualmente irritante para ele que o colunista de opinião Bari Weiss, outro signatário da carta da Harper, tenha passado seus dias como estudante na Universidade de Columbia fazendo campanha contra professores pró-Palestina por supostamente terem intimidado estudantes judeus sob o disfarce Orwelliano do [estatuto] “Columbia pela Liberdade Acadêmica“.

Mesmo que Nelson e Weiss possam ser acusados de hipocrisia galopante, a hipocrisia por si só não é o bastante para diminuir o argumento da carta em nome da liberdade de expressão. Apesar do cancelamento de Finkelstein, ou exatamente porque ele sabe que o seu cancelamento é uma violação da liberdade acadêmica, ele se mantém um sólido defensor da liberdade de expressão. Ele entende que a solução para o seu próprio caso de censura não se resolve com a censura daqueles que o censuraram, mas envolve o fim de toda censura.

Esse tipo de reviravolta nas vidas e na capacidade de sustento das pessoas acontece não apenas na arena do conflito Israel-Palestina, como no caso de Salaita e Finkelstein. Em alguns casos, as tentativas pela direita religiosa de “retirar a plataforma” de alguém são ativamente defendidas pela esquerda, tal como aconteceu com a feminista iraniana Maryam Namazie que em 2015 foi silenciada por conservadores islâmicos na Universidade Goldsmiths e a sociedade feminista da universidade defendeu o direito deles de usar seu veto de fala.

Há quem negue que o atual clima de invisibilização e diminuição das expectativas e da auto-estima feminina representa um tipo de censura, pois esta seria algo que só o Estado poderia impor; outros admitem que a censura também pode ser realizada pelas elites. Porém, ambas as posições negam que a censura seja algo que as multidões possam fazer. Ainda assim, existem muitos casos que envolvem escolas independentes, ou seja, claramente não se trata da ação do Estado, mesmo que seja obviamente uma censura. E os conservadores islâmicos em Goldsmith não podem de forma alguma ser descritos como membros da elite. Portanto, sugerir que pessoas comuns não possam participar em atos de censura ou na reprodução de um ambiente iliberal é fechar os olhos para as formas com que tais atitudes podem operar em múltiplos níveis na sociedade.

As universidades não são os únicos ambientes dessa luta. Ao longo das últimas duas décadas, governos conservadores como os de George W. Bush, do canadense Stephen Harper, do australiano Tony Abbott e, atualmente, de Donald Trump têm repetidamente amordaçado cientistas do clima e geologistas, bem como pesquisadores da conservação biológica.

Os conservadores que historicamente tenderam a se opor à livre manifestação e que consideram a União Americana pelas Liberdades Civis (UALC) como uma das principais insígnias no seu panteão de vilões, subitamente têm se repaginado como os grandes defensores da liberdade de expressão. Contudo, se eles defenderam alegremente os direitos do provocador Milo Yiannopoulos, um extremista de direita, de emitir comentários xenófobos e misóginos, foi só ele começar a falar sobre as bagunças e complicações da idade de consentimento entre homens gays nos EUA que o tapete dele foi puxado.

Donald Trump tem se empenhado em fechar o cerco contra a estratégia sindical conhecida nos EUA como “espalhar o sal” em ambientes de trabalho – a prática centenária de fazer com que algum aliado das causas sindicais seja contratado em um lugar que está sendo mirado para um processo de sindicalização. Mais notoriamente é o mesmo homem que, ao Monte Rushmore, denunciou uma “revolução fascista de extrema-esquerda [sic]”, convocando um “debate aberto e livre”, e que pouco tempo depois acionou a Guarda Nacional e suas bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os protestos pacíficos das ruas de Washington em nome de uma sessão de fotos.

Poderia-se esperar que a esquerda liberal estivesse entre os defensores mais ferrenhos da liberdade de expressão nos ambientes de trabalho e dos direitos dos trabalhadores de dizer qualquer coisa que desejem, mas muitos têm demandado de maneira enérgica que empregadores demitam trabalhadores por causa de falas supostamente reacionárias fora do trabalho, advogando pela rescisão voluntária de contratos e aliando-se à indústria multibilionária do “treinamento de sensibilidade” de departamentos de recursos humanos supervisionados e organizados pelos patrões, impondo verticalmente workshops nos quais os trabalhadores ficam petrificados, com medo de dizer qualquer coisa errada.

É um mistério como esse aumento dos poderes semifeudais dos patrões de vigiar o todo tempo os discursos dos trabalhadores poderia trazer avanços para o movimento sindical. Ao invés disso, eles deveriam juntar forças para organizar os sindicatos como baluartes contra a censura nos ambientes de trabalho e como as grandes armas que possuímos para alcançarmos igualdade sexual, racial e econômica e, se for o caso, para pressionar pela ampliação da proteção constitucional da liberdade de expressão nos ambientes de trabalho.

Governos autoritários como a administração conservadora islâmica do turco Recep Tayyip Erdoğan tem demandado que comediantes que fazem piadas sobre ele sejam censurados por outros governos. Os alemães acataram o pedido. De maneira similar, a China convenceu gigantes da tecnologia e mesmo a NBA a censurar discussões sobre direitos humanos no país e fora dele. Hollywood, não menos condescendente, deleta dos filmes qualquer coisa que Pequim desaprove, de referências a casos de tortura realizados pela polícia chinesa a aparições do Ursinho Pooh (um símbolo da oposição na China).

Enquanto isso, muitos membros da esquerda liberal, como insetos que votam no inseticida, exigem cada vez mais às companhias de tecnologia que removam a plataforma de “discursos de ódio” – só para descobrir quão facilmente as suas próprias expressões acabam também categorizadas como discurso de ódio e sendo derrubadas (como aconteceu quando vários grupos de esquerda foram expulsos do Reddit junto com grupos a favor de Trump).

Governos liberais não têm se saído muito melhor. O ex-presidente Barack Obama pode ter emitido um discurso salutar criticando a cultura do cancelamento, mas ele também acionou o Ato de Espionagem de 1917 em processos contra vazamentos e delatores, como Chelsea Manning e Ed Snowden – mais vezes do que todas as administrações anteriores juntas.

Secularistas na França e em Quebec têm produzido uma enxurrada de leis banindo burcas e véus de várias formas – e, assim, lançando mão da mesma prática de dizer para as mulheres o que elas podem ou não vestir da mesma forma que aqueles que as forçam a usar a burca ou o véu.

Analogamente, o governo francês do presidente de centro-esquerda François Hollande marchou nas ruas ao lado de milhões para defender a liberdade de expressão após os ataques ao Charlie Hebdo, mas processou alunos de escolas que manifestaram simpatia pelos agressores.

Grupos libertários de direita merecem algum crédito por terem criticado grande parte dessa situação, mas mantêm um súbito silêncio quando o assunto é a censura realizada pelo Facebook, Google, YouTube, Twitter e Reddit. Apesar dessas plataformas de redes sociais terem se tornado a esfera pública de fato, essas companhias são privadas, dizem os libertários de direita. Simplesmente, é assim que o mercado funciona. A postura deles é um simples “se você não gosta do que eles estão fazendo, então não aceite os Termos de Serviços deles”.

O avanço galopante da censura e da restrição das liberdades civis não é algo restrito à alta política e ao Vale do Silício. Políticos conservadores locais em cerca de dois terços da Polônia, país membro da União Europeia, declararam suas regiões como “zonas livres de LGBTs” e tentaram banir as Paradas do Orgulho LGBT, ao passo que trogloditas de extrema-direita as atacavam violentamente. No Reino Unido, em municípios governados por todo tipo de tendência política, as polícias e empresas de segurança privada têm feito seguidos esforços para restringir panfletagens de ONGS, ativistas, grupos de arte e negócios, bem como estabelecer controle mais severos sobre mendicância, performances de rua, jogos de bola, “vestuário inadequado” e outras “perturbações” a partir de instrumentos como as Ordens de Proteção do Espaço Público e leis de comportamento antissocial. Além disso, em qualquer momento em que haja algum grande encontro ou evento internacional, as cidades agora restringem os protestos às “zonas designadas para a livre manifestação”.

Adicionalmente, conforme qualquer organização de proteção aos direitos dos jornalistas como a Reporters Sans Frontières ou o Comitê de Proteção dos Jornalistas dirá a você, tem havido uma mudança radical no terreno da guerra nas últimas duas décadas, na qual tanto os atores estatais quanto os não-estatais cada vez mais enxergam os jornalistas como alvos legítimos: do bombardeio de estações de TV no Iraque, passando pelo encarceramento de jornalistas na Turquia, pela prisão daqueles que expõe a autocracia do Kremlin na Rússia até os cartéis Mexicanos que silenciam equipes de reportagem que investigam o desaparecimento de mulheres. Enquanto isso, Trump aproveita qualquer oportunidade para atacar a mídia como um inimigo do povo, chegando a encorajar seus apoiadores a agredir fisicamente jornalistas. Alguns ativistas do nosso lado parecem compartilhar a opinião similar de que os ataques à mídia não estariam fora das regras do jogo.

A natureza da ameaça

Em resumo, há uma epidemia de censura e uma retração generalizada de um ethos de liberdades civis em quase todos os países, em grupos de quase todas as afinidades políticas e em todos os níveis da sociedade. E se a esquerda liberal nega que um iliberalismo esteja em curso quando somos nós que o perpetramos, como faz Robinson, então não teremos nenhuma base de sustentação quando falamos dos inúmeros outros exemplos. Liberdades civis são para todos e, acima de tudo, para aqueles com os quais nos opomos.

Alguns desses exemplos são claramente piores que outros, mas nós não perdemos nosso direito de liberdade de expressão apenas quando irrompem casos óbvios e extremos de censura. Ele se perde nas pequenas violações, nos casos-limite e naqueles em que todas as pessoas razoáveis concordariam que determinado discurso é de fato um discurso de ódio.

David Goldberg, advogado judeu da UALC que era tão comprometido com a liberdade de expressão ao ponto de ter representado um grupo de nazistas de Chicago em 1977 pelo direito deles realizarem uma marcha por Stokie, em Illinois, reconhece que é em casos assim ou precisamente em casos assim que se vence ou perde a luta pela liberdade.

Trata-se de uma vergonha especificamente para a esquerda, historicamente a primeira campeã das liberdades civis. Hoje, muitos progressistas não têm consciência de que a luta por liberdade de expressão foi um projeto central da esquerda e algo a que a direita historicamente ofereceu resistência. Nós conhecemos a articulação pioneira dessas liberdades por Thomas Paine e John Stuart Mill, mas toda a filosofia de Karl Marx emergiu de sua fúria, ainda quando jovem, com a censura da imprensa oficial prussiana; Frederick Douglas reconhecia que não poderia ter havido qualquer luta pela abolição da escravidão sem a defesa da liberdade de expressão e que uma retração dessa liberdade seria um erro duplo, pois isso “viola tanto o direito do ouvinte quanto de quem fala”; Eugene Debs foi julgado e condenado por insubordinação e o julgamento dele e de seus camaradas colocou em jogo a cristalização da salvaguarda legal da proteção da liberdade de expressão americana, depois invejada por nações ao redor do mundo; e a Nova Esquerda e a contracultura dos anos 1960 que, de muitas formas, deu a luz à esquerda atual, teve início com o Movimento Pela Liberdade de Expressão em Berkeley, em 1964, sob a liderança de gigantes como Mario Sávio.

Como consequência disso, um número desconcertante de progressistas modernos, especialmente os mais novos, tem se tornado indiferente à liberdade de expressão ou, o que é pior ainda, passam a enxergar a defesa da liberdade de expressão como algo fora das fronteiras da esquerda e mesmo como uma arma de opressão.

Isso é um desastre histórico. Ao longo do século XX, dos banimentos de Stalin à Revolução Cultural Chinesa e aos Campos da Morte no Camboja, foi justamente quando a esquerda abandonou as liberdades civis e abraçou o pensamento de manada a serviço de algum “bem maior”, que aqueles que reivindicaram o manto da emancipação perpetraram as piores atrocidades.

Afirmando que é preciso armas e campos de concentração para algo ser considerado totalitário, Robinson desaprova tais comparações com o Maoísmo ou a crítica que Matt Taibbi, jornalista da Rolling Stone, fez aos “Robespierres de Twitter“. Mesmo assim, se você ler os relatos pessoais comoventes daqueles que, assim como Victor Serge, passaram por expurgos e julgamentos encenados, ou como Gao Yuan foram submetidos às sessões de humilhação pública pela Guarda Vermelha, ou como Dith Pran passaram pela doutrinação coletiva do Khmer Vermelho, você percebe que existe um padrão de relações interpessoais patológicas que se repete: o medo de falar, a pressão dos pares, a busca por status por meio da denúncia, um ímpeto de denunciar alguém antes de ser denunciado, autocrítica (não em um sentido positivo), humilhação pública, perseguição de hereges, demonstrações exageradas de devoção e declarações de que certas identidades (pequena burguesia, kulaks, “aqueles que usam óculos”, etc.) não seriam confiáveis epistemicamente, de maneira intrínseca. Esses horrores do passado obviamente precisaram de condições materiais e econômicas específicas para vir à tona, mas eles também foram construídos sobre um alicerce de dinâmicas psicológicas intragrupais mórbidas.

Nesses eventos, as execuções, torturas e prisões não eram simplesmente o produto de uma força externa ou alienígena sobre suas vítimas, como acontece no caso de invasões realizadas por tropas estrangeiras ou em um golpe, mas (e talvez de maneira mais aterrorizante) eram também um processo horizontal que envolvia a quebra da confiança entre amigos, velhos camaradas, colegas de trabalho, estudantes e professores, maridos e esposas e mesmo entre pais e seus filhos.

Claro, o iliberalismo intragrupo é algo comum a todos os humanos e não algo específico e único da esquerda. Nós também vemos uma dinâmica grupal similar quando revolvemos os acontecimentos históricos não protagonizados pelo nosso campo político. A caça às bruxas no século XVI em Salem foi outra ocasião notória de terror intragrupo, dinâmica que Arthur Miller adaptou para o teatro como uma alegoria do Macartismo e suas listas negras. Aqui, podemos observar mais uma vez, contra os argumentos de que atores não ligados ao estado não seriam capazes de se envolver em ações de censura ou em iliberalismo, que nem os estúdios de Hollywood que demitiram ou deixaram de contratar atores, diretores e roteiristas de esquerda, nem os sindicatos burocráticos que expulsaram os supostos comunistas, eram agentes estatais.

Ainda assim, como a esquerda é o berço das liberdades civis, temos uma responsabilidade especial na defesa contra o iliberalismo. Após as experiências do século XX, sempre teremos a tarefa solene de manter a guarda contra qualquer recorrência das dinâmicas de grupos mórbidas que ajudaram a torná-las possíveis – e, antes de qualquer outro lugar, no interior dos nossos próprios movimentos.

Há uma necessidade de fazer os progressistas que apoiam a liberdade de expressão saberem que não estão sozinhos e de lhes dar confiança para se manifestar contra a censura e o i-liberalismo em suas universidades, organizações, comunidades ou em seja lá onde for e venha de onde vier, seja da direita, do centro ou da esquerda, do Estado ou da sociedade civil.

Todavia, além da necessidade da esquerda de reconhecer que a liberdade de expressão e as liberdades civis são pré-requisitos para sua própria capacidade de organização, não podemos deixar a discussão no nível dos princípios liberais.

Por mais necessárias que sejam as liberdades liberais, os socialistas sempre compreenderam que elas não podem se realizar no interior de uma sociedade de classes. O liberalismo contradiz a si mesmo ao insistir no livre mercado e no direito de posse de propriedades, o que enfraquece o exercício igualitário de todas as outras liberdades liberais. Seja para um homem pobre ou rico, não existe qualquer restrição legal na sociedade liberal que impeça a propriedade de uma prensa de impressão, mas apenas um desses homens tem, materialmente, a capacidade e a liberdade para fazer uso da imprensa. Não vai existir uma verdadeira igualdade perante a lei enquanto para além da lei houver resquícios de desigualdade de classe.

No primeiro artigo impresso de Karl Marx, publicado em 1842, um relato sobre os debates acerca da liberdade de imprensa na Gazeta Renana, ele ataca a censura da imprensa e também os defensores das concepções burguesas de liberdade de imprensa, que em sua visão sofriam de “pseudo-liberalismo” ou “liberalismo pela metade”:


A imprensa francesa não é muito livre; não é livre o suficiente. Ela não está sob uma censura intelectual, para ser preciso, mas sob uma censura material… Assim, a imprensa francesa está concentrada em poucos lugares; e se o poder material concentrado em poucos lugares tem um efeito diabólico, como poderia ser de outro modo a respeito do poder intelectual?

Ou seja, conforme explica Hal Draper, o socialista democrata e militante do Movimento Pela Liberdade de Expressão de Berkeley da metade do século XX, em sua exposição de 1977 sobre o que levou Marx a ir além das concepções liberais radicais de sua juventude: “amarrar o exercício da liberdade, portanto, à posse de dinheiro o suficiente para operacionalizá-la é também uma forma de censura, e que não deve ser tolerada”

Dito de outra forma, as liberdades civis podem ser as condições necessárias para que a esquerda seja capaz de apresentar argumentos e se organizar pela construção de uma sociedade igualitária, mas a construção de uma sociedade igualitária é a condição necessária da realização das liberdades civis.

Portanto, a limitação da carta da Harper não é a sua denúncia a censura ou seu centrismo liberal anódino, mas o fato de que ela não leva a sério o suficiente os valores que professa. Na luta pelas liberdades civis, Marx estava certo: nem a censura nem um “liberalismo pela metade” servem.

Sobre o autor

Leigh Phillips é articulista científico e jornalista especializado em questões sobre a União Europeia. É autor de "Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts" ("Ecologia da austeridade e os viciados em pornô do colapso") e co-autor de República Democrática do Walmart (Autonomia Literária 2020).

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