O presidente destituído da Bolívia, Evo Morales, conta a Jacobin sobre sua experiência com o golpe militar de novembro passado - e por que seu partido MAS está prestes a vencer as eleições presidenciais deste mês.
Créditos da foto: Evo Morales (Ariel Feldman) |
Tradução / O destino de Evo Morales após o golpe militar de 10 de novembro de 2019 e seu subsequente exílio na Argentina segue o mesmo padrão sombrio de muitas outras experiências progressistas, de esquerda ou anti-imperialistas na região. Pode-se pensar em paralelos com a maneira como os militares acabaram com o governo de Salvador Allende no Chile, em 11 de setembro de 1973, bem como com a tentativa de golpe contra Hugo Chávez na Venezuela, em abril de 2002, ou a que sofreu Rafael Correa no Equador, apenas oito anos depois. Pontos em comum também podem ser encontrados ainda mais longe na história: por exemplo, com o golpe que depôs Juan Domingo Perón na Argentina, em 1955, forçando seu exílio e colocando em prática uma política de censura tão brutal quanto irracional (e, visto em retrospectiva, também vão).
Hoje, Evo Morales e seu partido MAS (Movimento Ao Socialismo) se encontram em uma situação que, embora conhecida, não deixa de surpreender. O período desde o golpe de novembro de 2019 foi definido por uma repressão feroz, pelo massacre de dezenas de militantes e ativistas, por tentativas de banir o MAS das próximas eleições e por uma campanha de fake news e manipulação da mídia sem precedentes, estratégias visando distorcer, manchar e demonizar os 14 anos de governo de Evo Morales.
Apesar de tudo isso, o MAS continua a representar a maior força política do país. As últimas pesquisas indicam que a candidatura de Luis Arce Catacora, com David Choquehuanca como vice, a dupla que representa o MAS, ganharia as eleições no primeiro turno, com 44,4% de intenção de votar, superando – mais uma vez – o neoliberal Carlos Mesa, derrotado por Evo Morales nas eleições de outubro de 2019. Esse panorama, porém, aparece nublado por uma constatação: eleições livres e justas se apresentam como algo improvável, e a repetição de um cenário que envolve a presença e interferência da OEA (Organização dos Estados americanos) por meio de seu secretário-geral Luis Almagro, é uma possibilidade certa.
A revista Jacobin América Latina conversou com Evo Morales Ayma sobre esses temas e sobre o que esperar da Bolívia no futuro, mas também sobre sua história pessoal, seus primeiros passos na política e os planos que tem para o que está por vir.
Bruno Sommer: Durante a Guerra da Água em Cochabamba, o senhor foi um líder sindical que resistiu ao governo neoliberal de Jorge Quiroga. A luta daqueles anos pode ser comparada à resistência atual nos trópicos de Cochabamba?
Evo Morales: Houve diferentes fases de luta desde 1995, das quais me lembro perfeitamente… antes, o país vivia de um golpe atrás do outro. Em 1978, eu cumpri o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas. Um breve parêntese: eu fui o único presidente civil da Bolívia que passou por um quartel. Os presidentes civis do passado somente compravam as livretas de serviço militar, porque para ser uma autoridade eleita é importante ter uma livreta comprovando que está em dia com o serviço militar. Em 1978, como soldado, conheci três presidentes: Hugo Banzer Suárez, quando entrei no quartel, depois houve um golpe no meio do ano, do qual surgiu o governo de Juan Pereda Asbún, e em novembro, eles me enviaram para a Polícia Militar, e tive que fazer a segurança do Comando Geral do Exército. Quem comandava a instituição era o general (David) Padilla Arancibia. Eu fui para casa uma noite, e quando acordei no dia seguinte acordei no dia seguinte ele já era o presidente. Naquele ano, três presidentes. No ano seguinte, completei o serviço militar, mas antes presenciei um quarto presidente, e um quarto golpe… (Alberto) Natusch Busch e todos os partidos de direita participaram daquele golpe.
Por exemplo – os bolivianos sabem disso muito bem –, havia um famoso líder do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), Guillermo Bedregal, chanceler de Natusch Busch, que deu um golpe. Esse golpe de estado durou apenas duas semanas. A frente camponesa e o sindicato boliviano começaram com bloqueios de estradas e uma greve geral por tempo indeterminado. Foram 200, 300 mortos e o golpe falhou… mas tentamos recuperar a democracia.
Demoraria para contar tudo o que lembro, mas sei que em 1985, começou o modelo neoliberal e havia professores que pediam mais atenção à educação, porque ela estava sendo privatizada. A Guerra da Água, a Guerra do Gás, a Guerra da Folha de Coca… eu diria, antes de tudo, que a Guerra da Folha de Coca teve uma importância muito significativa: não foi só defender a economia. Fundamentalmente, era para defender a dignidade da soberania, pois a pretexto da luta contra o narcotráfico eles instalaram uma base militar em Chimore. Então, para mim, o combate ao narcotráfico segue um objetivo: são interesses de natureza geopolítica, de controle territorial, a pretexto do combate o narcotráfico. Existem até muitos ex-agentes da DEA (agência antidrogas dos Estados Unidos) que denunciam a guerra contra as drogas como falsa.
Mas vale a pena falar sobre o seguinte: um grupo de jovens camponeses e lideranças indígenas, desde o final dos Anos 80 e parte dos Anos 90, estamos nos perguntando quanto tempo… quanto tempo eles vão nos governar de lá de cima? Por quanto tempo os de fora vão nos governar? Quando será a nossa vez de governarmos nós mesmos? Por quanto tempo os planos e políticas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial continuarão a ser impostos? Por que essas políticas não podem pertencer aos bolivianos? A Bolívia sempre teve poder social, poder sindical e poder comunitário. Mas quando se tratava de perguntar como nacionalizar nossos recursos naturais e nossos serviços básicos, o poder comunitário ou o poder social não eram suficientes. Era essencial promover um instrumento político. E desde o movimento camponês dos trópicos, mas sobretudo quéchuas, aimarás, mais de 30 nacionalidades indígenas, nós propomos: devemos gestar, devemos promover, devemos organizar um instrumento político de libertação do povo, para o povo, com um programa de aldeia.
Aqui, eu quero que você saiba, tivemos que romper com a doutrina do sistema capitalista. No sistema capitalista, os movimentos sociais são terroristas. Dizem também que o sindicato não pode fazer política, a pretexto de uma suposta “independência sindical” e “pluralismo ideológico”. Mas nós dissemos “não”, nós do campo dissemos “se nos organizamos num movimento social, é por reivindicações perante o empregador privado e o empregador do Estado”. Também dissemos que “temos direitos políticos, não podemos ficar apenas com os sindicatos… se queremos transformações realmente profundas, é importante procurá-las também nas estruturas”. E até tivemos problemas com alguns trabalhadores, que ainda estavam convencidos, por aquele discurso de independência sindical, de que o sindicato não podia fazer política. Nós, do movimento indígena, dizíamos que “temos o direito de nos engajar na política, temos o direito de que outros votem em nós, e que nem sempre sejamos nós os que votamos em outras pessoas, pessoas que depois nos prejudicam, abusam de nós, saqueiam nossos recursos naturais”.
O (Hugo) Banzer e o (Jorge) Quiroga vieram ao governo, privatizaram a eletricidade, as telecomunicações, entregaram os nossos recursos naturais (como o gás) às multinacionais… Houve várias vezes isso, com os dirigentes nacionais da COB (Central Operária Boliviana), e também com os das confederações camponesas, fui negociar. Nossa abordagem aos governos neoliberais sempre foi a mesma: a necessidade de nacionalizar os recursos. E a resposta que obtivemos também foi a mesma: que quando o gás está no subsolo, é dos bolivianos, mas quando sobe à superfície não nos pertence mais. Os contratos – inconstitucionais – são lidos textualmente: “o dono adquire o direito de propriedade na cabeça do poço”. Quem é o dono? A multinacional. Não havia controle do Estado sobre a produção, sobre quantos milhões de metros cúbicos por dia, sobre nada… e daí vem a nossa proposta: 82% da receita fica com a empresa e 18% vai para os bolivianos.
Então, em 2005, nas eleições, tínhamos propostas muito simples: politicamente, a refundação da Bolívia; economicamente, nacionalização; socialmente, a redistribuição da riqueza. O primeiro ia ser difícil. Durante a Assembleia Constituinte, os grupos conservadores não queriam sair do estado colonial para ter um estado plurinacional. Foram três anos de luta, de tentativas de golpe… tentaram dividir a Bolívia, mas graças à unidade do povo, nós vencemos.
A questão da nacionalização era mais simples: ao vencer, assinei o decreto supremo de nacionalização. Era 1º de maio de 2006. E minha mão não tremeu. Para começar, a questão do gás. E o que dissemos: “se as petroleiras querem ficar na Bolívia, será como sócias, não como patrões ou como donas de nossos recursos naturais”. Primeira condição. Segundo: se ficam, ficam com 18%; agora 82% é para o Estado. Algumas empresas saíram, outras ficaram. O investimento privado, nacional ou internacional, é garantido pela Constituição. Porque somos uma economia plural pela Constituição, mas sob as regras do Estado boliviano. E a partir desse momento, a situação econômica do país mudou. Então, não foi apenas uma luta pela água, pelo gás, mas um conjunto de lutas para acabar com essa doutrina norte-americana. Repito: para o sistema capitalista, os movimentos sociais são terroristas e não temos o direito de fazer política. Bom, isso está errado.
Denis Rogatyuk: Nas eleições presidenciais de 2002, você foi derrotado por Gonzalo Sánchez de Lozada. Houve uma campanha de falsificações, medo e intimidação contra você e o MAS. Hoje, algo semelhante é observado contra Luis Arce. Que lições você retira de agora, olhando para aquela campanha eleitoral de 2002?
Evo Morales: Em 1997, eles propuseram que eu fosse candidato à presidência. Recebi muitas acusações, muita difamação do governo do Sánchez de Lozada. Fui proclamado e renunciei à candidatura. O discurso dele dizia: “como pode um traficante, um assassino, ser presidente?”. Então, eu desisti daquela vez, era muita difamação. Mas em 2002, o consenso para que eu fosse candidato era muito maior. Tive dúvidas se conseguiria uma boa votação. A imprensa internacional dizia que o MAS poderia obter 8% dos votos, e todos os meios nacionais davam entre 3% e 4%. Para essa eleição, Gonzalo Sánchez de Lozada se aliou ao Movimento Bolívia Livre, que antes, em 1989, estava na Esquerda Unida, eram social-democratas, e estavam baseados em ONGs, principalmente de capitais europeias… fazer política por dinheiro, segundo a minha experiência, não tem futuro. O Movimento Bolívia Livre acabou, esse partido não existe mais. Mas, naquela época, era famoso e em aliança com o Partido Socialista, também sediado em Oruro… eram cinco partidos legalmente reconhecidos pelo antigo Tribunal Nacional Eleitoral, e nós tivemos que concorrer sozinhos, sem alianças.
Lembro que o embaixador dos Estados Unidos, Manuel Roche, disse uma vez: “Evo Morales é o Bin Laden andino, os cocaleiros são o Talibã, não votem em Evo Morales”. O povo anti imperialista reagiu; Jorge Quiroga, que era presidente, não disse nada. Agora dizem que há interferência da Argentina e de outros países. Naquela época, eu disse que o embaixador Manuel Roche era meu melhor gerente de campanha. Não me incomodei com o que eles disseram, pelo contrário, os cumprimentei: “obrigado ao gerente de campanha por dizer isso”. Porque os resultados refletiram a rejeição dessa interferência. Nós, o MAS, obtivemos 20% dos votos, tiveram que se unir os cinco demais partidos políticos para nos superar, e por menos de 1%: a diferença foi de 0,9%.
Quero ser muito honesto: até então, não tinha tanta certeza de que poderia ser presidente em algum momento. Mas a partir daquele momento comecei a acreditar que poderia ser, em qualquer momento, e que deveria me preparar. Junto com um grupo de profissionais, então, começamos a construir um programa muito sério, muito responsável com o Estado, com o povo boliviano.
Porque a direita sempre tem consultorias dos Estados Unidos para fazer campanha. Deixa eu te contar uma coisa: em 2002 cheguei a La Paz às duas da manhã, depois de tantas caminhadas, dez, doze concentrações pequenas e médias, eu dormi até as cinco da manhã, porque naquela hora tinha que viajar novamente: às oito da manhã, houve uma concentração na província de Loayza, no município de Saphaqui. Então, às oito horas, quando cheguei, as pessoas ainda não estavam concentradas. Eu, muito cansado, pedi aos meus colegas que arranjassem um quarto para descansar até que as pessoas se concentrassem, queria dormir um pouco mais. E havia um pequeno hotel, que abordamos para conseguir um quarto. Mas todo o hotel estava rodeado de carros luxuosos, muito estranhos… nos contaram que o Gonzalo Sánchez Lozada estava lá dentro, conversando com alguns gringos. E dissemos: “vamos nos infiltrar, para descobrir o que eles estão fazendo lá”. Nos aproximamos das empregadas, perguntaram o que estão fazendo, do que estão falando… as empregadas estavam servindo refrescos, cuidando de tudo, porque eles estavam lá há dois dias. E elas nos disseram que não entenderam nada, porque falavam tudo em inglês. Era ainda mais estranho. Então, abordamos o dono do hotel, e o dono do hotel nos disse “aqui está Gonzalo Sánchez Lozada com um grupo de conselheiros norte-americanos, fazendo o programa do governo para as eleições”. Ficamos muito surpresos, e os que nos acompanharam também. Como é que ele monta o seu programa lá, com todos aqueles conselheiros estadunidenses? Assessores, consultores de campanha… e hoje é a mesma coisa: agora as redes estão na moda. Nas eleições do ano passado, enfrentamos uma guerra total pelas redes sociais, com a direita usando aliados do Brasil, do Chile, dos Estados Unidos… e apesar disso, vencemos no primeiro turno.
Bruno Sommer: Na época da Guerra do Gás (uma virada total para a Bolívia e para você) vimos o poder das organizações sociais, das organizações de bairro, principalmente do setor de El Alto, na região metropolitana de La Paz. Como você acha que esse momento histórico da luta social em El Alto pode ser comparado ao que está acontecendo hoje? Que papel você acha que terá neste processo de retorno à soberania popular?
Evo Morales: O importante é que a frente camponesa decidiu que além de lutar pela demanda setorial ou regional, é importante lutar pela nacional. Fizemos isso com muitas confederações da frente camponesa indígena original. Mas dos trópicos, de Cochabamba, por exemplo, dizíamos o seguinte: “você tem que combinar coca com petróleo”. O que significa isso? Defenda a folha de coca, que é um recurso natural renovável, como se fosse um recurso não renovável, como o petróleo, os hidrocarbonetos, o gás… junte tudo, porque tem que defender os dois. Foi assim em nível nacional desde a frente camponesa indígena original. Mas não só no social e sindical; também politicamente, eleitoralmente, porque essa era uma questão puramente política. Com as lutas, conseguimos algumas demandas, mas não conseguimos mudanças estruturais.
E aqui quero lhes dizer, mais uma vez, que quando cheguei a Chapare, aos trópicos de Cochabamba, havia propostas de profundas mudanças nas negociações. Mas os representantes dos governos neoliberais responderam dizendo “não, você está fazendo política, política para você é um crime, é um pecado (…) a política do camponês tropical é machado e facão”, assim como na região das minas é a picareta e a pá.
Aí veio a Guerra do Gás, aquela luta que se concentrou na cidade de El Alto. Qual foi o problema subjacente? Além da nacionalização, não dava para entender como os governos queriam instalar uma planta de gás natural em território chileno, não do Estado, mas de particulares, e de lá mandar o gás para a Califórnia, nos Estados Unidos. Ficamos sem gás aqui e eles queriam levar para os Estados Unidos! Por que o gás não era primeiro para os bolivianos? Por isso eu sempre dedico todo meu respeito e minha admiração ao povo de El Alto. Muito bem organizados, junto com o movimento camponês, os mineiros, começou a luta. A cidade de El Alto estava mais unida do que nunca, tinha um único conselho de bairro. Agora, me dizem que tem dois, até três conselhos de bairro. Se dividiram, o que é uma fraqueza, mas ainda é o lugar mais combativo, o mais forte, porque se tratam de conselhos de bairro, não só nacionalistas, mas também anti imperialistas, baseados nos irmãos aymará.
Entre aqueles tempos e agora algumas coisas mudaram, mas também vemos que as privatizações voltaram, por exemplo. O Decreto Supremo 4272, de 24 de junho deste ano, propõe voltar ao passado: transformar A Bolívia em um Estado anão, pelo menos, como afirma o FMI (Fundo Monetário Internacional). Portanto, quero dizer a vocês, o Estado não vai investir em empresas públicas. E menos para expandir o aparato produtivo do povo boliviano. Esse decreto supremo significa que o Estado só regulamenta e não investe, e você sabe que um Estado que não investe não gera divisas para atender às demandas do povo.
As receitas do FMI estão neste decreto supremo de 24 de junho: privatizar a eletricidade, as telecomunicações, a saúde, a educação. A privatização da educação já começou, porque este ano eles não fizeram orçamento para a criação de novos sites. Em 14 de setembro deste ano, eles começaram a privatizar a energia em Cochabamba. O procurador do Estado Plurinacional nomeado por Áñez renunciou, por ser este decreto de privatização inconstitucional. Os serviços básicos são um direito humano e não podem ser de uma empresa privada. A saúde não pode ser uma mercadoria. A educação é essencial para a libertação do povo. O povo se levanta, o povo rejeita isso, e é algo que está nos unindo ainda mais. E este advogado que foi demitido por Áñez nomeou outro, o que é ilegal. A sua nomeação é inconstitucional, falta a eles um pouco de visão política para a nomeação de autoridades.
Portanto, no que diz respeito a essas privatizações de serviços básicos, ou paralisação do aparelho produtivo, o que se deve perceber é que não é só a quarentena ou a pandemia que paralisa a economia. O governo também. Infelizmente, a Bolívia está passando por duas pandemias: uma pandemia que nos mata de fome e uma pandemia que nos mata com vírus. O aparato produtivo fica paralisado pela quarentena, mas o próprio governo também fica paralisado, ao se submeter às políticas do capitalismo.
Mas estamos convencidos de que seremos capazes de superar todos esses problemas, com a luta do povo, com a luta organizada dos moradores de El Alto.
Denis Rogatyuk: Você conseguiu nacionalizar os recursos naturais do país e criar uma economia não só estável, mas também em constante crescimento. Quais são as três políticas que você apontaria como chaves para resolver a crise econômica criada pelo governo golpista?
Evo Morales: Um fato importante: a população deve estar informada. Em quase 20 anos de neoliberalismo (de 1985 a 2005), a renda do petróleo foi de apenas 3 bilhões de dólares. Depois de nacionalizarmos, entre 2006 e o ano passado, saltou para 38 bilhões de dólares.
De 1825, quando houve a fundação da República, até 2005 (foram 180 anos), quanto do PIB eles nos deixaram? Cerca de 9,5 bilhões de dólares de Produto Interno Bruto. Em janeiro do ano passado, era de 42 bilhões de dólares. Imagine a profundidade da mudança. Veja como é importante ser nacionalista e anti imperialista. Porque enfrentamos o imperialismo, enfrentamos suas políticas de privatização e a partir desse momento tudo mudou. E com esse dinheiro, certamente, com redução da pobreza e o crescimento econômico, tudo mudou. A Bolívia era o pior país da América do Sul e nos últimos anos fomos os melhores. Dos 13 anos que fui presidente, durante 6 fomos os primeiros em crescimento econômico da América do Sul. Quando fui a alguns fóruns internacionais, a cúpulas de chefes de estado ou à posse de um presidente, eles me perguntavam: “Evo, quanto será o crescimento econômico este ano?”, e eu dizia que seria 4% , 5%… e me perguntavam o que tinha feito para conseguir esse resultado. A resposta é que os serviços básicos devem ser um direito humano.
Temos a tarefa de defender a nacionalização e aprofundar a industrialização, essa é a meta que temos para continuar com o crescimento econômico. Mas primeiro devemos recuperar a democracia, recuperar a pátria.
Bruno Sommer: Agora vemos nossos irmãos indígenas na Bolívia sendo perseguidos novamente por este regime racista liderado por Jeanine Áñez e seus militares. Que tipo de ação você acha que o próximo governo do MAS deveria tomar para ajudar a erradicar o racismo na Bolívia de uma vez por todas?
Evo Morales: Parece que, na Bolívia, estamos voltando aos tempos da Inquisição. A direita racista usa a Bíblia para espalhar o ódio aos outros, usa a Bíblia para roubar, para matar, para justificar o genocídio, o economicídio... usa a Bíblia para discriminar, queimar wiphalas (bandeira dos povos indígenas), chutar gente humilde, gente com suas roupas típicas. Os grupos com dinheiro, os racistas, foram os que instalaram essa mentalidade.
E aproveito para lembrar que, em dezembro do ano passado, um senador republicano, Richard Black, reconheceu que o golpe havia sido planejado nos Estados Unidos. Eles confessaram que participaram do golpe. Em 24 de julho deste ano, fiquei surpreso com o que o dono da Tesla disse. O dono de uma empresa de carros elétricos confessa ter participado do golpe. Ou seja, o golpe foi para roubar os nossos recursos naturais, o lítio… decidimos industrializar o lítio, começamos com as nossas reservas internacionais, fechamos acordos com a Europa, com a China, por questões de mercado. Agora, com o lítio, dizíamos: “os Estados Unidos não entram aqui”. Tínhamos planejado, dentro da agenda patriótica do bicentenário, quarenta e uma plantas, mais de quinze para cloreto de potássio, carbonato de lítio, hidróxido de lítio, três plantas para baterias de lítio e outras para insumos, mas também para subprodutos: subprodutos para alimentos e medicamentos. Repito, eu disse que os Estados Unidos não entravam aqui, e esse foi o nosso crime. É por isso que eles resolveram aposta na violência.
Sinto que é importante relançar a nossa economia. E temos um grande plano para mostrar, novamente, que a Bolívia tem muita esperança. A vantagem que temos é que, em 2005, nos deixaram um estado em frangalhos, com um presidente implorando como Carlos Mesa, que só sabia pedir ajuda para pagar salários e vencimentos. Agora, em quase 14 anos, mostramos que a Bolívia tem um grande futuro. Em quase 14 anos, mostramos que a Bolívia tem muita esperança. O golpe também foi dirigido contra o nosso modelo econômico, porque mostramos que é possível crescer, que é possível reduzir a pobreza e as desigualdades sem a presença do FMI. É daí que vem o golpe.
Então, acho que vamos buscar alguns mecanismos de reunião entre os bolivianos, porque entre os bolivianos não podemos estar em desacordo. Lamento muito que existam paramilitares, grupos armados. Nosso Movimento ao Socialismo, instrumento político de soberania dos povos, movimento de libertação política, é histórico, sem precedentes, único no mundo, porque nos tempos coloniais, nossos povos indígenas foram ameaçados de extermínio, não apenas submetidos ao racismo e à discriminação, mas também ameaçado de extermínio. E em alguns países da América Latina não há movimentos indígenas, mas nossos ancestrais na Bolívia, Peru, Equador, Guatemala, México, esses povos lutaram muito. Apenas 500 anos depois daquela resistência popular indígena, em 1992, nós decretamos: “da resistência à tomada do poder”. E na Bolívia, nós cumprimos.
Denis Rogatyuk: Como presidente, o senhor levou a Bolívia ao cenário internacional, lutou pelo mundo multipolar. Infelizmente, hoje vemos que as ações do regime golpista revertem rapidamente muitos desses avanços. Em sua opinião, qual seria a melhor forma de restaurar o lugar da Bolívia no cenário internacional?
Evo Morales: Quando eu era um líder sindical, participei de algumas reuniões de chefes de Estado. Por exemplo, uma em Viena, sobre a luta contra o tráfico de drogas. E aproveitei as ONGs que têm status consultivo, para poder participar e ouvir de perto o que o governo boliviano estava levantando nessas mesas internacionais. Até então, só sabiam dizer uma coisa: “a Bolívia aceita as propostas dos Estados Unidos”, “a Bolívia apoia as propostas dos Estados Unidos”, era só isso. Realmente, a Bolívia nunca teve uma política nacionalista, uma proposta da Bolívia. Quando chegamos ao poder com nossas propostas sobre a Mãe Terra, sobre os serviços básicos, levamos uma proposta às Nações Unidas: que a água deveria ser um direito fundamental do ser humano e não um negócio privado, e conseguimos aprová-la. Apenas os Estados Unidos e Israel se abstiveram. Todos os demais votaram a favor, apoiaram a proposta de que a água seja um direito humano e não um negócio.
Eu ri da intervenção virtual da presidenta golpista da Bolívia (Jeanine Áñez) nas Nações Unidas, atacando a Argentina. Ele acusou o presidente argentino (Alberto Fernández) de intromissão! Com que moral ela diz isso? É um grande retrocesso…
Mas, falando sobretudo da América Latina, nos tempos de Chávez, Lula, Kirchner, em outros tempos, nós gestamos grandes processos de integração como Unasul, CELAC… iniciativas que Obama pretendia destruir com a Aliança do Pacífico, assim como o atual presidente dos Estados Unidos utiliza o Grupo de Lima para enfrentar a Venezuela. Diante disso, precisamos de maior unidade, reflexões profundas no Grupo de Puebla, de outros setores da ALBA. Não estamos sozinhos. Tenho grande esperança em nossos povos, em nossos movimentos sociais. Vamos recuperar a democracia. No Chile, há um referendo, gostaríamos de uma América Plurinacional, porque somos tão diversos que seria bom para a Europa, para outros continentes, reconhecer essa diversidade. Que essa diversidade seja reconhecida pelas constituições, pelos organismos internacionais. Na Bolívia, somos diversos, e essa diversidade cultural é a riqueza da nossa identidade, da nossa dignidade. E é com base na nossa diversidade que lutamos pela liberdade e pela igualdade. Essa é a nossa luta profunda. No entanto, neste ponto, realmente voltamos ao passado. O que os governos neoliberais e de direita fazem é repetir o que dizem nos Estados Unidos. Essa política de 1823, da “América para os americanos”, a Doutrina Monroe, tem que acabar.
Os Estados Unidos e o capitalismo pensam que são escolhidos por Deus para dominar o mundo, que a única soberania possível é a soberania dos Estados Unidos, e quando um povo é libertado, respondem com bases militares, intervenção e golpe de estado.
A luta se resume em quem controla, quem administra os recursos naturais: os povos os controlam, por meio de seus estados, ou os privados os controlam, por meio das multinacionais? Essa é a luta da humanidade, estamos nessa situação. Acho que, neste contexto, a tarefa, a missão que temos, é a de descobrir como nos libertar democraticamente.
Bruno Sommer: Como você viveu seu exílio? Que sentimentos os militares que te traíram provocam em você e que medidas o MAS pretende tomar quando voltar ao poder para contar com soldados patrióticos?
Evo Morales: Não queria sair da Bolívia, para mim era pátria ou morte. Mas um grupo de membros da assembleia, líderes nacionais, alguns ministros, me disseram “primeiro, para salvar o processo de mudança, devemos salvar a vida de Evo”. Isso me surpreendeu, não estou tão convencido.
No dia 10 de novembro, antes da renúncia, os movimentos sociais foram convocados para recuperar a Praça Murillo, já com uma polícia amotinada desde o dia 8 ou 9. E na imprensa, eu ouço que as Forças Armadas estão pedindo a minha renúncia, e algum líder da Central Operária Boliviana também pedia minha demissão. Aí, não sei o que aconteceu, o que pensei… antes de tudo, pensei que se naquele momento eu não renunciasse, no dia seguinte, com concentração, haveria um massacre. Prefiro renunciar, porque acima de tudo somos defensores da vida.
Até aquele momento havia tantos conflitos… desde setembro, com a greve em Potosí e em Santa Cruz, ou mesmo parte de agosto, também. Evitamos mortes, porque alguns me pediram para militarizar, estado de sítio, e eu respondi que não, tive reuniões com os comandantes militares e da polícia e lhes disse que não podiam usar balas contra o povo. As balas são para defender o território, não para serem usadas contra o povo.
Mesmo quando cheguei a Chimore, no domingo à tarde, 10 de novembro, eu disse: “agora vou para a selva”, mas naquele momento, pensei que se não desistisse, no dia seguinte haveria um massacre em La Paz, organizado pela polícia e pelos militares. Eles iam atirar em meus irmãos, que foram recuperar o palácio incendiado, a Praça Bolívia e a praça principal da cidade. Eles iriam me culpar, então renunciei para que não houvesse mortes ou massacres em meu governo. Porque somos defensores da vida, da paz, mas com justiça social (um parêntese: digo “luta pela paz”, mas é uma luta contra o capitalismo… se houvesse paz com justiça social não haveria capitalismo, estaria derrotado).
Então, no dia 11 de novembro, eu deixei a Bolívia. Enfim, o território sul-americano era controlado pelos Estados Unidos: eles não deixavam o avião do México pousar, o que vinha me buscar. Eram três, quatro presidentes aguardando um dia inteiro, se comunicando, para ver como me tiravam. Havia dois caminhos: Evo morto ou Evo nos Estados Unidos. Os mesmos militares me informaram que quando eu ainda estava na cidade de El Alto, alguns soldados comentaram que deveriam mandar Evo para os Estados Unidos, enquanto outros comparavam esse golpe ao golpe no Chile.
Na minha luta sindical e política, fui preso, processado, confinado na Bolívia… só faltava um asilo, e um asilo com refúgio, agora já completei minha carreira política. Uma carreira política como anti imperialista, como um esquerdista, que quando não desiste, essas são as consequências. E não vou desistir.
Para o movimento indígena, o anticolonialismo e o anti imperialismo são hereditários. Eles esquartejaram Tupac Katari nos tempos coloniais e agora, nos tempos da república, eles querem nos esquartejar novamente. Querem atirar em nosso movimento político, banir o MAS, banir o Evo, essa é a missão que os Estados Unidos deram aos golpistas. Diversos meios de comunicação já disseram: “o MAS não voltará ao governo, nem Evo voltará à Bolívia”. Venho tentando contribuir com o que posso para a campanha. Mas tenho certeza que um dia voltaremos a ser milhões e devolveremos a liberdade ao povo boliviano.
Denis Rogatyuk: Se você pudesse voltar, o que melhoraria em seu trabalho na Bolívia? E olhando para a frente, o que o MAS tem e quais funções você gostaria de desempenhar no seu país?
Evo Morales: Primeiro, eu voltaria ao tópico da formação de novos líderes. Tudo isso exige muita liderança, gostaria de compartilhar minha experiência de luta sindical, mas também de luta eleitoral, de gestão compartilhada. Seria bom um dia comentar – já estamos escrevendo um livro – como alguns ministros às vezes adormeciam no gabinete às cinco da manhã. Alguns até roncavam! Eu talvez tenha exigido muito, porque para mim a política é uma ciência do serviço, é uma ciência do esforço, do compromisso, do sacrifício pela maioria, pelos mais humildes… Obviamente, política é uma luta de interesses, mas nós lutamos pelos interesses comuns e coletivos, a favor dos pobres. Este é o nosso grande diferencial: nossa luta não é concentrar o capital em poucas mãos, nossa luta é redistribuir a riqueza, para que haja igualdade, justiça social, para que haja paz com dignidade. Essa é a nossa luta, e na minha volta – voltarei, mais cedo ou mais tarde – o meu grande desejo é compartilhar esse treinamento, compartilhar uma pequena mostra dessa luta.
Fui para Chapare para sobreviver, com meu pai morto… e lá, de repente, me pediram para ser sindicalista. Eu não queria, mas havia confiança. Saí do meu trabalho agrícola, entrei na direção sindical, fui torturado, processado, confinado, tantas vezes ameaçado… não fui para Chapare para ser líder, muito menos para ser presidente, mas minha escola é a luta sindical, a luta social e a luta comunal. Não sou desses que dizem, “eu sou da juventude comunista ou socialista”. Aprendi na vida. E se você me pergunta porque cheguei à presidência sem formação acadêmica, eu respondo que foi por causa da verdade e da honestidade. Este governo (atual) fez mil tentativas de me envolver em questões de corrupção, mas não conseguiu. O que eles vão conseguir, depois de tantas difamações? Então, meu desejo é voltar e compartilhar com as novas gerações. Porque temos certeza de que vamos vencer. E muitos presidentes, não apenas Evo.
Hoje, Evo Morales e seu partido MAS (Movimento Ao Socialismo) se encontram em uma situação que, embora conhecida, não deixa de surpreender. O período desde o golpe de novembro de 2019 foi definido por uma repressão feroz, pelo massacre de dezenas de militantes e ativistas, por tentativas de banir o MAS das próximas eleições e por uma campanha de fake news e manipulação da mídia sem precedentes, estratégias visando distorcer, manchar e demonizar os 14 anos de governo de Evo Morales.
Apesar de tudo isso, o MAS continua a representar a maior força política do país. As últimas pesquisas indicam que a candidatura de Luis Arce Catacora, com David Choquehuanca como vice, a dupla que representa o MAS, ganharia as eleições no primeiro turno, com 44,4% de intenção de votar, superando – mais uma vez – o neoliberal Carlos Mesa, derrotado por Evo Morales nas eleições de outubro de 2019. Esse panorama, porém, aparece nublado por uma constatação: eleições livres e justas se apresentam como algo improvável, e a repetição de um cenário que envolve a presença e interferência da OEA (Organização dos Estados americanos) por meio de seu secretário-geral Luis Almagro, é uma possibilidade certa.
A revista Jacobin América Latina conversou com Evo Morales Ayma sobre esses temas e sobre o que esperar da Bolívia no futuro, mas também sobre sua história pessoal, seus primeiros passos na política e os planos que tem para o que está por vir.
Bruno Sommer: Durante a Guerra da Água em Cochabamba, o senhor foi um líder sindical que resistiu ao governo neoliberal de Jorge Quiroga. A luta daqueles anos pode ser comparada à resistência atual nos trópicos de Cochabamba?
Evo Morales: Houve diferentes fases de luta desde 1995, das quais me lembro perfeitamente… antes, o país vivia de um golpe atrás do outro. Em 1978, eu cumpri o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas. Um breve parêntese: eu fui o único presidente civil da Bolívia que passou por um quartel. Os presidentes civis do passado somente compravam as livretas de serviço militar, porque para ser uma autoridade eleita é importante ter uma livreta comprovando que está em dia com o serviço militar. Em 1978, como soldado, conheci três presidentes: Hugo Banzer Suárez, quando entrei no quartel, depois houve um golpe no meio do ano, do qual surgiu o governo de Juan Pereda Asbún, e em novembro, eles me enviaram para a Polícia Militar, e tive que fazer a segurança do Comando Geral do Exército. Quem comandava a instituição era o general (David) Padilla Arancibia. Eu fui para casa uma noite, e quando acordei no dia seguinte acordei no dia seguinte ele já era o presidente. Naquele ano, três presidentes. No ano seguinte, completei o serviço militar, mas antes presenciei um quarto presidente, e um quarto golpe… (Alberto) Natusch Busch e todos os partidos de direita participaram daquele golpe.
Por exemplo – os bolivianos sabem disso muito bem –, havia um famoso líder do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), Guillermo Bedregal, chanceler de Natusch Busch, que deu um golpe. Esse golpe de estado durou apenas duas semanas. A frente camponesa e o sindicato boliviano começaram com bloqueios de estradas e uma greve geral por tempo indeterminado. Foram 200, 300 mortos e o golpe falhou… mas tentamos recuperar a democracia.
Demoraria para contar tudo o que lembro, mas sei que em 1985, começou o modelo neoliberal e havia professores que pediam mais atenção à educação, porque ela estava sendo privatizada. A Guerra da Água, a Guerra do Gás, a Guerra da Folha de Coca… eu diria, antes de tudo, que a Guerra da Folha de Coca teve uma importância muito significativa: não foi só defender a economia. Fundamentalmente, era para defender a dignidade da soberania, pois a pretexto da luta contra o narcotráfico eles instalaram uma base militar em Chimore. Então, para mim, o combate ao narcotráfico segue um objetivo: são interesses de natureza geopolítica, de controle territorial, a pretexto do combate o narcotráfico. Existem até muitos ex-agentes da DEA (agência antidrogas dos Estados Unidos) que denunciam a guerra contra as drogas como falsa.
Mas vale a pena falar sobre o seguinte: um grupo de jovens camponeses e lideranças indígenas, desde o final dos Anos 80 e parte dos Anos 90, estamos nos perguntando quanto tempo… quanto tempo eles vão nos governar de lá de cima? Por quanto tempo os de fora vão nos governar? Quando será a nossa vez de governarmos nós mesmos? Por quanto tempo os planos e políticas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial continuarão a ser impostos? Por que essas políticas não podem pertencer aos bolivianos? A Bolívia sempre teve poder social, poder sindical e poder comunitário. Mas quando se tratava de perguntar como nacionalizar nossos recursos naturais e nossos serviços básicos, o poder comunitário ou o poder social não eram suficientes. Era essencial promover um instrumento político. E desde o movimento camponês dos trópicos, mas sobretudo quéchuas, aimarás, mais de 30 nacionalidades indígenas, nós propomos: devemos gestar, devemos promover, devemos organizar um instrumento político de libertação do povo, para o povo, com um programa de aldeia.
Aqui, eu quero que você saiba, tivemos que romper com a doutrina do sistema capitalista. No sistema capitalista, os movimentos sociais são terroristas. Dizem também que o sindicato não pode fazer política, a pretexto de uma suposta “independência sindical” e “pluralismo ideológico”. Mas nós dissemos “não”, nós do campo dissemos “se nos organizamos num movimento social, é por reivindicações perante o empregador privado e o empregador do Estado”. Também dissemos que “temos direitos políticos, não podemos ficar apenas com os sindicatos… se queremos transformações realmente profundas, é importante procurá-las também nas estruturas”. E até tivemos problemas com alguns trabalhadores, que ainda estavam convencidos, por aquele discurso de independência sindical, de que o sindicato não podia fazer política. Nós, do movimento indígena, dizíamos que “temos o direito de nos engajar na política, temos o direito de que outros votem em nós, e que nem sempre sejamos nós os que votamos em outras pessoas, pessoas que depois nos prejudicam, abusam de nós, saqueiam nossos recursos naturais”.
O (Hugo) Banzer e o (Jorge) Quiroga vieram ao governo, privatizaram a eletricidade, as telecomunicações, entregaram os nossos recursos naturais (como o gás) às multinacionais… Houve várias vezes isso, com os dirigentes nacionais da COB (Central Operária Boliviana), e também com os das confederações camponesas, fui negociar. Nossa abordagem aos governos neoliberais sempre foi a mesma: a necessidade de nacionalizar os recursos. E a resposta que obtivemos também foi a mesma: que quando o gás está no subsolo, é dos bolivianos, mas quando sobe à superfície não nos pertence mais. Os contratos – inconstitucionais – são lidos textualmente: “o dono adquire o direito de propriedade na cabeça do poço”. Quem é o dono? A multinacional. Não havia controle do Estado sobre a produção, sobre quantos milhões de metros cúbicos por dia, sobre nada… e daí vem a nossa proposta: 82% da receita fica com a empresa e 18% vai para os bolivianos.
Então, em 2005, nas eleições, tínhamos propostas muito simples: politicamente, a refundação da Bolívia; economicamente, nacionalização; socialmente, a redistribuição da riqueza. O primeiro ia ser difícil. Durante a Assembleia Constituinte, os grupos conservadores não queriam sair do estado colonial para ter um estado plurinacional. Foram três anos de luta, de tentativas de golpe… tentaram dividir a Bolívia, mas graças à unidade do povo, nós vencemos.
A questão da nacionalização era mais simples: ao vencer, assinei o decreto supremo de nacionalização. Era 1º de maio de 2006. E minha mão não tremeu. Para começar, a questão do gás. E o que dissemos: “se as petroleiras querem ficar na Bolívia, será como sócias, não como patrões ou como donas de nossos recursos naturais”. Primeira condição. Segundo: se ficam, ficam com 18%; agora 82% é para o Estado. Algumas empresas saíram, outras ficaram. O investimento privado, nacional ou internacional, é garantido pela Constituição. Porque somos uma economia plural pela Constituição, mas sob as regras do Estado boliviano. E a partir desse momento, a situação econômica do país mudou. Então, não foi apenas uma luta pela água, pelo gás, mas um conjunto de lutas para acabar com essa doutrina norte-americana. Repito: para o sistema capitalista, os movimentos sociais são terroristas e não temos o direito de fazer política. Bom, isso está errado.
Denis Rogatyuk: Nas eleições presidenciais de 2002, você foi derrotado por Gonzalo Sánchez de Lozada. Houve uma campanha de falsificações, medo e intimidação contra você e o MAS. Hoje, algo semelhante é observado contra Luis Arce. Que lições você retira de agora, olhando para aquela campanha eleitoral de 2002?
Evo Morales: Em 1997, eles propuseram que eu fosse candidato à presidência. Recebi muitas acusações, muita difamação do governo do Sánchez de Lozada. Fui proclamado e renunciei à candidatura. O discurso dele dizia: “como pode um traficante, um assassino, ser presidente?”. Então, eu desisti daquela vez, era muita difamação. Mas em 2002, o consenso para que eu fosse candidato era muito maior. Tive dúvidas se conseguiria uma boa votação. A imprensa internacional dizia que o MAS poderia obter 8% dos votos, e todos os meios nacionais davam entre 3% e 4%. Para essa eleição, Gonzalo Sánchez de Lozada se aliou ao Movimento Bolívia Livre, que antes, em 1989, estava na Esquerda Unida, eram social-democratas, e estavam baseados em ONGs, principalmente de capitais europeias… fazer política por dinheiro, segundo a minha experiência, não tem futuro. O Movimento Bolívia Livre acabou, esse partido não existe mais. Mas, naquela época, era famoso e em aliança com o Partido Socialista, também sediado em Oruro… eram cinco partidos legalmente reconhecidos pelo antigo Tribunal Nacional Eleitoral, e nós tivemos que concorrer sozinhos, sem alianças.
Lembro que o embaixador dos Estados Unidos, Manuel Roche, disse uma vez: “Evo Morales é o Bin Laden andino, os cocaleiros são o Talibã, não votem em Evo Morales”. O povo anti imperialista reagiu; Jorge Quiroga, que era presidente, não disse nada. Agora dizem que há interferência da Argentina e de outros países. Naquela época, eu disse que o embaixador Manuel Roche era meu melhor gerente de campanha. Não me incomodei com o que eles disseram, pelo contrário, os cumprimentei: “obrigado ao gerente de campanha por dizer isso”. Porque os resultados refletiram a rejeição dessa interferência. Nós, o MAS, obtivemos 20% dos votos, tiveram que se unir os cinco demais partidos políticos para nos superar, e por menos de 1%: a diferença foi de 0,9%.
Quero ser muito honesto: até então, não tinha tanta certeza de que poderia ser presidente em algum momento. Mas a partir daquele momento comecei a acreditar que poderia ser, em qualquer momento, e que deveria me preparar. Junto com um grupo de profissionais, então, começamos a construir um programa muito sério, muito responsável com o Estado, com o povo boliviano.
Porque a direita sempre tem consultorias dos Estados Unidos para fazer campanha. Deixa eu te contar uma coisa: em 2002 cheguei a La Paz às duas da manhã, depois de tantas caminhadas, dez, doze concentrações pequenas e médias, eu dormi até as cinco da manhã, porque naquela hora tinha que viajar novamente: às oito da manhã, houve uma concentração na província de Loayza, no município de Saphaqui. Então, às oito horas, quando cheguei, as pessoas ainda não estavam concentradas. Eu, muito cansado, pedi aos meus colegas que arranjassem um quarto para descansar até que as pessoas se concentrassem, queria dormir um pouco mais. E havia um pequeno hotel, que abordamos para conseguir um quarto. Mas todo o hotel estava rodeado de carros luxuosos, muito estranhos… nos contaram que o Gonzalo Sánchez Lozada estava lá dentro, conversando com alguns gringos. E dissemos: “vamos nos infiltrar, para descobrir o que eles estão fazendo lá”. Nos aproximamos das empregadas, perguntaram o que estão fazendo, do que estão falando… as empregadas estavam servindo refrescos, cuidando de tudo, porque eles estavam lá há dois dias. E elas nos disseram que não entenderam nada, porque falavam tudo em inglês. Era ainda mais estranho. Então, abordamos o dono do hotel, e o dono do hotel nos disse “aqui está Gonzalo Sánchez Lozada com um grupo de conselheiros norte-americanos, fazendo o programa do governo para as eleições”. Ficamos muito surpresos, e os que nos acompanharam também. Como é que ele monta o seu programa lá, com todos aqueles conselheiros estadunidenses? Assessores, consultores de campanha… e hoje é a mesma coisa: agora as redes estão na moda. Nas eleições do ano passado, enfrentamos uma guerra total pelas redes sociais, com a direita usando aliados do Brasil, do Chile, dos Estados Unidos… e apesar disso, vencemos no primeiro turno.
Bruno Sommer: Na época da Guerra do Gás (uma virada total para a Bolívia e para você) vimos o poder das organizações sociais, das organizações de bairro, principalmente do setor de El Alto, na região metropolitana de La Paz. Como você acha que esse momento histórico da luta social em El Alto pode ser comparado ao que está acontecendo hoje? Que papel você acha que terá neste processo de retorno à soberania popular?
Evo Morales: O importante é que a frente camponesa decidiu que além de lutar pela demanda setorial ou regional, é importante lutar pela nacional. Fizemos isso com muitas confederações da frente camponesa indígena original. Mas dos trópicos, de Cochabamba, por exemplo, dizíamos o seguinte: “você tem que combinar coca com petróleo”. O que significa isso? Defenda a folha de coca, que é um recurso natural renovável, como se fosse um recurso não renovável, como o petróleo, os hidrocarbonetos, o gás… junte tudo, porque tem que defender os dois. Foi assim em nível nacional desde a frente camponesa indígena original. Mas não só no social e sindical; também politicamente, eleitoralmente, porque essa era uma questão puramente política. Com as lutas, conseguimos algumas demandas, mas não conseguimos mudanças estruturais.
E aqui quero lhes dizer, mais uma vez, que quando cheguei a Chapare, aos trópicos de Cochabamba, havia propostas de profundas mudanças nas negociações. Mas os representantes dos governos neoliberais responderam dizendo “não, você está fazendo política, política para você é um crime, é um pecado (…) a política do camponês tropical é machado e facão”, assim como na região das minas é a picareta e a pá.
Aí veio a Guerra do Gás, aquela luta que se concentrou na cidade de El Alto. Qual foi o problema subjacente? Além da nacionalização, não dava para entender como os governos queriam instalar uma planta de gás natural em território chileno, não do Estado, mas de particulares, e de lá mandar o gás para a Califórnia, nos Estados Unidos. Ficamos sem gás aqui e eles queriam levar para os Estados Unidos! Por que o gás não era primeiro para os bolivianos? Por isso eu sempre dedico todo meu respeito e minha admiração ao povo de El Alto. Muito bem organizados, junto com o movimento camponês, os mineiros, começou a luta. A cidade de El Alto estava mais unida do que nunca, tinha um único conselho de bairro. Agora, me dizem que tem dois, até três conselhos de bairro. Se dividiram, o que é uma fraqueza, mas ainda é o lugar mais combativo, o mais forte, porque se tratam de conselhos de bairro, não só nacionalistas, mas também anti imperialistas, baseados nos irmãos aymará.
Entre aqueles tempos e agora algumas coisas mudaram, mas também vemos que as privatizações voltaram, por exemplo. O Decreto Supremo 4272, de 24 de junho deste ano, propõe voltar ao passado: transformar A Bolívia em um Estado anão, pelo menos, como afirma o FMI (Fundo Monetário Internacional). Portanto, quero dizer a vocês, o Estado não vai investir em empresas públicas. E menos para expandir o aparato produtivo do povo boliviano. Esse decreto supremo significa que o Estado só regulamenta e não investe, e você sabe que um Estado que não investe não gera divisas para atender às demandas do povo.
As receitas do FMI estão neste decreto supremo de 24 de junho: privatizar a eletricidade, as telecomunicações, a saúde, a educação. A privatização da educação já começou, porque este ano eles não fizeram orçamento para a criação de novos sites. Em 14 de setembro deste ano, eles começaram a privatizar a energia em Cochabamba. O procurador do Estado Plurinacional nomeado por Áñez renunciou, por ser este decreto de privatização inconstitucional. Os serviços básicos são um direito humano e não podem ser de uma empresa privada. A saúde não pode ser uma mercadoria. A educação é essencial para a libertação do povo. O povo se levanta, o povo rejeita isso, e é algo que está nos unindo ainda mais. E este advogado que foi demitido por Áñez nomeou outro, o que é ilegal. A sua nomeação é inconstitucional, falta a eles um pouco de visão política para a nomeação de autoridades.
Portanto, no que diz respeito a essas privatizações de serviços básicos, ou paralisação do aparelho produtivo, o que se deve perceber é que não é só a quarentena ou a pandemia que paralisa a economia. O governo também. Infelizmente, a Bolívia está passando por duas pandemias: uma pandemia que nos mata de fome e uma pandemia que nos mata com vírus. O aparato produtivo fica paralisado pela quarentena, mas o próprio governo também fica paralisado, ao se submeter às políticas do capitalismo.
Mas estamos convencidos de que seremos capazes de superar todos esses problemas, com a luta do povo, com a luta organizada dos moradores de El Alto.
Denis Rogatyuk: Você conseguiu nacionalizar os recursos naturais do país e criar uma economia não só estável, mas também em constante crescimento. Quais são as três políticas que você apontaria como chaves para resolver a crise econômica criada pelo governo golpista?
Evo Morales: Um fato importante: a população deve estar informada. Em quase 20 anos de neoliberalismo (de 1985 a 2005), a renda do petróleo foi de apenas 3 bilhões de dólares. Depois de nacionalizarmos, entre 2006 e o ano passado, saltou para 38 bilhões de dólares.
De 1825, quando houve a fundação da República, até 2005 (foram 180 anos), quanto do PIB eles nos deixaram? Cerca de 9,5 bilhões de dólares de Produto Interno Bruto. Em janeiro do ano passado, era de 42 bilhões de dólares. Imagine a profundidade da mudança. Veja como é importante ser nacionalista e anti imperialista. Porque enfrentamos o imperialismo, enfrentamos suas políticas de privatização e a partir desse momento tudo mudou. E com esse dinheiro, certamente, com redução da pobreza e o crescimento econômico, tudo mudou. A Bolívia era o pior país da América do Sul e nos últimos anos fomos os melhores. Dos 13 anos que fui presidente, durante 6 fomos os primeiros em crescimento econômico da América do Sul. Quando fui a alguns fóruns internacionais, a cúpulas de chefes de estado ou à posse de um presidente, eles me perguntavam: “Evo, quanto será o crescimento econômico este ano?”, e eu dizia que seria 4% , 5%… e me perguntavam o que tinha feito para conseguir esse resultado. A resposta é que os serviços básicos devem ser um direito humano.
Temos a tarefa de defender a nacionalização e aprofundar a industrialização, essa é a meta que temos para continuar com o crescimento econômico. Mas primeiro devemos recuperar a democracia, recuperar a pátria.
Bruno Sommer: Agora vemos nossos irmãos indígenas na Bolívia sendo perseguidos novamente por este regime racista liderado por Jeanine Áñez e seus militares. Que tipo de ação você acha que o próximo governo do MAS deveria tomar para ajudar a erradicar o racismo na Bolívia de uma vez por todas?
Evo Morales: Parece que, na Bolívia, estamos voltando aos tempos da Inquisição. A direita racista usa a Bíblia para espalhar o ódio aos outros, usa a Bíblia para roubar, para matar, para justificar o genocídio, o economicídio... usa a Bíblia para discriminar, queimar wiphalas (bandeira dos povos indígenas), chutar gente humilde, gente com suas roupas típicas. Os grupos com dinheiro, os racistas, foram os que instalaram essa mentalidade.
E aproveito para lembrar que, em dezembro do ano passado, um senador republicano, Richard Black, reconheceu que o golpe havia sido planejado nos Estados Unidos. Eles confessaram que participaram do golpe. Em 24 de julho deste ano, fiquei surpreso com o que o dono da Tesla disse. O dono de uma empresa de carros elétricos confessa ter participado do golpe. Ou seja, o golpe foi para roubar os nossos recursos naturais, o lítio… decidimos industrializar o lítio, começamos com as nossas reservas internacionais, fechamos acordos com a Europa, com a China, por questões de mercado. Agora, com o lítio, dizíamos: “os Estados Unidos não entram aqui”. Tínhamos planejado, dentro da agenda patriótica do bicentenário, quarenta e uma plantas, mais de quinze para cloreto de potássio, carbonato de lítio, hidróxido de lítio, três plantas para baterias de lítio e outras para insumos, mas também para subprodutos: subprodutos para alimentos e medicamentos. Repito, eu disse que os Estados Unidos não entravam aqui, e esse foi o nosso crime. É por isso que eles resolveram aposta na violência.
Sinto que é importante relançar a nossa economia. E temos um grande plano para mostrar, novamente, que a Bolívia tem muita esperança. A vantagem que temos é que, em 2005, nos deixaram um estado em frangalhos, com um presidente implorando como Carlos Mesa, que só sabia pedir ajuda para pagar salários e vencimentos. Agora, em quase 14 anos, mostramos que a Bolívia tem um grande futuro. Em quase 14 anos, mostramos que a Bolívia tem muita esperança. O golpe também foi dirigido contra o nosso modelo econômico, porque mostramos que é possível crescer, que é possível reduzir a pobreza e as desigualdades sem a presença do FMI. É daí que vem o golpe.
Então, acho que vamos buscar alguns mecanismos de reunião entre os bolivianos, porque entre os bolivianos não podemos estar em desacordo. Lamento muito que existam paramilitares, grupos armados. Nosso Movimento ao Socialismo, instrumento político de soberania dos povos, movimento de libertação política, é histórico, sem precedentes, único no mundo, porque nos tempos coloniais, nossos povos indígenas foram ameaçados de extermínio, não apenas submetidos ao racismo e à discriminação, mas também ameaçado de extermínio. E em alguns países da América Latina não há movimentos indígenas, mas nossos ancestrais na Bolívia, Peru, Equador, Guatemala, México, esses povos lutaram muito. Apenas 500 anos depois daquela resistência popular indígena, em 1992, nós decretamos: “da resistência à tomada do poder”. E na Bolívia, nós cumprimos.
Denis Rogatyuk: Como presidente, o senhor levou a Bolívia ao cenário internacional, lutou pelo mundo multipolar. Infelizmente, hoje vemos que as ações do regime golpista revertem rapidamente muitos desses avanços. Em sua opinião, qual seria a melhor forma de restaurar o lugar da Bolívia no cenário internacional?
Evo Morales: Quando eu era um líder sindical, participei de algumas reuniões de chefes de Estado. Por exemplo, uma em Viena, sobre a luta contra o tráfico de drogas. E aproveitei as ONGs que têm status consultivo, para poder participar e ouvir de perto o que o governo boliviano estava levantando nessas mesas internacionais. Até então, só sabiam dizer uma coisa: “a Bolívia aceita as propostas dos Estados Unidos”, “a Bolívia apoia as propostas dos Estados Unidos”, era só isso. Realmente, a Bolívia nunca teve uma política nacionalista, uma proposta da Bolívia. Quando chegamos ao poder com nossas propostas sobre a Mãe Terra, sobre os serviços básicos, levamos uma proposta às Nações Unidas: que a água deveria ser um direito fundamental do ser humano e não um negócio privado, e conseguimos aprová-la. Apenas os Estados Unidos e Israel se abstiveram. Todos os demais votaram a favor, apoiaram a proposta de que a água seja um direito humano e não um negócio.
Eu ri da intervenção virtual da presidenta golpista da Bolívia (Jeanine Áñez) nas Nações Unidas, atacando a Argentina. Ele acusou o presidente argentino (Alberto Fernández) de intromissão! Com que moral ela diz isso? É um grande retrocesso…
Mas, falando sobretudo da América Latina, nos tempos de Chávez, Lula, Kirchner, em outros tempos, nós gestamos grandes processos de integração como Unasul, CELAC… iniciativas que Obama pretendia destruir com a Aliança do Pacífico, assim como o atual presidente dos Estados Unidos utiliza o Grupo de Lima para enfrentar a Venezuela. Diante disso, precisamos de maior unidade, reflexões profundas no Grupo de Puebla, de outros setores da ALBA. Não estamos sozinhos. Tenho grande esperança em nossos povos, em nossos movimentos sociais. Vamos recuperar a democracia. No Chile, há um referendo, gostaríamos de uma América Plurinacional, porque somos tão diversos que seria bom para a Europa, para outros continentes, reconhecer essa diversidade. Que essa diversidade seja reconhecida pelas constituições, pelos organismos internacionais. Na Bolívia, somos diversos, e essa diversidade cultural é a riqueza da nossa identidade, da nossa dignidade. E é com base na nossa diversidade que lutamos pela liberdade e pela igualdade. Essa é a nossa luta profunda. No entanto, neste ponto, realmente voltamos ao passado. O que os governos neoliberais e de direita fazem é repetir o que dizem nos Estados Unidos. Essa política de 1823, da “América para os americanos”, a Doutrina Monroe, tem que acabar.
Os Estados Unidos e o capitalismo pensam que são escolhidos por Deus para dominar o mundo, que a única soberania possível é a soberania dos Estados Unidos, e quando um povo é libertado, respondem com bases militares, intervenção e golpe de estado.
A luta se resume em quem controla, quem administra os recursos naturais: os povos os controlam, por meio de seus estados, ou os privados os controlam, por meio das multinacionais? Essa é a luta da humanidade, estamos nessa situação. Acho que, neste contexto, a tarefa, a missão que temos, é a de descobrir como nos libertar democraticamente.
Bruno Sommer: Como você viveu seu exílio? Que sentimentos os militares que te traíram provocam em você e que medidas o MAS pretende tomar quando voltar ao poder para contar com soldados patrióticos?
Evo Morales: Não queria sair da Bolívia, para mim era pátria ou morte. Mas um grupo de membros da assembleia, líderes nacionais, alguns ministros, me disseram “primeiro, para salvar o processo de mudança, devemos salvar a vida de Evo”. Isso me surpreendeu, não estou tão convencido.
No dia 10 de novembro, antes da renúncia, os movimentos sociais foram convocados para recuperar a Praça Murillo, já com uma polícia amotinada desde o dia 8 ou 9. E na imprensa, eu ouço que as Forças Armadas estão pedindo a minha renúncia, e algum líder da Central Operária Boliviana também pedia minha demissão. Aí, não sei o que aconteceu, o que pensei… antes de tudo, pensei que se naquele momento eu não renunciasse, no dia seguinte, com concentração, haveria um massacre. Prefiro renunciar, porque acima de tudo somos defensores da vida.
Até aquele momento havia tantos conflitos… desde setembro, com a greve em Potosí e em Santa Cruz, ou mesmo parte de agosto, também. Evitamos mortes, porque alguns me pediram para militarizar, estado de sítio, e eu respondi que não, tive reuniões com os comandantes militares e da polícia e lhes disse que não podiam usar balas contra o povo. As balas são para defender o território, não para serem usadas contra o povo.
Mesmo quando cheguei a Chimore, no domingo à tarde, 10 de novembro, eu disse: “agora vou para a selva”, mas naquele momento, pensei que se não desistisse, no dia seguinte haveria um massacre em La Paz, organizado pela polícia e pelos militares. Eles iam atirar em meus irmãos, que foram recuperar o palácio incendiado, a Praça Bolívia e a praça principal da cidade. Eles iriam me culpar, então renunciei para que não houvesse mortes ou massacres em meu governo. Porque somos defensores da vida, da paz, mas com justiça social (um parêntese: digo “luta pela paz”, mas é uma luta contra o capitalismo… se houvesse paz com justiça social não haveria capitalismo, estaria derrotado).
Então, no dia 11 de novembro, eu deixei a Bolívia. Enfim, o território sul-americano era controlado pelos Estados Unidos: eles não deixavam o avião do México pousar, o que vinha me buscar. Eram três, quatro presidentes aguardando um dia inteiro, se comunicando, para ver como me tiravam. Havia dois caminhos: Evo morto ou Evo nos Estados Unidos. Os mesmos militares me informaram que quando eu ainda estava na cidade de El Alto, alguns soldados comentaram que deveriam mandar Evo para os Estados Unidos, enquanto outros comparavam esse golpe ao golpe no Chile.
Na minha luta sindical e política, fui preso, processado, confinado na Bolívia… só faltava um asilo, e um asilo com refúgio, agora já completei minha carreira política. Uma carreira política como anti imperialista, como um esquerdista, que quando não desiste, essas são as consequências. E não vou desistir.
Para o movimento indígena, o anticolonialismo e o anti imperialismo são hereditários. Eles esquartejaram Tupac Katari nos tempos coloniais e agora, nos tempos da república, eles querem nos esquartejar novamente. Querem atirar em nosso movimento político, banir o MAS, banir o Evo, essa é a missão que os Estados Unidos deram aos golpistas. Diversos meios de comunicação já disseram: “o MAS não voltará ao governo, nem Evo voltará à Bolívia”. Venho tentando contribuir com o que posso para a campanha. Mas tenho certeza que um dia voltaremos a ser milhões e devolveremos a liberdade ao povo boliviano.
Denis Rogatyuk: Se você pudesse voltar, o que melhoraria em seu trabalho na Bolívia? E olhando para a frente, o que o MAS tem e quais funções você gostaria de desempenhar no seu país?
Evo Morales: Primeiro, eu voltaria ao tópico da formação de novos líderes. Tudo isso exige muita liderança, gostaria de compartilhar minha experiência de luta sindical, mas também de luta eleitoral, de gestão compartilhada. Seria bom um dia comentar – já estamos escrevendo um livro – como alguns ministros às vezes adormeciam no gabinete às cinco da manhã. Alguns até roncavam! Eu talvez tenha exigido muito, porque para mim a política é uma ciência do serviço, é uma ciência do esforço, do compromisso, do sacrifício pela maioria, pelos mais humildes… Obviamente, política é uma luta de interesses, mas nós lutamos pelos interesses comuns e coletivos, a favor dos pobres. Este é o nosso grande diferencial: nossa luta não é concentrar o capital em poucas mãos, nossa luta é redistribuir a riqueza, para que haja igualdade, justiça social, para que haja paz com dignidade. Essa é a nossa luta, e na minha volta – voltarei, mais cedo ou mais tarde – o meu grande desejo é compartilhar esse treinamento, compartilhar uma pequena mostra dessa luta.
Fui para Chapare para sobreviver, com meu pai morto… e lá, de repente, me pediram para ser sindicalista. Eu não queria, mas havia confiança. Saí do meu trabalho agrícola, entrei na direção sindical, fui torturado, processado, confinado, tantas vezes ameaçado… não fui para Chapare para ser líder, muito menos para ser presidente, mas minha escola é a luta sindical, a luta social e a luta comunal. Não sou desses que dizem, “eu sou da juventude comunista ou socialista”. Aprendi na vida. E se você me pergunta porque cheguei à presidência sem formação acadêmica, eu respondo que foi por causa da verdade e da honestidade. Este governo (atual) fez mil tentativas de me envolver em questões de corrupção, mas não conseguiu. O que eles vão conseguir, depois de tantas difamações? Então, meu desejo é voltar e compartilhar com as novas gerações. Porque temos certeza de que vamos vencer. E muitos presidentes, não apenas Evo.
Sobre o entrevistador
Evo Morales was president of Bolivia from 2005 to 2019.
Sobre os entrevistados
Denis Rogatyuk is a journalist at El Ciudadano, a writer, contributor, and researcher with a number of publications including Jacobin, Tribune, Le Vent Se Leve, Senso Comune, the GrayZone, and others.
Bruno Sommer Catalan is a Chilean journalist and the founder of El Ciudadano.
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