O líder dos direitos civis, que morreu na sexta-feira, reconheceu os capítulos mais sombrios da história do país, mas insistiu que a mudança sempre foi possível.
Ilustração de João Fazenda |
Tradução / John Robert Lewis nasceu em 1940 perto da cidade de Troy, Alabama, na área chamada de Black Belt. Seus pais eram meeiros, e ele cresceu passando os domingos com um bisavô que nasceu escravizado e ouvindo sobre os linchamentos de homens e mulheres negros, que ainda eram comuns na região. Quando Lewis tinha alguns meses, o gerente de uma fazenda de frangos, Jesse Thornton, foi linchado a cerca de 32 quilômetros na estrada, na cidade de Luverne. Sua ofensa foi referir-se a um policial pelo primeiro nome, e não como "senhor". Uma multidão perseguiu Thornton, apedrejou e atirou nele, depois jogou seu corpo em um pântano; foi encontrado, uma semana depois, cercado por abutres.
Essas histórias, e as realidades da segregação da era Jim Crow, levaram Lewis a se tornar um dissidente norte-americano. Mergulhado nos ensinamentos de sua igreja e nos sermões de rádio de Martin Luther King Jr., ele saiu de casa para Nashville, para estudar teologia e as táticas de resistência não violenta. King provocou-o como "o garoto de Troia", o rosto mais jovem na vanguarda do movimento. Em um longo percurso como ativista, Lewis foi preso 45 vezes e espancado várias vezes pela polícia e por supremacistas brancos, mais notoriamente em Selma, em 7 de março de 1965 – o Domingo Sangrento - quando ajudou a liderar seiscentas pessoas em uma marcha pelo direito de votar. Depois de atravessarem pacificamente uma ponte, os soldados do Alabama atacaram, usando gás lacrimogêneo, paus e chicotes. Momentos depois de iniciada a investida, Lewis caiu inconsciente, com fratura craniana. Mais tarde, ele disse: "Eu pensei que ia morrer".
Com muita frequência neste país, o progresso parece descarrilado, revertido ou esgotado. O Domingo Sangrento levou diretamente à aprovação da Lei dos Direitos de Voto - e, no entanto, suprimir o voto dos negros é, até hoje, um pilar da estratégia do Partido Republicano. A eleição do primeiro presidente afro-americano foi seguida por um concorrente preconceituoso à eleição, e agora à sua reeleição, em uma plataforma de racismo e ressentimento. O assassinato de Jesse Thornton tem eco nos assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e muitos outros. De fato, até hoje, a ponte onde Lewis quase perdeu a vida é nomeada em homenagem a Edmund Pettus, um senador dos EUA que era oficial dos Confederados e um Grande Dragão do Ku Klux Klan do Alabama.
E assim houve momentos em que Lewis, que morreu na sexta-feira, aos oitenta anos de idade, pode ter tido a tentação de desistir, de ceder. Mas provavelmente tenha sido sua característica mais saliente a de sempre se recusar ao desespero; de olhos abertos, ele testemunhou os capítulos mais sombrios da história norte-americana e ainda insistia que a mudança sempre era possível. Recentemente, ele participou de um encontro com cidadãos, pelo Zoom, com Barack Obama e um grupo de ativistas, e disse a eles que as semanas de manifestações pela justiça racial em todo o país tinham servido de inspiração para ele. Os manifestantes, disse ele, "redimirão a alma da América e se aproximarão de uma comunidade em paz consigo mesma".
A dissidência é um componente essencial da história e do futuro norte-americanos. Nesse espírito, a edição da semana que vem do The New Yorker contará com perfis, reportagens, ensaios, ficção e poesia dos arquivos sobre esse tema. Algumas das figuras escritas aqui eram dissidentes na arena pública, como a Dr. King, Margaret Fuller e Cesar Chavez, que se propuseram a combater a ordem estabelecida de racismo, misoginia e exploração. Outros foram artistas, como Langston Hughes e Toni Morrison, que fornecem a visão e a linguagem para entender nossa situação e, talvez, para ajudar a transformá-la. E há aqueles, como o cientista James Hansen, cuja coragem é insistir na validade dos fatos, quando a ignorância deliberada pode levar ao aquecimento catastrófico do planeta - ou à propagação de um vírus mortal. Todos eles perseveraram contra inúmeros obstáculos, mesmo sabendo que talvez não vivessem para ver concluídas as suas lutas mais fundamentais.
Essas histórias, e as realidades da segregação da era Jim Crow, levaram Lewis a se tornar um dissidente norte-americano. Mergulhado nos ensinamentos de sua igreja e nos sermões de rádio de Martin Luther King Jr., ele saiu de casa para Nashville, para estudar teologia e as táticas de resistência não violenta. King provocou-o como "o garoto de Troia", o rosto mais jovem na vanguarda do movimento. Em um longo percurso como ativista, Lewis foi preso 45 vezes e espancado várias vezes pela polícia e por supremacistas brancos, mais notoriamente em Selma, em 7 de março de 1965 – o Domingo Sangrento - quando ajudou a liderar seiscentas pessoas em uma marcha pelo direito de votar. Depois de atravessarem pacificamente uma ponte, os soldados do Alabama atacaram, usando gás lacrimogêneo, paus e chicotes. Momentos depois de iniciada a investida, Lewis caiu inconsciente, com fratura craniana. Mais tarde, ele disse: "Eu pensei que ia morrer".
Com muita frequência neste país, o progresso parece descarrilado, revertido ou esgotado. O Domingo Sangrento levou diretamente à aprovação da Lei dos Direitos de Voto - e, no entanto, suprimir o voto dos negros é, até hoje, um pilar da estratégia do Partido Republicano. A eleição do primeiro presidente afro-americano foi seguida por um concorrente preconceituoso à eleição, e agora à sua reeleição, em uma plataforma de racismo e ressentimento. O assassinato de Jesse Thornton tem eco nos assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e muitos outros. De fato, até hoje, a ponte onde Lewis quase perdeu a vida é nomeada em homenagem a Edmund Pettus, um senador dos EUA que era oficial dos Confederados e um Grande Dragão do Ku Klux Klan do Alabama.
E assim houve momentos em que Lewis, que morreu na sexta-feira, aos oitenta anos de idade, pode ter tido a tentação de desistir, de ceder. Mas provavelmente tenha sido sua característica mais saliente a de sempre se recusar ao desespero; de olhos abertos, ele testemunhou os capítulos mais sombrios da história norte-americana e ainda insistia que a mudança sempre era possível. Recentemente, ele participou de um encontro com cidadãos, pelo Zoom, com Barack Obama e um grupo de ativistas, e disse a eles que as semanas de manifestações pela justiça racial em todo o país tinham servido de inspiração para ele. Os manifestantes, disse ele, "redimirão a alma da América e se aproximarão de uma comunidade em paz consigo mesma".
A dissidência é um componente essencial da história e do futuro norte-americanos. Nesse espírito, a edição da semana que vem do The New Yorker contará com perfis, reportagens, ensaios, ficção e poesia dos arquivos sobre esse tema. Algumas das figuras escritas aqui eram dissidentes na arena pública, como a Dr. King, Margaret Fuller e Cesar Chavez, que se propuseram a combater a ordem estabelecida de racismo, misoginia e exploração. Outros foram artistas, como Langston Hughes e Toni Morrison, que fornecem a visão e a linguagem para entender nossa situação e, talvez, para ajudar a transformá-la. E há aqueles, como o cientista James Hansen, cuja coragem é insistir na validade dos fatos, quando a ignorância deliberada pode levar ao aquecimento catastrófico do planeta - ou à propagação de um vírus mortal. Todos eles perseveraram contra inúmeros obstáculos, mesmo sabendo que talvez não vivessem para ver concluídas as suas lutas mais fundamentais.
Sobre o autor
David Remnick é editor do The New Yorker desde 1998 e escritor da equipe desde 1992. Ele é o autor de "A Ponte: a vida e ascensão de Barack Obama”.
David Remnick é editor do The New Yorker desde 1998 e escritor da equipe desde 1992. Ele é o autor de "A Ponte: a vida e ascensão de Barack Obama”.
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