3 de julho de 2020

As grandes empresas ainda têm enorme controle da política americana em todos os níveis

As grandes empresas há muito tempo desempenham um papel de destaque na política dos EUA. Em um ano de peste, e enquanto os políticos pressionam prematuramente para reabrir a economia, o cientista político Thomas Ferguson argumenta que seu lugar no centro da vida americana é mais grotesco do que nunca.

Uma entrevista com
Thomas Ferguson

Jacobin

O famoso touro perto de Wall Street, em Nova York. htmvalerio / Flickr.

Tradução / O professor de ciência política na Universidade de Massachusetts, em Boston, Thomas Ferguson analisa o papel do dinheiro na política dos EUA há mais de 40 anos. Juntamente com os colaboradores, ele mapeou a evolução dos blocos de investidores que estão por trás dos partidos democrata e republicano.

Nos últimos meses, a política nos EUA pareceu mais instável do que nunca, das primárias democratas à pandemia de coronavírus e ao levante contra a violência policial após o assassinato de George Floyd. Mas, como Ferguson argumenta, esses eventos costumam ser motivados por forças conhecidas. O poder das grandes empresas moldou tudo, desde o impulso imprudente para pelo retorno aos negócios até as respostas aos levantes.

Ferguson discutiu tudo isso com Paul Heideman, da Jacobin.

Paul Heideman

O mundo cambaleia sob o peso da pandemia do Covid-19; o assassinato de George Floyd em Minneapolis provocou uma vasta onda de protestos; e os EUA estão no meio de uma eleição presidencial muito tensa. Cada um desses eventos é importante por si só; juntos, são quase esmagadores. Como acha que devem ser analisados?

Thomas Ferguson

A explicação detalhada do contexto completo da onda de protesto é esclarecedora. Decolou quando a economia mergulhou em níveis de depressão em questão de semanas, não meses ou anos. O desemprego disparou. É óbvio que a maioria dos benefícios do resgate e as intervenções gigantescas do Federal Reserve nos mercados financeiros foram muito fortes. Os empregos para jovens e recém-formados acabaram completamente. Muitos dos desempregados, não conseguem acessar o auxílio prometido, os estados adotam políticas radicalmente diferentes para oferecer benefícios, e alguns importantes apoios públicos de curto prazo terminarão neste verão. Muitas pessoas confiam nos bancos de alimentos para pelo menos parte do seu sustento.

Mas isso não é nem metade da história. Dois fatos políticos sobre o momento dos protestos são de grande importância.

O primeiro é que os governos de todos os níveis falharam em lidar com a pandemia. Após a Primeira Guerra do Golfo, o planejamento de pandemias passou a ser tratado nos EUA como uma questão de segurança nacional. Mas o sistema de saúde estadunidense, com fins lucrativos – agora turbinado por aquisições por empresas de private equity [de investimentos privados – Nota da Redação] – viu acúmulos de leitos hospitalares de reserva, estoques e tantas ameaças aos lucros.

Quando a pandemia começou, as autoridades e o presidente Trump subestimaram sua seriedade. Praticamente ninguém em qualquer posição de autoridade fez um planejamento sério ou tentou dar suprimentos ou coordenar respostas. Às vezes, o nível de má-fé e o grotesco cálculo partidário eram extraordinários. Como ilustra o caso muito discutido do senador da Carolina do Norte, Richard Burr, os líderes políticos estavam, em alguns casos, dizendo aos doadores de campanha uma coisa e outra aos eleitores comuns.

Especialistas que deveriam saber mais também falharam. Desde o início, disseram que as máscaras não protegiam; por fim, ficou óbvio que sim, e que se ouvia isso apenas para ocultar o quanto as coisas estavam sendo malfeitas. À medida que os pacientes inundavam hospitais, profissionais médicos que reclamavam de proteções inadequadas para trabalhadores de hospitais eram demitidos ou ameaçados de demissão se falassem com a imprensa; as enfermeiras que trouxeram suas próprias máscaras para o trabalho foram instruídas a tirá-las.

Parece que ninguém monitorou as casas de repouso, mesmo quando os hospitais as usavam como áreas para atender pacientes com doenças mortais. As comunidades negras e latinas, com acesso geralmente menor a assistência médica, empregos, e morando muitas vezes com grandes riscos ambientais, foram atingidas com mais força, assim como os estadunidenses mais pobres em geral.

O outro fato político crítico que emoldurou os protestos foi o resultado das primárias democratas. Com a pandemia, a disputa entre Joe Biden e Bernie Sanders e, em segundo lugar, Elizabeth Warren e os demais, essencialmente terminou. Mas a chegada da pandemia apontou a importância das questões principais de Sanders – Medicare for All e salários dignos com benefícios como subsídio por doença, para que os trabalhadores infectados pudessem ficar em casa e não espalhar a doença.

Muitos não perceberam a ironia da rapidez com que o Fed e o Tesouro uniram num sistema de saúde como o atual, privado, também não tenha sido percebida por muitas pessoas.

Colocando todos esses fatos juntos é fácil entender por que, para muitas pessoas, especialmente jovens, todas as alternativas dentro do sistema político estabelecido pareciam esgotadas. Eles realmente estavam exaustos – nenhum candidato ou grupo político tinha muito a oferecer para cidadãos comuns. Então chegou a hora de ir às ruas, como fizeram os Coletes Amarelos na França, ou manifestantes no Reino Unido, onde as políticas do governo se assemelhavam fortemente às dos EUA.

Paul Heideman

E agora?

Thomas Ferguson

Primeiro, dê uma olhada na posição muito ambígua da liderança do Partudi Democrata. Um pequeno detalhe observável é importante. Uma emenda inserida na legislação de pato manco (expressão que se refere a um presidente fraco, em fim de mandato) que consagrou o enfraquecimento do “Swaps Pushout” do projeto de reforma financeira de Dodd-Frank em janeiro de 2015, tornou mais fácil para os grandes doadores canalizarem quantias muito maiores de dinheiro para o Partido Democrata. Penso que isso tornou ainda mais fácil para os blocos de grandes doadores controlarem o partido.

Como resultado, o Comitê Nacional Democrata não ficou subordinado à campanha de Biden, pelo menos ainda não. O desempenho nas primárias democratas do sul, que destruíram o boom de Sanders, envolveu muitos grandes doadores democratas, juntamente com muitos parlamentares e mulheres negras, e com as redes políticas e financeiras do ex-presidente Barack Obama, e dos Clintons. Foi uma junção de todo o establishment democrata para deter Sanders. Os líderes negros no Congresso também foram fortemente identificados com o movimento “Stop Sanders”.

Mas com o colapso econômico combinado à pandemia, que revelam a falência do establishment tradicional, todo o topo do partido teve que se mexer. É muito interessante a maneira como eles responderam. Graças à divulgação de tantos vídeos, a percepção sobre o racismo que os negros enfrentam – e não apenas o racismo da polícia – é muito difundida. A repulsa ao racismo é profunda e real.

Em resposta, o establishment democrata está pegando uma folha do passado, não no final dos anos 60, quando grupos altamente críticos dos democratas se destacaram, mas no início dos anos 60. Joel Rogers e eu descrevemos esse processo em nosso livro “Right Turn” (“Virada à direita”). Quando o movimento pelos direitos civis surgiu, grandes fundações, líderes empresariais de grandes multinacionais e fundações aliadas a eles apoiaram fortemente essa onda. John F. Kennedy apoiou Martin Luther King, e advogados proeminentes de Wall Street voaram para o sul ou defenderam ativistas de direitos civis que estavam sob ataque legal. É o que está acontecendo agora, com grupos aliados ao Partido Democrata ajudando a arrecadar dinheiro. Agora haverá tensões, como havia então, entre o partido e o movimento, mas essa é a direção básica que as coisas estão tomando.

Paul Heideman

Então, como isso se encaixa na eleição?

Thomas Ferguson

Acho que o script básico que cada parte está seguindo é evidente. Os democratas esperam uma repetição de 2008. Naquela eleição, a política ficou irremediavelmente confusa pela liderança republicana. Depois que o Lehman Brothers faliu, ninguém na oposição teve muito o que dizer. Os democratas podiam apenas sentar e assistir ao republicano John McCain se debater de maneira impotente.

Donald Trump, ao contrário, está claramente copiando o manual de Richard Nixon, embora, porque estando no poder, fique mais para 1972 do que para 1968. Os apelos duros de seu governo à “lei e ordem” são óbvios, e também o são as maneiras que ele tenta atrair os manifestantes. O mantra da “lei e ordem” parece um pouco tênue, em parte, porque os vídeos e protestos tocam claramente um acorde com muita repercussão no público. Mas também é aparente que as Forças Armadas dos EUA não querem participar do combate a protestos dentro do país, de modo que o melhor que Trump pode fazer é tentar irritar os manifestantes e esperar por fortes reações do público.

A outra coisa que a Casa Branca está decidida a fazer é encontrar uma maneira de levantar a economia. Em 1972, Nixon teve a presença de Arthur Burns no Fed para projetar um lendário ciclo de negócios políticos. O Fed de hoje certamente reage às pressões de Trump, mas a situação mundial, drasticamente diferente, limita severamente seu espaço de manobra. Dificilmente pode fazer mais do que tem feito, mesmo que quisesse.

É por isso que o presidente e o vice tentam desesperadamente minimizar a pandemia. Querem levar as pessoas de volta ao trabalho, para fazer crescer o PIB. O vice-presidente Mike Pence está claramente incentivando os líderes estaduais a falar sobre seus sucessos e minimizar as más notícias, incluindo casos de COVID-19 no sul e oeste. A Casa Branca pensa que precisa retomar a economia.

Paul Heideman

Qual é a diferença com o que o governo fazia antes?

Thomas Ferguson

Representa uma duplicação nas políticas que Trump e seu campo queriam promover mais cedo, e fizeram por um tempo. Com a pandemia em todo o mundo desenvolvido, figuras proeminentes dos negócios e economistas conservadores alertaram sobre o perigo de um longo confinamento. Alguns até falaram sobre como essas políticas reduziriam as obrigações de pensão que o Estado deve pagar. Nos EUA, no Reino Unido e em outros países europeus, foi discutida a ideia de “imunidade de rebanho”. O “armário da cozinha” de figuras de negócios de Trump, incluindo importantes executivos de private equity, foram citados repetidamente como pressionando o presidente a adotar uma atitude de “ir devagar” em relação ao confinamento.

Após a publicação do Imperial College, sobre estimativas das taxas de mortalidade que tais políticas acarretariam, porém, o entusiasmo diminuiu. O Reino Unido mudou a política. A mudança definitivamente afetou as atitudes do governo Trump. Ajudou, juntamente com a terrível realidade do que estava acontecendo, especialmente nas costas leste e oeste dos EUA, a forçar o governo a aceitar o confinamento. Nos EUA e no Reino Unido, porém, as pressões dos grupos empresariais pela rápida reabertura continuaram muito fortes. Grupos conservadores até pediram a reabertura sem estabelecer um regime viável de testes, que é exatamente o que o governo já fez.

Campos claros estão se formando dentro dos negócios, e esses parecem estar se infiltrando na política. Muitas pequenas empresas cujos modelos de negócio se apóiam em baixos salários, junto com os financiadores – ou seja, o patrimônio privado em primeiro lugar – cujas estratégias dependem da compra e do desmembramento de empresas, continuam a tentar reabrir rapidamente.

Por outro lado, muitas empresas financeiras, e especialmente indústrias de alta tecnologia e de capital intensivo cujas estratégias não se baseiam em salários baixos, são menos cuidadosas com os perigos da abertura rápida. Muitas empresas de tecnologia promovem entusiasticamente seus produtos como soluções para os problemas que a pandemia cria – como é óbvio em muitas empresas de internet e software. Robert Rubin pediu que os painéis conjuntos de profissionais médicos e economistas decidissem quando a reabertura era viável; mesmo assistência robótica foi apresentada.

Onde a porca torce o rabo, porém, é a questão crítica da segurança do trabalhador. Trump estripou a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional (OSHA). Não apenas o número de inspetores está diminuindo, como os principais indicados são claramente desinteressados ​​em regulamentar o assunto.

Parece-me que essa é uma interseção potencialmente fatídica entre o movimento que cresce desde Minneapolis e os democratas. Os pedidos para reabrir rapidamente são basicamente de gerentes de colarinho branco ricos que podem trabalhar em casa. Eles querem enviar trabalhadores de colarinho azul de volta ao trabalho em condições que os executivos seniores não aceitariam para si próprios. Muitos dos trabalhadores de colarinho azul são, é importante acrescentar, negros ou latinos. Os protestos inspiraram muitos trabalhadores negros e latinos a exigir condições seguras de trabalho.

Não tenho muito a dizer sobre os resgates financeiros clássicos que os EUA buscaram – eles protegem a riqueza daqueles que a possuem, enquanto o governo faz alguma coisa, mas não muito, pela subsistência dos cidadãos comuns. Mas faria muito sentido passar para o balanço nacional o custo de redesenhar o trabalho para torná-lo seguro. Isso seria realmente um bom uso dos recursos públicos.

Paul Heideman

Então, como isso acontece na eleição?

Thomas Ferguson

No momento, os casos do COVID-19 aumentam em muitos estados do sul e oeste, cujos governadores republicanos seguiram a liderança da Casa Branca e fingiram que a pandemia acabou ou que de alguma forma nunca os alcançaria. Como resultado, pode-se sentir um tremor sísmico no apoio a Trump: o lendário nível básico de 40% a favor dele, que as pessoas pensavam que nunca poderia ser quebrado, está sendo rompido.

Mas lembro-me muito bem de 1988, quando Michael Dukakis estava quase 20 pontos à frente de George H.W. Bush, no final do verão. Muita coisa pode mudar o que parece ser uma vantagem praticamente intransponível. É preciso lembrar que Biden parece bem, principalmente ao lado de Trump; o candidato democrata não gera por conta própria muito entusiasmo nos eleitores. Ainda não está claro como a campanha de Biden pode aproveitar a energia que alimentou Sanders e, até certo ponto, Warren. Os termos de troca entre os campos ainda estão sendo elaborados, e o esforço pode falhar. Se a elite democrata for burra o suficiente para acreditar nas alegações de muitos, de que 2016 não teve nada a ver com economia, poderão repetir aquele desastre.

Tenho dificuldade em acreditar que as pessoas desempregadas e assistindo como o governo está permitindo que as seguradoras escapem da cobertura dos custos dos testes COVID, serão inspiradas a votar em Biden sem algo muito mais forte do que uma “opção pública” para a saúde, em vez do Medicare for All, por exemplo.

Muitas outras coisas também podem dar errado. Vamos apenas apoiar a possibilidade de alguma crise estrangeira, especialmente no Mar da China Meridional, já que também está claro que Trump ainda espera que um grande acordo comercial com a China possa acontecer. Caso contrário, existem os antigos confiáveis ​​para o Partido Republicano: esforços para conter a participação dos eleitores, e fluxos gigantes de muito dinheiro.

Este ano, porém, há um problema quanto ao primeiro ponto. A campanha de Trump contra os Correios pode ter começado como uma briga com a Amazon, mas, no momento, está claramente se transformando em outra coisa. As evidências empíricas da primária de Wisconsin mostram de forma clara que o voto em pessoa levou a várias ondas de novas infecções por COVID.

Como resultado, cresce o interesse na votação por correio. É claro que os republicanos se opõem principalmente a isso, embora as evidências empíricas não sugiram que as cédulas por correio tenham fortes vantagens partidárias de uma maneira ou de outra. Mas, é claro, um posto de correios quebrada não fornecerá muito. Meu palpite é que se verá Trump se aprofundando cada vez mais nesse assunto à medida que o dia das eleições se aproxime.

O que nos leva à questão do dinheiro. Aqui, não tenho muito a acrescentar ao que meus colegas Paul Jorgensen, Jie Chen e eu escrevemos no início do ano. Em 2016, descobrimos que Trump alcançou a vitória com uma grande onda de dinheiro de última hora, de grandes empresas de private equity, entre outras. Também conjeturamos que a correlação perfeita pela primeira vez na história dos EUA entre o sucesso republicano nas eleições do Senado e o resultado da votação presidencial nos estados não foi um acidente. Isso acabou sendo verdade. Trump foi um pouco melhor em estados com disputas ao Senado. Mostramos agora como o dinheiro de última hora virou as disputas ao Senado, quando as perspectivas poucas semanas antes da eleição pareciam sem esperança. Esse exemplo é instrutivo. Os candidatos democratas que perderam as eleições nos últimos dias me disseram como viram a entrada de dinheiro mudar o que parecia uma situação favorável. Acho que os problemas de contagem de cédulas, inclusive, provavelmente tornarão a eleição de 2020 muito tensa, não importa o que as pesquisas digam agora ou mesmo no dia anterior à eleição. Se vivemos em uma era pré ou pós-apocalíptica, isso pode ser testado.

Colaboradores

Thomas Ferguson é professor emérito de ciência política na Universidade de Massachusetts, em Boston; as opiniões que ele expressa aqui são suas e não as de qualquer instituição com a qual esteja conectado.

Paul Heideman é PhD em estudos americanos pela Rutgers University - Newark.

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