12 de julho de 2020

Novo modelo de renda básica exige superar armadilhas do passado, dizem especialistas

Programa mais abrangente que o Bolsa Família pode substituir auxílio emergencial depois da pandemia

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)


Ilustração - Jairo Malta

[RESUMO] Proposta do governo de ampliação do Bolsa Família pode ser novo passo rumo à implantação da transferência de renda universal e incondicional, desde que se criem consensos com base na experiência e se evitem debates e pressupostos equivocados, como apontar os métodos de inclusão de famílias como principal problema do programa.

O DIA DA MARMOTA

No clássico filme “Feitiço do Tempo”, de 1993, Bill Murray interpreta um apresentador da previsão do tempo na TV cheio de empáfia que é pego em uma armadilha temporal, ficando preso por anos no mesmo dia: o “dia da marmota”, título original do longa (“Groundhog Day”).

Se de início a repetição lhe parece divertida, aos poucos se transforma em tédio e desespero. Em um final feliz, o protagonista abandona a arrogância, conquista um grande amor e volta ao tempo linear.

Subjacente ao mote do filme, está a pressuposição de um tempo cíclico, que se repete. A noção de eterno retorno é muito antiga —está presente, por exemplo, na filosofia estoica e na mitologia hindu— e nos ensina, grosso modo, a encarar as dificuldades vividas e a construir resiliência. No século 19, Nietzsche trouxe a hipótese para a filosofia ocidental e apontou o terror nela embutido, questionando quem de nós estaria contente o bastante com a própria vida para topar revivê-la infinitamente.

Indutora de reflexões importantes, a ideia do eterno retorno torna-se muito prejudicial se ultrapassa as fronteiras religiosas, filosóficas e artísticas e invade a formulação de políticas públicas. Isso nos leva a retomar discussões ultrapassadas como se fossem inovações, como quem se esquece do desenvolvimento ocorrido nos últimos anos.

Ficamos, assim, refém de dogmas, estagnados, presos no tempo. Nas discussões sobre o modelo de transferência de renda que virá após o auxílio emergencial, o prejuízo dessa algema temporal é ainda mais contundente, porque pode fazer com que deixemos milhões de pessoas na pobreza enquanto reinauguramos debates ou que desenhemos um novo modelo fadado ao fracasso.

A adoção de uma renda básica de cidadania, universal, incondicional e suficiente para erradicar a pobreza nos livraria do receio de cair nas armadilhas do passado. Porém, o debate político concreto aponta que as decisões se direcionam para um formato mais restrito, de uma renda mínima mais generosa que o Bolsa Família em termos de público e verba distribuída, talvez aliada a benefícios de caráter universal para segmentos específicos da população, a exemplo das crianças.

Para sermos bem realistas, se contarmos com boa dose de responsabilidade social da classe política, chegaremos a um modelo de transferência de renda capaz de atender dignamente os 50% mais pobres da população. Nesse caso, a implementação da nova transferência é relativamente fácil, porque consiste na ampliação e na revisão incremental do próprio Bolsa Família.

E aí, sejamos justos, não há motivos sequer para trocar o nome do programa. Tal mudança só confundiria a população e causaria entre os mais pobres a sensação de que a existência do benefício depende de manter no poder quem o criou —sentimentos diametralmente opostos à noção de renda básica.

A transformação de um debate sobre renda universal e incondicional em um programa de renda mínima pode frustrar os defensores da renda básica de cidadania, mas não precisa ser assim. Podemos encarar esse programa mais abrangente de renda mínima como um novo passo em direção à universalização do benefício, como tanto nos ensina seu maior defensor no Brasil, o ex-senador Eduardo Suplicy.

No entanto, para que essa percepção otimista tenha base concreta, é preciso que a nova transferência resguarde a dimensão de direitos presente na ideia de renda básica. E, para tanto, não podemos deixar seu desenho cair em debates superados ou nas arapucas do eterno retorno. Por isso, enumeramos aqui cinco armadilhas das quais devemos escapar: o pente-fino, o bolsa-relé, a árvore de Natal, a porta de saída e o fantasma multidimensional.

PENTE É ASSUNTO DE CABELO

Para entender a primeira armadilha, sugerimos ao leitor um exercício simples: vá até sua ferramenta de pesquisa predileta na internet e digite a expressão pente-fino. Logo verá que o termo deixou seu terreno comum e se enveredou metaforicamente pelas políticas públicas. Ora, nada contra o uso de metáforas —e inclusive este texto está repleto delas—, mas essa, em específico, frequentemente se transforma em um embuste.

A armadilha do pente-fino faz-se presente no argumento de que o grande problema das nossas transferências assistenciais são os erros de inclusão (atender a quem não precisa), de forma que poderíamos obter os recursos necessários para turbinar o combate à pobreza passando um pente-fino no Bolsa Família e em outros programas sociais. Nessa lógica, nossa política social precisaria apenas de um choque de gestão para se tornar mais eficiente e efetiva.

Balela. É claro que programas sociais têm vazamentos —e é dever do Estado corrigi-los—, mas o Bolsa Família tem excelente focalização, conforme padrões internacionais, e os potenciais recursos que podem ser poupados com pentes-finos ficam muito aquém do necessário para construir um programa de transferência de renda realmente efetivo na superação da pobreza.

Não há saída fácil: precisaremos aliar a discussão de renda básica à reforma tributária, à revisão do teto de gastos e/ou a cortes em políticas e programas que beneficiam os ricos.

BOLSA-RELÉ, UMA LUZ QUE NÃO ACENDE

Pautadas em um irreal rigor focalista também estão as propostas de construção de um bolsa-relé, termo cunhado pelo pesquisador Sergei Soares há quase duas décadas. A armadilha está na ideia de que o poder público seria capaz de identificar instantaneamente quem entra e quem sai da pobreza e, assim, conceder e suspender benefícios em tempo real. Seria como um relé, aquele dispositivo que faz uma lâmpada acender de forma automática na nossa presença e se apagar assim que deixamos o ambiente.

Qualquer um pode abrir uma base de dados e inventar seu próprio bolsa-relé, mas, no mundo real, esbarramos em dois problemas. Primeiro, a volatilidade dos rendimentos de boa parte da população —em especial no setor informal— faz com que a pobreza seja dinâmica. Com as informações disponíveis, é impossível prever com precisão quem ficará abaixo ou acima da linha de pobreza a cada mês.

Segundo, em nenhum país do mundo o Estado é capaz de identificar e atender tão celeremente quem entra e quem sai da pobreza. Podemos melhorar nossos sistemas ao máximo, e ainda assim sempre haverá o tempo operacional requerido para o cadastramento e a emissão do pagamento.

Portanto, precisamos de um programa abrangente para atender tanto a pobreza crônica quanto a transitória e os vulneráveis. Caso contrário, ou deixaremos milhões de brasileiros fora da proteção social ou, em uma hipótese mais otimista e também deplorável, enfrentando a miséria sem nenhum amparo do Estado por alguns meses por ano.

Para que o leitor tenha clareza do que estamos falando: um bolsa-relé restrito à linha de extrema pobreza de um quarto do salário mínimo deixaria cerca de 6 milhões de pessoas na miséria por mais de dois meses no ano, sendo 1,5 milhão de crianças ou adolescentes.

A ÁRVORE DE NATAL ENVERGA E CAI

A terceira armadilha —a árvore de Natal— ocorre quando começamos a pendurar em um programa de transferência de renda outras iniciativas de natureza muito distinta, ao ponto de descaracterizá-lo. A tentação de fazer isso em um programa como o Bolsa Família é muito grande, afinal, ele chega a 20% da população brasileira e coordena toda uma rede intra e interfederativa de articulação nas áreas de assistência social, educação e saúde. Parece, portanto, um jeito fácil de chegar aos mais pobres e, de fato, é.

Esse uso do Bolsa Família para potencializar o acesso dos mais pobres a outras políticas públicas é, no entanto, muito diferente de inserir no próprio desenho do programa iniciativas alheias à sua forma de atuação, tais como defendem os que propõem acoplar vouchers para pagamento de educação infantil.

Sob o peso dos enfeites, o programa se transforma em uma árvore de natal, perde sua capacidade de implementação e se enfraquece no cumprimento de seus principais objetivos.

UMA PORTA NO LUGAR ERRADO

Muitos enfeites relacionam-se à percepção de que um programa não deve só transferir renda, mas também prover portas de saída da pobreza, nossa quarta armadilha. Alguns sugerem, por exemplo, que se torne obrigatório o acompanhamento psicossocial das famílias pobres com base em metas de superação da pobreza.

No entanto, se esquecem de que as avaliações das iniciativas internacionais que seguiram esse modelo indicam que o acompanhamento psicossocial se mostrou mais efetivo para a sensação de bem-estar entre as pessoas atendidas que em sua inserção no mercado de trabalho ou superação da pobreza.

Outras propostas preveem a inserção de uma condicionalidade de busca de empregos entre os adultos beneficiários, desconsiderando a dinâmica do mercado de trabalho brasileiro e a própria fragilidade das políticas ativas de emprego.

Ora, nada contra o acompanhamento das pessoas vulneráveis, o que é inclusive tarefa prevista no Sistema Único de Assistência Social. Tampouco há como ser contra a articulação de uma rede de políticas públicas para a população mais vulnerável. Porém, em termos concretos, frequentemente o debate sobre portas de saída traz dois riscos: do ponto de vista das famílias, o risco está em individualizar as causas da pobreza, em geral com tintas moralizantes.

Do ponto de vista da política pública, o risco é sobrecarregar o programa de transferência de renda, que passa então a ser julgado também por sua capacidade de resolver sozinho todos os problemas do mundo. Se as causas da pobreza e da desigualdade são diversas, sua solução não será única. Em outras palavras: se fosse fácil assim resolver a questão social, a pobreza mundial já teria sido erradicada há muito tempo.

O FANTASMA DE DIMENSÕES INVISÍVEIS

Por fim, há a armadilha do fantasma multidimensional. Seus defensores afirmam que, sendo a pobreza um fenômeno multidimensional e não restrito à insuficiência monetária, os programas assistenciais devem parar de selecionar seus beneficiários a partir da renda declarada e passar a usar algum indicador multidimensional. Com isso, poderíamos melhorar sua focalização e torná-los mais sensíveis às várias dimensões da pobreza.

São argumentos simples, intuitivos —e errados. Por um lado, basta ver que o Bolsa Família tem níveis de focalização tão bons ou melhores que os de programas de outros países que usam indicadores multidimensionais para selecionar seu público. Usar um critério multidimensional nos impede de atender quem sofreu choques negativos de renda, porque essa pessoa perdeu abruptamente rendimento monetário, e não escolaridade ou outros atributos utilizados no índice multidimensional.

Mais ainda, seu uso provavelmente pioraria a focalização do programa, porque dificultaria a avaliação do poder público sobre a fidedignidade das informações prestadas. Afinal, o Estado brasileiro possui bases de dados que permitem identificar erros e fraudes se as pessoas omitirem rendimentos formais, mas nada poderá fazer se as pessoas informarem incorretamente seu tipo de acesso à água ou a quantidade de banheiros em seu domicílio.

Por outro lado, o critério multidimensional mais esconde que revela. Como é impossível considerar simultaneamente diversas dimensões da pobreza, acabamos tendo que reduzi-las a um índice abstrato. O problema é óbvio: famílias com valores parecidos podem ter carências muito diferentes; seja qual for o número mágico, nada é dito sobre qual a dimensão da pobreza mais penosa para uma dada família.

Este é o fantasma: no afã de considerar todas as dimensões da pobreza, o índice a torna invisível. Para contornar isso, é preciso analisar os indicadores que o compõem e destrinchar as carências que revelam. Um índice que se abra em dimensões é, de fato, uma ferramenta muito útil para direcionar a atuação das políticas públicas aos mais vulneráveis e pode ser feito com base nas informações do Cadastro Único, como já ocorreu.

No entanto, isso em nenhum momento requer a alteração dos requisitos de identificação do público elegível à transferência de renda. É claro que a pobreza é multidimensional, o que não significa que os critérios de seleção de famílias também devam ser.

POR UM FINAL FELIZ

Para que consigamos caminhar do auxílio emergencial para um modelo de transferência de renda efetivo no combate à pobreza e que resguarde a perspectiva de direito presente na ideia de renda básica, temos de considerar todos os aspectos produtivos subjacentes aos argumentos das tais armadilhas.

Sim, precisamos ter um diagnóstico preciso sobre os programas sociais, melhorar nossos sistemas de informação, identificar as carências da população de forma ágil, articular uma rede de políticas públicas direcionadas às múltiplas faces da pobreza e prover meios que favoreçam sua superação.

Mas não podemos nos dar o direito de deixar de lado a experiência e as evidências empíricas e cair em um debate paralisante. Em outros termos, se quisermos sair do dia da marmota e ter um final feliz, tal como o protagonista do filme, precisamos abandonar a arrogância, construir consensos com base no aprendizado e deixar o tempo seguir em frente.

Sobre os autores

Letícia Bartholo

Socióloga e ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016)
Pedro H. G. Ferreira de Souza

Sociólogo e autor de "Uma História da Desigualdade" (ed. Hucitec/Anpocs), vencedor do Livro do Ano no Prêmio Jabuti (2019)
Rodrigo Orair

Economista e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal (2017-2019)
Luis Henrique Paiva

Sociólogo e ex-secretário nacional de Renda de Cidadania (2012-2015)

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