3 de julho de 2020

Quando democracias taxam os ricos?

Covid-19 gerou nova demanda por tributação progressiva, para pagar aumento da dívida pública

Nelson Barbosa



covid-19 gerou nova demanda por tributação progressiva, para pagar o aumento da dívida pública decorrente da “guerra contra o vírus”. Esta demanda já existia antes da crise, devido ao aumento da desigualdade de renda nas democracias ocidentais desde os anos 1980, mas sem grandes avanços.

Será que agora teremos algum progresso? Difícil dizer. A política continua confusa com propagação de notícias falsas via redes antissociais. Neste quadro de desinformação, vale a pena olhar para trás e ver quando e por que houve aumento da tributação sobre os mais ricos em vários países. Em um livro 2016, “Taxing the Rich”, os cientistas políticos Kenneth Scheve e David Stasavage fizeram exatamente isto.

O livro tem vários pontos interessantes, mas arrisco um resumo: houve mais tributação sobre ricos quando ficou claro que o Estado favorecia os ricos de modo injusto. Aumento da desigualdade per se não leva à tributação mais progressiva, pois a desigualdade pode ser percebida como justificada, um resultado das habilidades dos mais ricos, ou retratada como justificada, dado que os mais ricos tendem a capturar o debate político em democracias.

Seja qual for o caso, o ponto mais interessante do livro é que o aumento da tributação direta é um fato recente, do início do século 20, e coincidiu com a necessidade de financiamento de duas guerras mundiais.

Naquela época, tributação mais progressiva foi percebida e aceita como compensação pelo fato de os trabalhadores lutarem a guerra enquanto o capital desfrutava dos lucros da guerra. Para os autores, argumentos compensatórios deste tipo têm muito mais força política do que discursos baseados na defesa da democracia ou na capacidade de pagamento de tributos.

Trazendo o assunto para o Brasil, o aumento necessário de nossa tributação direta terá mais chance de prosperar se for justificado como compensação aos mais pobres pela grande desigualdade de oportunidades no país. Em segundo lugar também há a iniquidade de nosso sistema tributário, onde a classe média paga uma parcela maior de sua renda ao Estado do que os mais ricos.

E para que os argumentos acima prosperem serão necessárias pelo menos duas condições: (1) garantia de que o aumento da tributação direta irá para redução de desigualdade e geração de emprego e (2) aliança política entre a classe média e os mais pobres para aumentar a tributação sobre os mais ricos. Por enquanto estamos empacados nas duas coisas.

De um lado, a maioria das mudanças fiscais em discussão tendem a penalizar a classe média e beneficiar os mais ricos, via Refis generosos ou aumentos salariais para servidores públicos de alta remuneração, penalizando o resto da sociedade.

Do outro lado, parte da classe média brasileira continua se achando no mesmo barco que os 1% mais ricos e, por isso, teme que qualquer aumento de progressividade tributária acabe reduzindo sua renda.

Para quebrar o impasse e tendo em vista que mudança de tributação direta tem que ser aprovada com um ano de antecedência, o ideal é demonstrar a intenção de reduzir desigualdades agora, via reforço e aperfeiçoamento do Bolsa Família, mais recursos para saúde e educação públicas e, principalmente, política de geração direta de emprego, inclusive para a classe média, que está sob risco extinção.

No curto prazo, estas iniciativas podem e devem ser financiadas com emissão de dívida, aprovando e programando o aumento da tributação sobre os mais ricos para 2022 em diante, de modo gradual e previsível.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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