Por décadas, comentaristas previram que o modelo socialista de Cuba não sobreviveria sem a URSS ou Fidel Castro. Eles estavam errados - e mesmo em face de sanções contínuas, seu sistema singular perdura.
Helen Yaffe
Médicos cubanos chegando na Itália, onde colaboraram para deter o coronavírus. Foto de Daniele Mascolo / Reuters. |
Tradução / Por sessenta anos, a Revolução Cubana desafiou as expectativas e desprezou as regras. Cuba é um país de contradições; um país pobre que lidera indicadores mundiais de desenvolvimento humano e mobilizou a maior assistência humanitária internacional do mundo; uma economia fraca e dependente que sobreviveu à crise econômica e ao bloqueio extraterritorial criminoso dos EUA; anacrônico, mas inovador; formalmente condenado ao ostracismo, mas com milhões de defensores fervorosos em todo o mundo. Apesar de cumprir a maioria dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pelas Nações Unidas em 2015, a estratégia de desenvolvimento de Cuba não é considerada um exemplo. Essas contradições exigem explicação. “Cuba é um mistério”, Isabel Allende, diretora do Instituto Superior de Relações Internacionais, me disse em Havana, “é verdade, mas você tem que tentar entender esse mistério”.
Os historiadores gostam de aniversários, ajudam a marcar a passagem do tempo e a dar perspectiva à sua passagem. O ano de 2019 marcou 60 anos desde que o Exército Rebelde tomou o poder da ditadura cubana de Fulgência Batista. Mas na metade do caminho estava outra data histórica útil: fazia trinta anos desde que Fidel Castro declarou publicamente que se a União Soviética se desintegrasse, a Revolução Cubana perduraria. Ele disse isso em 26 de julho de 1989, dezoito meses antes do colapso da URSS e quatro meses antes da queda do Muro de Berlim. Por três décadas, a sobrevivência do socialismo cubano foi atribuída à ajuda soviética. Hoje, a Revolução existe no mundo pós-soviético há mais tempo do que sob a esfera de influência soviética. Como é possível que o socialismo cubano tenha sobrevivido?
A Revolução é agora mais velha que o novo chefe de Estado, o presidente Miguel Díaz-Canel, um quadro do socialismo Cubano. É filho de um mecânico e uma professora primária, nascido em abril de 1960 em Placetas, pequena cidade do centro de Cuba fundada por colonos espanhóis em 1861. Em abril de 2018, com voto não muito unânime da Assembleia Nacional do Poder Popular, Díaz-Canel substituiu Raul Castro. Sua ascendência é um dos enigmas da história: o fim do reinado de Castro não sinalizou o fim da Revolução Cubana.
Durante anos, os estudantes de Cuba foram condicionados a acreditar que a trajetória da Revolução só poderia ser entendida por referência à biologia ou psicologia de Fidel Castro. Então Fidel adoeceu, renunciou, morreu, mas a Revolução sobreviveu. Raul Castro assumiu. Ele foi referido como o “irmão”, como se isso explicasse seu governo; o “reformador”, como se uma transição pacífica para o capitalismo estivesse assegurada. Raul veio, ele se reformou, renunciou e o sistema socialista prevaleceu.
Portanto, se não foram os “irmãos Castro” que explicaram a resistência cubana ao sistema, outros fatores devem ser responsáveis por sua sobrevivência no mundo pós-soviético. Estávamos muito distraídos com toda a questão sobre o que a Revolução estava fazendo de errado para nos perguntar sobre o que estava dando certo e como?
Um povo revolucionário
Meu livro se propõe a contar essa história. We are Cuba! How a Revolutionary People Have Survived in a Post-Soviet World mostra como as decisões tomadas em um período de crise e isolamento desde o final da década de 1980 moldaram Cuba no século XXI nos domínios da estratégia de desenvolvimento, ciência médica, energia, ecologia, cultura e educação. Muitos desses desenvolvimentos ocorreram “sob o radar”, surpreendendo pessoas de fora como o Dr. Kelvin Lee, chefe de imunologia do Centro de Câncer de Nova York que está testando uma imunoterapia para câncer de pulmão em Cuba, que descreveu as conquistas da biotecnologia cubana como “inesperadas e emocionantes”.
O livro foca não apenas a política, mas as restrições e condições que moldaram cada ação, bem como as motivações, agendas e objetivos por trás delas. Ele traz à tona um elemento essencial que foi subestimado na maioria dos comentários sobre Cuba: o nível de engajamento da população na avaliação, crítica e emenda das mudanças políticas e reformas propostas, por meio de canais representativos, fóruns públicos, consultas nacionais e referendos. É aí que está a voz do povo revolucionário. Na Cuba socialista, a relação entre o “governo” e o “povo”, através das suas organizações, é extremamente permeável. O socialismo cubano sobreviveu com o apoio do povo revolucionário e o fracasso em reconhecer isso leva a distorções e equívocos sobre a legitimidade do governo revolucionário e o equilíbrio de poder.
Isso não significa negar a liderança e autoridade infatigáveis de Fidel Castro, e o subseqüente domínio de Raúl Castro. Mas, como o historiador militar Hal Keplak apontou, “nem as FAR [Forças Armadas Revolucionárias] nem mesmo recursos policiais importantes foram necessários em uma função de segurança interna” para reprimir a agitação civil. Os projetos iniciados pelos Castros dependiam de sua capacidade de atrair o apoio do povo cubano. Daí a necessidade de ir constantemente ao povo, para explicar, instar, debater e ganhar o consenso para mobilizar o povo revolucionário para a ação.
O rótulo “povo revolucionário” no título do livro não significa apenas militantes comunistas, funcionários do partido ou burocratas estatais. Ele inclui comunidades e cubanos “comuns” que simplesmente seguiram com a arte de viver, unindo-se para superar o Período Especial de crise econômica. Me refiro aos habitantes das cidades que se tornaram agricultores urbanos para prover comida para si e seus vizinhos; a juventude “desconectada” que se tornou o Exército Cidadão na batalha das ideias; os ambientalistas que buscam o desenvolvimento sustentável e as energias renováveis; as equipes médicas que deixaram para trás seus lares e famílias para servir às comunidades mais pobres e negligenciadas do mundo; os médicos cientistas que trabalharam incansavelmente para produzir medicamentos que a ilha não podia importar por causa do bloqueio norte-americano ou do preço do mercado internacional; os cientistas sociais que alertaram os políticos de que os cubanos estavam sendo deixados para trás na busca pela eficiência; e os milhões de cubanos que compareceram várias vezes para debater as propostas de políticas e reformas que os afetariam.
Porém, o rótulo “povo revolucionário” também pode incluir pessoas insatisfeitas e críticas com as políticas governamentais, aqueles que “furtam” recursos do Estado, trabalham ilegalmente, ou vivem às custas dos turistas, os trabalhadores autônomos e agricultores privados, a juventude marginalizada e desempregada. No ciclo de regeneração revolucionária, qualquer um desses grupos poderia e foi reincorporado no projeto socialista, como comprova o livro.
Os historiadores gostam de aniversários, ajudam a marcar a passagem do tempo e a dar perspectiva à sua passagem. O ano de 2019 marcou 60 anos desde que o Exército Rebelde tomou o poder da ditadura cubana de Fulgência Batista. Mas na metade do caminho estava outra data histórica útil: fazia trinta anos desde que Fidel Castro declarou publicamente que se a União Soviética se desintegrasse, a Revolução Cubana perduraria. Ele disse isso em 26 de julho de 1989, dezoito meses antes do colapso da URSS e quatro meses antes da queda do Muro de Berlim. Por três décadas, a sobrevivência do socialismo cubano foi atribuída à ajuda soviética. Hoje, a Revolução existe no mundo pós-soviético há mais tempo do que sob a esfera de influência soviética. Como é possível que o socialismo cubano tenha sobrevivido?
A Revolução é agora mais velha que o novo chefe de Estado, o presidente Miguel Díaz-Canel, um quadro do socialismo Cubano. É filho de um mecânico e uma professora primária, nascido em abril de 1960 em Placetas, pequena cidade do centro de Cuba fundada por colonos espanhóis em 1861. Em abril de 2018, com voto não muito unânime da Assembleia Nacional do Poder Popular, Díaz-Canel substituiu Raul Castro. Sua ascendência é um dos enigmas da história: o fim do reinado de Castro não sinalizou o fim da Revolução Cubana.
Durante anos, os estudantes de Cuba foram condicionados a acreditar que a trajetória da Revolução só poderia ser entendida por referência à biologia ou psicologia de Fidel Castro. Então Fidel adoeceu, renunciou, morreu, mas a Revolução sobreviveu. Raul Castro assumiu. Ele foi referido como o “irmão”, como se isso explicasse seu governo; o “reformador”, como se uma transição pacífica para o capitalismo estivesse assegurada. Raul veio, ele se reformou, renunciou e o sistema socialista prevaleceu.
Portanto, se não foram os “irmãos Castro” que explicaram a resistência cubana ao sistema, outros fatores devem ser responsáveis por sua sobrevivência no mundo pós-soviético. Estávamos muito distraídos com toda a questão sobre o que a Revolução estava fazendo de errado para nos perguntar sobre o que estava dando certo e como?
Um povo revolucionário
Meu livro se propõe a contar essa história. We are Cuba! How a Revolutionary People Have Survived in a Post-Soviet World mostra como as decisões tomadas em um período de crise e isolamento desde o final da década de 1980 moldaram Cuba no século XXI nos domínios da estratégia de desenvolvimento, ciência médica, energia, ecologia, cultura e educação. Muitos desses desenvolvimentos ocorreram “sob o radar”, surpreendendo pessoas de fora como o Dr. Kelvin Lee, chefe de imunologia do Centro de Câncer de Nova York que está testando uma imunoterapia para câncer de pulmão em Cuba, que descreveu as conquistas da biotecnologia cubana como “inesperadas e emocionantes”.
O livro foca não apenas a política, mas as restrições e condições que moldaram cada ação, bem como as motivações, agendas e objetivos por trás delas. Ele traz à tona um elemento essencial que foi subestimado na maioria dos comentários sobre Cuba: o nível de engajamento da população na avaliação, crítica e emenda das mudanças políticas e reformas propostas, por meio de canais representativos, fóruns públicos, consultas nacionais e referendos. É aí que está a voz do povo revolucionário. Na Cuba socialista, a relação entre o “governo” e o “povo”, através das suas organizações, é extremamente permeável. O socialismo cubano sobreviveu com o apoio do povo revolucionário e o fracasso em reconhecer isso leva a distorções e equívocos sobre a legitimidade do governo revolucionário e o equilíbrio de poder.
Isso não significa negar a liderança e autoridade infatigáveis de Fidel Castro, e o subseqüente domínio de Raúl Castro. Mas, como o historiador militar Hal Keplak apontou, “nem as FAR [Forças Armadas Revolucionárias] nem mesmo recursos policiais importantes foram necessários em uma função de segurança interna” para reprimir a agitação civil. Os projetos iniciados pelos Castros dependiam de sua capacidade de atrair o apoio do povo cubano. Daí a necessidade de ir constantemente ao povo, para explicar, instar, debater e ganhar o consenso para mobilizar o povo revolucionário para a ação.
O rótulo “povo revolucionário” no título do livro não significa apenas militantes comunistas, funcionários do partido ou burocratas estatais. Ele inclui comunidades e cubanos “comuns” que simplesmente seguiram com a arte de viver, unindo-se para superar o Período Especial de crise econômica. Me refiro aos habitantes das cidades que se tornaram agricultores urbanos para prover comida para si e seus vizinhos; a juventude “desconectada” que se tornou o Exército Cidadão na batalha das ideias; os ambientalistas que buscam o desenvolvimento sustentável e as energias renováveis; as equipes médicas que deixaram para trás seus lares e famílias para servir às comunidades mais pobres e negligenciadas do mundo; os médicos cientistas que trabalharam incansavelmente para produzir medicamentos que a ilha não podia importar por causa do bloqueio norte-americano ou do preço do mercado internacional; os cientistas sociais que alertaram os políticos de que os cubanos estavam sendo deixados para trás na busca pela eficiência; e os milhões de cubanos que compareceram várias vezes para debater as propostas de políticas e reformas que os afetariam.
Porém, o rótulo “povo revolucionário” também pode incluir pessoas insatisfeitas e críticas com as políticas governamentais, aqueles que “furtam” recursos do Estado, trabalham ilegalmente, ou vivem às custas dos turistas, os trabalhadores autônomos e agricultores privados, a juventude marginalizada e desempregada. No ciclo de regeneração revolucionária, qualquer um desses grupos poderia e foi reincorporado no projeto socialista, como comprova o livro.
Meu empenho foi escrever sobre Cuba como um “país de verdade”, sem o cinismo ou a condescendência que caracteriza muito do que é escrito sobre a ilha. Esses episódios incluem: a aceleração do internacionalismo médico cubano a partir do final da década de 1990; a Batalha de Ideias de 2000, com ênfase na cultura e na educação; a Revolução Energética de 2005, que promoveu a eficiência energética e as energias renováveis; e o desenvolvimento do setor de biotecnologia de Cuba.
Também me preocupei com a economia política do desenvolvimento em diferentes estágios: durante o período de “Retificação” no final dos anos 1980; a crise econômica da década de 1990 conhecida como “Período Especial”; reformas de 2008 sob o mandato de Raúl Castro; e debates mais contemporâneos sobre eficiência econômica e justiça social avançando. Hoje, o caminho de desenvolvimento socialista está em equilíbrio e, embora seja cautelosa com as tentativas de prever o futuro, a história pode nos ajudar a avaliar os fatores internos e externos que determinarão o resultado.
Como Cuba sobrevive
Os representantes políticos, chefes de instituições científicas, líderes das juventudes e outros cujas vozes estão representadas em meu livro não se manifestam por uma elite ou aristocracia mais do que Díaz-Canel o faz. Ao longo dos anos em Cuba, visitei as casas de ex-ministros, diplomatas, líderes políticos, intelectuais e outros profissionais que vivem em casas “comuns” sem luxo e que compartilham as privações diárias de seus vizinhos. Como funcionários do setor estatal, muitos de meus entrevistados recebem baixos salários, mesmo para os padrões cubanos, não obstante suas qualificações e responsabilidades de seus cargos são enormes.
Antes da Revolução, Allende me disse, o “grande sonho” de sua família era que ela trabalhasse como secretária na Empresa Americana de Eletricidade Cubana. Em vez disso, ela frequentou a universidade, tornou-se embaixadora e hoje é diretora de um importante instituto que treina diplomatas e acadêmicos. “Não sou milionária, não tenho nada disso, mas do ponto de vista do que fiz na minha vida… Será que isso aconteceria antes da Revolução? Não. Isso se deve exclusivamente à Revolução”. Da mesma forma, Jorge Pérez Ávila é filho de um motorista de ônibus que se tornou chefe de um hospital de renome mundial em doenças tropicais, o IPK. Estas são pessoas “comuns” que tiveram a oportunidade de fazer coisas extraordinárias pelo sistema cubano.
A análise também se baseia em minhas próprias experiências de visitar e viver em Cuba com frequência desde meados da década de 1990, quando fiquei na ilha pela primeira vez na adolescência. Esta foi uma época austera durante o “Período Especial”; vimos como os cubanos se sacrificaram para sobreviver, como indivíduos e como sociedade socialista num mundo capitalista. Foi uma experiência transformadora. Voltei regularmente: para festivais mundiais, brigadas de solidariedade, viagens de pesquisa e trabalho de campo, visitas pessoais, seminários acadêmicos e mais viagens de pesquisa.
Após a restauração das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA no verão de 2015, Havana tornou-se “o lugar para se estar” para as bandas de rock veteranas, estrelas pop, políticos, cineastas e a indústria da moda. O presidente Barack Obama visitou Cuba em março de 2016, seguido rapidamente pelo ministro das Relações Exteriores britânico, o presidente francês e outros ministros europeus. Eles estavam atrás dos chefes de estado russos, chineses e latino-americanos. As arestas do bloqueio dos EUA foram destruídas por meio de licenças de comércio e investimento emitidas para empresas norte-americanas no governo Obama.
Enquanto isso, grandes desenvolvimentos internos estão em andamento em Cuba desde 2008. A distribuição de dois milhões de hectares de terras do Estado para fazendeiros privados; as Diretrizes para Atualização do Modelo Econômico e Social aprovadas em 2011 e atualizadas em 2016 reduziram o controle do Estado sobre a economia e cortaram gastos do governo; a Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel e uma nova Lei de Investimento Estrangeiro de 2014 procuraram canalizar capital estrangeiro para Cuba; centenas de milhares de trabalhadores foram transferidos de empregos públicos para cooperativas e novos empregos no setor privado, provocando um aumento nas remessas; e os cubanos foram autorizados a vender suas casas e carros em um mercado interno aberto pela primeira vez em trinta anos.
As aberturas dos mercados levaram muitos comentaristas externos a concluir que, intencionalmente ou não, Cuba está reintroduzindo o capitalismo. Eles deram aos legisladores dos EUA um pretexto para iniciar uma reaproximação sob Obama em dezembro de 2014, enquanto os legisladores, analistas e acadêmicos ocidentais especulavam se Cuba experimentaria uma transição ao capitalismo ao estilo do Leste Europeu ou uma liberalização econômica gradual sob as estruturas estatais centralizadas existentes, o “modelo chinês”. Enquanto isso, o governo cubano insiste que essas medidas são necessárias para preservar a revolução socialista. Onde está a verdade?
Como um castelo feito de areia, a reaproximação foi desmoronada pelo padrão de hostilidade do governo Trump. Em março de 2020, o governo Trump implementou 191 medidas contra Cuba; uma nova ameaça existencial para a revolução cubana. No entanto, a resposta cubana à pandemia da Covid-19, mais uma vez atraiu admiração internacional para o povo revolucionário de Cuba. Um antiviral cubano apresenta resultados positivos no tratamento de pacientes e profissionais de saúde cubanos viajam a dezenas de países para prestar assistência médica. Como pode uma pequena ilha caribenha, subdesenvolvida por séculos de colonialismo e imperialismo, e sujeita a sanções punitivas e extraterritoriais dos EUA por sessenta anos, ter tanto a oferecer ao mundo? Meu livro responde um pouco dessa pergunta.
Sobre a autora
Helen Yaffe é uma professora de teoria social e econômica na Universidade de Glasgow. Seu último livro é We are Cuba! How a Revolutionary People Have Survived in a Post-Soviet World.
Também me preocupei com a economia política do desenvolvimento em diferentes estágios: durante o período de “Retificação” no final dos anos 1980; a crise econômica da década de 1990 conhecida como “Período Especial”; reformas de 2008 sob o mandato de Raúl Castro; e debates mais contemporâneos sobre eficiência econômica e justiça social avançando. Hoje, o caminho de desenvolvimento socialista está em equilíbrio e, embora seja cautelosa com as tentativas de prever o futuro, a história pode nos ajudar a avaliar os fatores internos e externos que determinarão o resultado.
Como Cuba sobrevive
Os representantes políticos, chefes de instituições científicas, líderes das juventudes e outros cujas vozes estão representadas em meu livro não se manifestam por uma elite ou aristocracia mais do que Díaz-Canel o faz. Ao longo dos anos em Cuba, visitei as casas de ex-ministros, diplomatas, líderes políticos, intelectuais e outros profissionais que vivem em casas “comuns” sem luxo e que compartilham as privações diárias de seus vizinhos. Como funcionários do setor estatal, muitos de meus entrevistados recebem baixos salários, mesmo para os padrões cubanos, não obstante suas qualificações e responsabilidades de seus cargos são enormes.
Antes da Revolução, Allende me disse, o “grande sonho” de sua família era que ela trabalhasse como secretária na Empresa Americana de Eletricidade Cubana. Em vez disso, ela frequentou a universidade, tornou-se embaixadora e hoje é diretora de um importante instituto que treina diplomatas e acadêmicos. “Não sou milionária, não tenho nada disso, mas do ponto de vista do que fiz na minha vida… Será que isso aconteceria antes da Revolução? Não. Isso se deve exclusivamente à Revolução”. Da mesma forma, Jorge Pérez Ávila é filho de um motorista de ônibus que se tornou chefe de um hospital de renome mundial em doenças tropicais, o IPK. Estas são pessoas “comuns” que tiveram a oportunidade de fazer coisas extraordinárias pelo sistema cubano.
A análise também se baseia em minhas próprias experiências de visitar e viver em Cuba com frequência desde meados da década de 1990, quando fiquei na ilha pela primeira vez na adolescência. Esta foi uma época austera durante o “Período Especial”; vimos como os cubanos se sacrificaram para sobreviver, como indivíduos e como sociedade socialista num mundo capitalista. Foi uma experiência transformadora. Voltei regularmente: para festivais mundiais, brigadas de solidariedade, viagens de pesquisa e trabalho de campo, visitas pessoais, seminários acadêmicos e mais viagens de pesquisa.
Após a restauração das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA no verão de 2015, Havana tornou-se “o lugar para se estar” para as bandas de rock veteranas, estrelas pop, políticos, cineastas e a indústria da moda. O presidente Barack Obama visitou Cuba em março de 2016, seguido rapidamente pelo ministro das Relações Exteriores britânico, o presidente francês e outros ministros europeus. Eles estavam atrás dos chefes de estado russos, chineses e latino-americanos. As arestas do bloqueio dos EUA foram destruídas por meio de licenças de comércio e investimento emitidas para empresas norte-americanas no governo Obama.
Enquanto isso, grandes desenvolvimentos internos estão em andamento em Cuba desde 2008. A distribuição de dois milhões de hectares de terras do Estado para fazendeiros privados; as Diretrizes para Atualização do Modelo Econômico e Social aprovadas em 2011 e atualizadas em 2016 reduziram o controle do Estado sobre a economia e cortaram gastos do governo; a Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel e uma nova Lei de Investimento Estrangeiro de 2014 procuraram canalizar capital estrangeiro para Cuba; centenas de milhares de trabalhadores foram transferidos de empregos públicos para cooperativas e novos empregos no setor privado, provocando um aumento nas remessas; e os cubanos foram autorizados a vender suas casas e carros em um mercado interno aberto pela primeira vez em trinta anos.
As aberturas dos mercados levaram muitos comentaristas externos a concluir que, intencionalmente ou não, Cuba está reintroduzindo o capitalismo. Eles deram aos legisladores dos EUA um pretexto para iniciar uma reaproximação sob Obama em dezembro de 2014, enquanto os legisladores, analistas e acadêmicos ocidentais especulavam se Cuba experimentaria uma transição ao capitalismo ao estilo do Leste Europeu ou uma liberalização econômica gradual sob as estruturas estatais centralizadas existentes, o “modelo chinês”. Enquanto isso, o governo cubano insiste que essas medidas são necessárias para preservar a revolução socialista. Onde está a verdade?
Como um castelo feito de areia, a reaproximação foi desmoronada pelo padrão de hostilidade do governo Trump. Em março de 2020, o governo Trump implementou 191 medidas contra Cuba; uma nova ameaça existencial para a revolução cubana. No entanto, a resposta cubana à pandemia da Covid-19, mais uma vez atraiu admiração internacional para o povo revolucionário de Cuba. Um antiviral cubano apresenta resultados positivos no tratamento de pacientes e profissionais de saúde cubanos viajam a dezenas de países para prestar assistência médica. Como pode uma pequena ilha caribenha, subdesenvolvida por séculos de colonialismo e imperialismo, e sujeita a sanções punitivas e extraterritoriais dos EUA por sessenta anos, ter tanto a oferecer ao mundo? Meu livro responde um pouco dessa pergunta.
Sobre a autora
Helen Yaffe é uma professora de teoria social e econômica na Universidade de Glasgow. Seu último livro é We are Cuba! How a Revolutionary People Have Survived in a Post-Soviet World.
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