A morte de Halyna Hutchins durante as filmagens de Rust é uma trágica consequência dos estúdios priorizarem o lucro e a velocidade sobre a vida dos membros da equipe. A culpa de Alec Baldwin não é sobre ele puxar o gatilho de uma arma de adereço - é sobre as decisões de corte de custos dele e de seus colegas produtores.
Alex N. Press
Tradução / Na quinta-feira, dia 21 de outubro, a cineasta Halyna Hutchins foi morta no set do filme Rust, quando a réplica de uma arma, que estava nas mãos do ator e produtor Alec Baldwin, foi disparada acidentalmente, o que resultou na morte dela e em um ferimento no diretor do filme, Joel Souza.
O set já havia sido afetado por problemas antes do acidente fatal, já que a produtora, querendo manter o baixo orçamento do filme e o cronograma de filmagem de 21 dias, manteve-se firme em seus planos. Seis membros da equipe de filmagem, que fazem parte da Aliança Internacional de Teatro e Funcionários de Palco Teatral (IATSE – Internation Alliance of Theatrical Stage Employees), deixaram o set de filmagem, pois suas preocupações com segurança e condições de trabalho não foram atendidas. Eles deixaram o set apenas 6 horas antes do acidente fatal ocorrer e foram substituídos por membros da equipe que não são filiados a sindicatos. O produtor ameaçou chamar a segurança, caso os membros que fazem parte da Aliança não deixassem o local voluntariamente.
De acordo com o Los Angeles Times, esses membros da equipe estavam “frustrados pelas condições de trabalho oferecidas em um filme de baixo-orçamento: muitas horas de trabalho, longos trajetos até a empresa e atrasos de pagamento”. Em um post do Baldwin no Facebook em que ele expressava solidariedade à IATSE, que está negociando novos contratos com duração de três anos com mais de 60 mil pessoas, alguns comentários de Lane Luper, um operador de câmera do Rust, sugere que a produção do filme já priorizava velocidade e baixos custos (em vez da vida de seus funcionários) muito antes do “acidente”.
“Os produtores desse filme estão tratando os funcionários igual lixo”, escreveu Luper, dizendo também que alguns funcionários ainda não haviam recebido seus pagamentos e lutavam para conseguir uma estadia mais próxima do set. Um dos membros, escreveu Luper, havia dormido no próprio carro porque a produção não dava um lugar para ele ficar e ele estava “cansado demais para dirigir por uma hora até chegar em casa”. “Ninguém, em nenhuma produção, deveria ter que dormir, no frio, dentro do próprio carro no estacionamento para não morrer dirigindo até em casa”, adicionou Luper.
A própria Hutchins lutava por condições de trabalho melhores no set antes do acidente ocorrer, de acordo com Los Angeles Times, e se emocionou ao ver os membros da equipe indo embora na quinta de manhã. Dois dias antes do disparo, Hutchins postou uma foto da equipe no Facebook, com a legenda “a solidariedade da IATSE continua firme e forte aqui no set do Rust“. Ela era filiada ao sindicato Local 600, que organizou uma campanha no GoFundMe a fim de dar suporte ao marido e ao filho de 9 anos que ela deixou.
A produção do filme ocorria no Bonanza Creek Ranch, em Santa Fé, Novo México, um local popular para produções de filmes. De acordo com um mandado de busca apresentado pelo departamento do xerife do condado de Santa Fé, Baldwin não sabia que a arma estava carregada; e curiosamente a própria história do filme gira em torno de um assassinato acidental. Dave Halls, o diretor assistente do filme (DA), momentos antes do disparo, havia entregado a arma a Baldwin e mencionado que ela era uma “arma fria”, termo tipicamente utilizado para se referir a uma arma descarregada. Em muitos sets, o papel do DA é ser responsável pela segurança, embora ainda não esteja claro por que foi Halls e não o armeiro do set que entregou a arma a Baldwin.
Embora algumas pessoas atestaram a competência do Halls em produções anteriores (um cineasta que havia trabalhado com ele disse ao Los Angeles Times que Halls era um bom “bom diretor”), outras pessoas possuem opiniões divergentes. Um membro da equipe que trabalhou com Halls anteriormente, e que pediu para não ser identificado devido à natureza sensível do acidente, disse que, embora Halls “não seja um cara ruim”, ao menos um de seus colegas de trabalho se referia a Halls pelo apelido de “segurança por último”.
“Ele nunca realizava uma inspeção de segurança nas armas, o que ele deveria fazer, e sempre fazia piadinhas sobre o quão inútil era checá-las novamente”, disse um membro da equipe que havia trabalhado com Halls. Essa descrição está de acordo com declarações de outros ex-colegas de trabalho de Halls, que foram feitas à NBC News e que relatam também que reuniões sobre segurança no set de Rust haviam sido canceladas.
Um dos problemas de atribuir responsabilidades de segurança aos DAs é que eles são mantidos pelos produtores, tornando, assim, difícil para que eles falem sobre questões de segurança, mesmo que assim queiram fazê-lo.
“Se os DAs forçarem muito, correm o risco de perder o emprego”, disse um dos membros da equipe que havia trabalhado com Halls. “Os produtores obviamente preferem aqueles DAs que vão abaixar a cabeça para como as coisas são e vão fazer o trabalho deles.”
A armeira de Rust, a pessoa responsável por supervisionar as armas durante a filmagem, era Hannah Gutierrez, uma novata de 24 anos que acabou de participar de seu primeiro trabalho como armeira-chefe em um filme chamado Ritos Ancestrais (The Old Ways). Gutierrez é filha de Thell Reed, especialista em armas e consultor de longa data da indústria de filmes. Em um podcast gravado em setembro, Gutierrez falou sobre sua experiência com o filme Ritos Ancestrais, em que, “incialmente, sentiu-se bem nervosa e quase rejeitou a oportunidade de trabalho por não se sentir pronta. Porém, ao realizar o trabalho, não teve problemas”.
Essa falta de experiência faz parte da história também, e não apenas no sentido de culpabilidade.
“O fato de a armeira ser jovem também é importante, pois, se você é jovem ou novato, tem menos oportunidades de dizer o que acha [sem perder o emprego]”, disse Leah Caddigan, uma cineasta independente e ex-assistente de produção. Ela acrescentou que tal retaliação está acontecendo atualmente “o tempo todo” aos funcionários responsáveis pela prevenção da COVID, uma função recentemente criada (e em grande parte não sindicalizada) que foi designada a funcionários de produções de todo o país durante a pandemia. “Esses funcionários responsáveis pela prevenção de COVID estão sendo despedidos por não violarem as regras a pedido dos produtores executivos”, ela disse.
De fato, muitos na indústria veem esse incidente no set de Rust como uma consequência trágica da redução de custos gerais seguidas pelos produtores a fim de não atrasarem o cronograma. Em uma postagem no Facebook sobre a morte de Hutchin, o iluminador chefe de Rust reconheceu a falta de experiência da Gutierrez, mas enfatizou que o problema está na companhia priorizar custos de produção baixos em vez de segurança.
“Às vezes, para economizar uns tostões, você acaba contratando pessoas que não são qualificadas para um trabalho complicado e perigoso, e com isso acaba colocando as vidas daqueles ao seu redor e a sua vida também em risco”, o iluminador chefe escreveu, acrescentando que “é verdade que profissionais experientes custam mais e às vezes são mais exigentes, mas valem a pena. Nenhum tostão economizado a mais vale a VIDA de uma pessoa!”
O problema de pegar atalhos na mão de obra, afetando, assim, a segurança, é particularmente mais grave em filmes de baixo orçamento como Rust.
Adam Richlin, que foi um iluminador chefe não sindicalizado por mais de uma década, descreveu um acidente similar que aconteceu em um filme independente de baixo orçamento em que ele trabalhou. O acidente poderia ter terminado igual, caso o responsável pelas câmeras não tivesse interditado no último momento.
“Nesse filme, eles não tinham um armeiro”, disse Richlin. Em vez disso, os produtores encarregaram dois assistentes jovens de encontrarem uma réplica de arma para uma cena em que dois atores portariam os revólveres em suas cinturas. “Eles arrumaram as duas armas, mas elas eram de verdade, e tinham balas de verdade nos clipes. Foi apenas durante o ensaio da cena que o responsável pelas câmeras decidiu pegar os revólveres dos atores e inspecioná-los, e então ele viu que elas tinham balas de verdade.”
Nesse momento, ele foi até os produtores para explicar que aquelas armas não poderiam ser usadas. Em vez de agradecer esse membro da equipe, os produtores passaram a enxergá-lo como um “encrenqueiro”, conta Richlin. Na semana seguinte, quando a equipe retornou ao set, descobriu que “os produtores e escritores acharam tão hilário que estávamos levando isso tão a sério que escreveram uma cena em que um personagem usava um arpão como arma”, contou Richlin. O responsável pelas câmeras retirou essa arma também, e a cena nunca foi gravada.
Mais do que uma questão de segurança com armas em um set — uma situação que já havia ganhado medidas de segurança adicionais devido à morte de Brandon Lee em 1993 no set de O Corvo — os membros do time dizem que a questão principal que este incidente deve destacar é a redução de mão de obra em prol de velocidade e lucros. Eles ligam a morte de Hutchins ao assunto sobre horas e cronogramas que atualmente ocorre no set. Esse assuntou ganhou destaque conforme a IATSE negocia novos contratos com os estúdios.
“Essa situação se tornou mortal porque houve uma arma envolvida, mas esses problemas trabalhistas são contínuos e constantes”, diz Richlin. “Temos visto membros morrendo após saíram do trabalho e membros dirigindo por horas para chegarem em suas casas. Os produtores não dão a mínima. No dia seguinte, eles substituem você e a vida segue. Eles vão queimar uma vila inteira para finalizar os projetos deles e vão deixá-la queimando enquanto saem andando.”
“Tudo isso acontece por causa do modelo de negócio que vem lá de cima, em que assumem uma quantidade de custos e práticas insustentáveis e acabam chegando a esses resultados desumanos. Isso faz com que vidas se percam, mas vidas também são destruídas pelas longas jornadas que impedem essas pessoas de ao menos viverem uma vida normal”, diz o diretor de fotografia Tim S. Kang, que era amigo de Hutchins. “As expectativas de entrega de conteúdo devem ser mudadas em termos de tempo e frequência se quisermos algo próximo de um trabalho justo para os artistas e artesãos que produzem os produtos que as empresas de mídia vendem. A culpa disso tudo está nessas expectativas irreais que vêm de condutas defeituosas praticadas já há quarenta anos, e que não respeitam o tempo e o trabalho necessários para produzir o produto que desejam.”
Resta saber se o incidente afetará os votos dos membros do IATSE sobre a decisão de ratificar ou não o acordo provisório que o sindicato fechou recentemente com os estúdios. Alguns membros dizem que pretendem votar contra o contrato, cujos detalhes ainda não foram compartilhados. A morte de Hutchins amplificou a urgência de alguns problemas sobre os quais os membros já haviam alertado, colocando mais lenha na fogueira em um momento em que os trabalhadores da indústria não estão mais dispostos a aceitar um status quo que põe em risco a segurança deles.
Catherine Repola, a única líder formal de um local da IATSE coberto pelo contrato e que não recomendou a ratificação do acordo em 2018, encorajou agora seu local a ratificar este. Em um e-mail enviado para membros do Local 700 — um dos maiores locais cobertos pelo acordo — Repola escreveu, “Se você acha que não recebemos o bastante, acredite, concordo com você, mas conseguimos o melhor que podíamos sem entrar em greve, que era o nosso objetivo”. Ela concluiu observando que, “no final, você será responsável em decidir como deve votar e, seja o que for que a maioria decida, continuarei orgulhosamente ao lado de vocês”. É bem possível que os membros votem contra o contrato, mesmo que todos os líderes formais recomendem a ratificação — os dez mil funcionários da John Deere, que estão agora em greve, fizeram exatamente isso — mas será uma batalha difícil para que se consiga isso.
Depois que a assistente de câmera Sarah Jones — que, assim como Hutchins, era membro do Local 600 — foi fatalmente atingida por um trem de carga na Geórgia durante as filmagens de Midnight Rider em 2014, muitas pessoas da indústria falaram sobre a necessidade de mudanças. Nesse incidente, Hillary Schwartz, diretora auxiliar do filme, foi culpada de homicídio culposo e transgressão e foi condenada a dez anos de liberdade condicional. Mas não foi feito o suficiente para forçar as produtoras a distribuir os recursos a fim de garantir condições de trabalho seguras: Hutchins é o quarto membro de uma equipe de filmagem que foi morto em um set nos Estados Unidos nos últimas dez anos. Em uma vigília por Hutchins em Burbank, o pai de Jones disse: “a única coisa que ele vê é falta de cuidado. Se estas pessoas que estão no poder respeitam os seres humanos… que trabalham para eles, não consigo enxergar como eles podem ser tão imprudentes”.
Embora a investigação da morte de Hutchin esteja em andamento, muitos trabalhadores da indústria dizem que a produtora é a culpada pela tragédia.
“A atitude negligente da produtora é a principal culpada aqui, não importa o mecanismo exato do que aconteceu”, disse Kang.
“Este não é um acidente estranho”, disse Caddigan. “Diversas etapas de segurança tiveram de ser ignoradas propositalmente para que uma pessoa fosse morta por um tiro e para que outra fosse ferida.”
A culpa de Baldwin está menos em ter sido o ator que acidentalmente atirou em Hutchins e mais no fato de ser um dos produtores que criaram as condições de trabalho inseguras que levaram à morte dela.
“Há produtores que, seja intencionalmente ou por total negligência, são responsáveis pelo que acontece”, disse Richlin. “Produtores recebem bastante dinheiro, mas também assumem muitos riscos. Alguns produtores cumprem seus papeis com seriedade; outros, não. Já que Alec Baldwin assume o papel de um produtor há tanto tempo, ele deve se responsabilizar por isso.”
“O filho de nove anos [da Hutchins] vai passar o resto da vida sem poder falar com a mãe”, disse Kang. “O marido dela tem que recolher os pedaços ao mesmo tempo em que jornais internacionais estampam o nome e rosto dela ligados ao ator e produtor deste local de trabalho em que ela foi morta.”
Sobre o autor
Alex N. Press é redatora da equipe da Jacobin. Seus textos são publicados no Washington Post, Vox, the Nation, n + 1, entre outros lugares.
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