Uma entrevista com
Íñigo Errejón
Jacobin
Íñigo Errejón, cofounder of Podemos and now leader of Más País, speaks to the press at Madrid-Barajas Airport on September 15, 2021. (Alejandro Martinez Velez / Europa Press via Getty Images) |
Tradução / Quando os cofundadores do Podemos se reuniram no congresso de Vistalegre II, em fevereiro de 2017, um dos principais pontos de desavença foram as relações com os socialistas de centro-esquerda (PSOE), após o fracasso em formar um governo de coalizão em 2016. Para o secretário-geral, Pablo Iglesias, este pilar das instituições espanholas estava demasiadamente comprometido com o centro neoliberal, para ser um possível aliado. Mas uma minoria liderada por Íñigo Errejón insistiu que o Podemos, acima de tudo, necessitava demonstrar ao povo espanhol que o partido nascido no calor do 15-M estaria preparado para governar, se quisesse ir além da sua base jovem e urbana.
Com o passar do tempo, não só o partido (hoje chamado Unidas Podemos ou UP) se debilitou, como os papéis se transformaram radicalmente. Foi Iglesias, afinal, quem levou o partido, no início de 2020, a uma coalizão com o PSOE, de Pedro Sánchez, embora com a sua força parlamentar reduzida à metade, ao longo de quatro eleições gerais, em quatro anos. O primeiro ano do governo de coalizão trouxe consigo algumas leis importantes mas também contratempos políticos para a UP e, recentemente, Iglesias deixou o cargo de vice-presidente do governo, antes de se retirar por completo da política.
Enquanto isso, Errejón tinha deixado o Podemos no início de 2019. Agora lidera o Más País, um pequeno partido verde-progressista, cujos três deputados trabalham ombro a ombro com o governo PSOE-UP. Numa entrevista à Àngel Ferrero, da Jacobin, Errejón relembra o movimento de protesto do 15–M, a sua experiência no Podemos e a fracassada tentativa de transformação da política espanhola que provocou um tsunami de reações da extrema direita nacionalista.
AF
No último maio, recordamos dez anos do 15–M. Gostaria que você fizesse um balanço daquele movimento, não só em seus aspectos positivos – bastante analisados em outros artigos – mas também dos negativos.
Íñigo Errejón
Não foi produzida nenhuma reflexão política séria. Parece relevante que, após dez anos, esse aniversário tenha passado sem choro, nem festas. Significativamente, ainda que em minoria, começam a aparecer leituras de inclinação reacionária: que o 15-M foi uma espécie de exigência meritocrática das classes médias; que não serviu para absolutamente nada e etc… É um estado de espírito que diz algumas coisas sobre o que aconteceu nestes dez anos, e que se assemelha um pouco à onda que a direita francesa lançou quando o maio de 68 foi vencido. O pêndulo balançou na direção contrária e a Espanha encontra-se num processo de direitização. As direitas fazem oposição na política e dominam a agenda cultural.
Que balanço faço do 15-M? Penso que foi uma acumulação de insatisfações, que mobilizou centenas de milhares de pessoas na Espanha com objetivos diversos. O mínimo denominador comum preponderante naquele protesto era a reivindicação por democracia, entendida não mais como mera competição entre partidos. Foi também uma contestação às elites econômicas que, embora não se canditassem nas eleições, podiam governar nosso país, independente do resultado das urnas. Foi a denúncia de que o país oficial tinha obnubilado o país real.
Essa conjunção de insatisfações produziu uma mudança na atmosfera política na Espanha. Não houve uma tradução política imediata disto porque não era possível haver: a amplitude e a diversidade das reivindicações eram enormes. Segundo uma pesquisa do Centro de Pesquisas Sociológicas (CIS), cerca de 72% dos espanhóis estavam de acordo com as demandas do 15-M. Não foi um movimento oriundo de setores tradicionalmente de esquerda, e digo isto com conhecimento de causa, como alguém que milita desde os 14 anos. O 15-M conectou-se com os anseios de regeneração da democracia e de justiça social.
Quando o 15-M chega ao seu ápice, transborda das grandes ocupações nas praças e prossegue em assembléias nos bairros, conseguindo dominar a agenda midiática. Então o 15–M depara-se com um problema típico dos movimentos sociais: não obstante o seu alcance, não quer colocar-se na disputa institucional pelas vias eleitorais e tampouco tem a capacidade de produzir poder efetivo por si só. Não é uma situação de poder dual, para usar uma expressão clássica. Perante este dilema, que não se resolve, o 15-M começa a ter uma crise de crescimento. Isso não significava que o clima gerado tivesse se diluído, mas aconteceu por falta de um catalisador político e institucional.
AF
O Podemos pretendia ser esse catalisador?
Íñigo Errejón
Exatamente. A iniciativa do primeiro Podemos nasce com esse sentido, ainda que o primeiro Podemos não seja, de maneira alguma, a expressão política do 15–M. Não é uma iniciativa do movimento, mas sim de gente que tinha participado do movimento. É a tentativa de um conjunto de ativistas e acadêmicos de produzir uma ferramenta para transformar a indignação cidadã, ampla e transversal em uma política eleitoral.
Desde o seu começo, em janeiro de 2014, até as eleições gerais de 20 de dezembro de 2015, quando o Podemos obteve cinco milhões de votos, vive-se tempos muito acelerados na política espanhola, protagonizados pelo Podemos. Ou seja, protagonizado por uma força que nasceu para interpretar o movimento populista aberto pelo 15-M e dar-lhe uma tradução política eleitoral.
A leitura que fazemos do 15–M, que está na origem do Podemos, é de que ele não era um movimento da esquerda, que não é uma impugnação aos 40 anos de democracia liberal na Espanha, nem uma revisão do que não teria sido bem feito no passado. Não é uma impugnação ao que nossos pais tenham feito, por mais que venhamos de culturas políticas que nos induzam a essa linha. O 15–M não é uma contestação ao passado, mas sim o confronto do regime político com suas próprias promessas. Isto lhe dá um caráter ambivalente. Por um lado é conservador, e não impugna a ordem imposta pelos lá de cima. Coloca-os de frente a um espelho, confrontando a ordem com os próprios princípios da ordem, por assim dizer. Isto é muito importante recordar porque é a marca de uma trajetória, de caráter mais reformista do que revolucionário, e é isso que permite a transversalidade ideológica do 15-M.
O 15–M supera a esquerda e seus símbolos. Mistura elementos anticapitalistas com vários outros, tecnocráticos e meritocráticos. Todos esses conteúdos, aparentemente contraditórios, misturam-se numa proposta reformista de caráter transversal. A iniciativa do Podemos apresenta-se explicitamente nestes termos: não somos uma formação política de esquerda, mas sim aquela que chega para ecoar a vontade cidadã e os desejos de mudança, pela radicalidade democrática.
Durante dois anos o Podemos propõe e preside toda a política espanhola, sobretudo a partir das eleições europeias de 2014. Inclusive as eleições foram convocadas com o indisfarçável propósito de nos pegar no contrapé, de nos dificultar os prazos. Desde o 15–M de 2011 até dezembro de 2015 passam-se quatro anos, em que as elites e a direita ficam culturalmente na defensiva, em que o país torna suas as razões dos indignados e, embora ausentes no Congresso, somos uma força contra-hegemônica que, sem ser majoritária, determina o rumo das instituições do país. Conseguimos 5 milhões de votos no 20 de dezembro de 2015. Tudo isto durou até as fracassadas negociações para compôr governo com o PSOE de março a abril de 2016.
AF
O que resta hoje daquele ciclo?
Íñigo Errejón
Acho que aquele ciclo acabou. Penso que não se pode entender uma boa parte das lideranças atuais, e também da gramática política espanhola, sem o 15–M. Não obstante, o pêndulo populista que, se entre 2011 e 2015 teve um sentido progressista, reformista e democrático, passou a tender no sentido reacionário. Hoje estamos num clima antipolítico que comentaristas superficialmente identificam com o 15–M, mas que para mim é o seu oposto.
A despeito de ser progressista, é um governo constituído muito mais na defensiva diante das direitas. Neste momento, enquanto conversamos, as direitas não só lideram as pesquisas, como claramente lideram o debate público. Hoje, na Espanha, são feitas declarações impensáveis de serem feitas há 10 anos atrás. E isso não é exclusivo do Vox, uma formação da direita neoliberal e autoritária, mas também difundido por outras formações que, anos atrás, não se permitiriam fazer algo assim. Nesse verão tivemos uma onda de agressões a pessoas LGTBI que não é estranha à normalização dos discursos de ódio contra os diferentes, contra os mais fracos, numa espécie de socialização da crueldade. Enquanto isso, paradoxalmente, o campo progressista está no governo e culturalmente na defensiva, numa espécie de tentativa de recomposição, em que novas idéias e propostas ainda surgem, mesmo que timidamente.
AF
Em 21 de janeiro de 2019 você renunciava ao seu posto de deputado no Congresso e, um mês depois, na plataforma Más Madrid (MM), decidiu apresentar-se às eleições. Em setembro desse mesmo ano, o Más Madrid vira Más País (MP) e passava a ser um partido a nível nacional. Ainda que pessoalmente não deva ser um tema fácil de abordar, devido a sua importância política, vejo-me obrigado a perguntar: o que o levou a romper com Podemos?
Íñigo Errejón
A versão recorrente no debate político midiático é a de que um grupo de amigos brigou. E isso é o que mais se destacou. Dessa maneira, cada um se posiciona conforme lhe convém. Obviamente, considerando aqueles que entendem a política não como um ofício, mas como compromisso e paixão, as decisões políticas de pessoas que juntas fizeram uma trajetória, muitas vezes se transformam em rupturas dolorosas. Mas isto é consequência, e não causa. Dos fundadores do Podemos, não restou ninguém em postos de liderança. Não digo isto de forma crítica, mas na tentativa de contextualização histórica. E muitos deles seguem ativos na política.
A causa, ao meu ver, e o de boa parte de quem fundou o Podemos no início, é que a partir de junho de 2016 o Podemos começa a trilhar ideologicamente outros caminhos. Não queria centrar a resposta no que eu faço, e sim no que se passa. O que penso que ocorre? Uma força política que se reivindica nacional-popular, de radicalidade democrática e transversal, que pretende subverter o eixo esquerda-direita, não por alguma tentativa de menosprezar os valores e a ideologia da esquerda, mas sim porque a construção de uma nova maioria popular ultrapassa a esquerda. Viemos daí, mas é necessário construir um movimento em termos patriotas, de justiça social e renovação democrática, como tinha sido feito na América Latina. Estas são as marcas de identidade do primeiro Podemos.
Na minha opinião, tão somente graças a este discurso e a esta forma de entender a política é que o primeiro Podemos consegue se lançar eleitoralmente. Quando nasce o primeiro Podemos, o acusam de dividir a esquerda, mas ele atrai aqueles que identificam-se mais com outros movimentos de então, como o “Occupy”, mais identificados com um discurso populista no sentido progressista, de imersão democrática... Esta é nossa chave de identidade fundamental.
Por que? Porque no primeiro Podemos confluímos, encontramo-nos como pessoas que vieram de tradições bastante diferentes. Encontramos pessoas da Juventude sem Futuro, muita gente da militância estudantil, que miravam o autonomismo e os movimentos sociais na América Latina, o ciclo populista-progressista nesta região, e não na hipótese nacional-popular. Mas logo, entre o conjunto de pessoas em torno do secretário geral, que vem de uma militância mais tradicional no Partido Comunista da Espanha (PCE) e da sua juventudes, conformam-se numa esquerda mais tradicional. Então não é um problema. Isto é notado em símbolos, em palavras. Mas logo, porém, começam a registar-se diferenças substanciais: a quem nos referenciamos, que tipo de política fazemos. Isso será muito evidente quando temos que negociar um governo com o PSOE. Aquele Podemos tem cinco milhões de votos e o PSOE cinco milhões e trezentos mil. Estamos separados por uma dezena de assentos.
AF
Que importância as negociações de formação do governo tiveram?
Íñigo Errejón
Quando tivemos que negociar em 2016 um governo, o fazíamos praticamente no téte-a-tète. Fazíamos num país em que o sentimento hegemônico era claramente de renovação progressista, enquanto a direita estava com problemas e ainda não existia a extrema direita tipo Vox. O governo pactuado no inverno de 2019 entre PSOE e Podemos já existia como possibilidade desde janeiro de 16, quase quatro anos antes e só se formou quando ambas as forças eram mais fracas e o país estava muito mais direitizado. O governo que PSOE e Unidas Podemos acordaram em dezembro de 2019 é a pior possibilidade que poderia ter existido. Levávamos quatro anos nos quais este governo poderia ter sido conformado, em melhores condições e uma correlação de forças em que Podemos estava de igual para igual com o PSOE, quase com os mesmos votos.
Este governo não foi acordado porque o grosso da direção socialista não quis, mas também porque os companheiros que vem da tradição de esquerda tradicional, mais comunista, acreditam que uma repetição eleitoral pode produzir uma surpresa ao partido socialista. Como? Porque Podemos foi se unir com a Izquierda Unida (IU). Nesta repetição eleitoral, o Podemos apresenta 5 milhões de votos e a IU com 1 milhão de votos. A partir de então, começa um processo acelerado no qual o Podemos começa a assumir o discurso, as mensagens políticas, a auto-demarcação no terreno político da esquerda tradicional. Chegamos nos espaços com bandeiras cubanas e soviéticas. Eu não tenho nenhum problema com essas bandeiras, mas tenho certeza que o Podemos não conseguiu 5 milhões de votos apelando aos seguidores destas bandeiras, mas o fez transcendendo a esquerda e apelando a questões de sentido comum para conseguir um país que tratasse melhor a sua população.
Quando o Podemos começou a renunciar ao caminho nacional-popular e transversal e começou a orientar-se para ser uma esquerda política tradicional, começou a ter os resultados eleitorais da esquerda tradicional. Desde aí, aquele Podemos não tem deixado de perder votos, as pesquisas já se aproximam muito ao que foram os melhores resultados da IU, ou seja, uma proposta para os votantes pós-comunistas tradicionais.
AF
E aqui começa o processo de ruptura
Íñigo Errejón
Numa formação política criada nas lideranças carismáticas, nós competimos contra a linha que defende o secretário geral e perdemos. Por um tempo, acreditamos que fosse possível coexistir sendo minoria, defendendo nossas posições, mas, internamente, nossa existência no Podemos começou a complicar-se cada vez mais, de uma maneira que só entende quem já tenha militado na política.
As engrenagens de um partido podem fazer com que determinadas coisas tornem-se quase impossíveis. Desde então, a trajetória política do Podemos é uma trajetória de declínio. Em cada eleição, perde votos, começa a desaparecer em certos territórios onde já não tem representação, e lhe acontece uma coisa que não se mede em números: o Podemos deixou de liderar a pauta pública espanhola. Podemos era, em 2014 e 2015, um elemento hype entre os analistas e intelectuais. Gerava prestígio aproximar-se do partido. Mas o Podemos perde isto rapidamente e converte-se numa formação tradicional, que ocupa o espaço do que havia sido a IU e o PCE. Agrada a uma porcentagem muito reduzida de espanhóis e a outra porcentagem considerável de espanhóis nada lhe diz respeito.
Eu havia ganhado as primárias para ser o candidato à presidência representando Podemos, pela Comunidade de Madrid. A situação com a qual me encontro, sem entrar em detalhes pessoais desagradáveis, é que não tenho nem a maneira, nem a ajuda, nem a disposição do partido para pleitear-me com condições nessas eleições. Então, toma-se a decisão política de me estreitar a margem, para me afastar, para me asfixiar politicamente.
Assim que lancei uma plataforma junto a Manuela Carmena, a então prefeita de Madri, que se chama Más Madrid, à qual convidamos o Podemos a se unir, de forma similar ao que Podemos fez em Barcelona, onde participa de uma plataforma que se chama Barcelona Em Comú, como uma força a mais eles não colocaram nem sequer o cabeça de lista.
AF
Como definiria a MP (Más País) para alguém que ainda não conhece a formação política?
Íñigo Errejón
Viemos da corrente fundadora de Podemos, ancorada no que chamávamos hipótese nacional – popular, destinadas em ir mais além da esquerda, não em seus valores, mas sim na forma de dirigir-se aos cidadãos. Acreditamos que a pauta verde, o ecologismo político é uma oportunidade fundamental para reconstruir a economia. Para nós, o verde não é algo setorial: é o maior desafio que tem a civilização e o modelo de desenvolvimento atual não apresenta saída. O problema da mudança climática não tem solução nos contextos atuais, oligárquicos e de mercado depredador. Para que se haja solução, é preciso o fortalecimento das comunidades, prioritariamente das comunidades locais, com um Estado forte, mas sobretudo da capacidade de planificar o futuro e não deixá-lo ao controle de quem tem mais dinheiro. Por este caminho, não é que falemos de um modelo que produza injustiças e dor social, mas que nos leva à extinção da vida tal qual a conhecemos. Este desafio nos exige superar o modelo neoliberal e recuperar a ideia do comum. Somente se reforçarmos a capacidade de cooperar podemos encarar esse desafio, dentro de Estados fortes e democráticos.
Somamo-nos à onda verde que recorre a Europa, mas nos afiliamos com uma especificidade: somos os verdes do sul da Europa. Isso significa que, em nosso caso, a justiça social e a transição ecológica devem caminhar lado a lado. Sem transição ecológica será muito difícil realizar um dos maiores desafios da nossa sociedade.
AF
Alguns comentadores classificaram MP, por vezes de forma depreciativa, como “partido regional”. Considera possível consolidar o partido a nível estatal?
Íñigo Errejón
Por ser uma força original de Madri, é natural estar mais presente aqui, mas hoje, como refletem as pesquisas, ganhamos peso e aspiramos, lentamente, e desde abaixo, a ser o que já somos em Madri, uma segunda força, que se consolide no resto do Estado. É um longo caminho, mas é um caminho determinado para criar uma força verde. Ser verde é uma enorme oportunidade política e ideológica para construir amplas bases de restauração democrática num sentido republicano, no melhor sentido da palavra.
AF
Como você avalia a ação de governo formado pelo PSOE e Unidas Podemos (UP)? E como avalia a participação da UP dentro dele? Pode parecer excessivo recordar aqui uma vez mais a irônica situação da UP, que antes rejeitou o programa apresentado primeiramente por você, para, tempos depois, nas últimas eleições, representá-lo como dela, e não conseguir se sustentar por falta de respaldo político. De onde se pode concluir que a UP não tem a alardeada capacidade de pressão sobre o PSOE, e sim o contrário.
Íñigo Errejón
Ninguém desconhece que a proposta encabeçada pelo Podermos é a mesma que fizemos 4 anos atrás, mas isso não constitui um problema para nós. É clássico na política defender propostas do opositor, após tirá-lo do caminho. E, pessoalmente, não passaria de amarga lembrança pessoal, de uma ironia do destino em minha carreira política, se durante esses 4 anos outras coisas também não tivessem acontecido. O maior problema para a execução desse programa de governo é que a Espanha mudou. Qual a diferença entre executar essa proposta em 2016 e em 2019? É a correlação de forças entre o Podemos e o PSOE, que agora é completamente diferente. O Podemos liderava o campo progressista e era a mais poderosa força da Espanha. Tinha as prefeituras de diversas cidades grandes como Madrid, Cádiz, Coruña, Bilbao, Zaragoza, Barcelona, Valencia. Era claramente uma força que ia de vento em popa. Parecia muito claro que éramos a força do futuro, que poderíamos assumir o governo a qualquer momento. E além do mais, na Espanha não tinha surgido ainda a extrema direita. E o PP vivia uma crise brutal consequente dos casos de corrupção. O conflito nacional entre a Catalunha e o Estado ainda não tinha atingido o grau de virulência que permitiu não só o acirramento da repressão de 1º de outubro como também a onda de anti-catalunha e o reacionarismo por toda a Espanha, sem a qual não se entenderia o Vox.
Éramos uma força pujante. O Podemos negociava as propostas, praticamente em igualdade de condições com o PSOE, estando no governo ou não, com a força de seu bloco no Congresso, e o governo só poderia sobreviver com o apoio do Podemos. Vivíamos diariamente um clima de entusiasmo, de ciclo de ascensão. Parecia que nossas ideias ainda eram as mesmas que as de todo o país. Só poucos anos depois, quando finalmente o acordo de governo é alcançado, tornou-se evidente o desgaste que o esforço pelo acordo causou, principalmente ao Podemos, que perdeu quase metade dos votos que tinha. Tendo perdido sua capacidade de liderança intelectual e política, na convocação das eleições, deu lugar à ascensão da direita, num clima rarefeito, impulsionado pela antipolítica: “Para que serve tudo isso? Ajudar a viver melhor, não resolve nada”, e coisas desse tipo. Pode vagamente lembrar o mesmo clima em que o 15-M nasceu, só com o sinal contrário.
Dadas tais condições, esse é um governo que nasce com um objetivo tático: frear as direitas, e alianças são feitas, por causa das direitas. Mas é um objetivo bem mais moderado do que o de anos atrás, quando nossa vontade era iniciar um processo constituinte na Espanha. Em 2015, pleiteamos objetivos muito mais radicais, com palavras muito brandas. Hoje o atual Podemos defende objetivos muito moderados com palavras muito radicais. O Podemos atual tem como objetivo frear a direita com discursos inflamados, numa retórica grandiloquente e ideológica. Isto no fundo é o restabelecimento da categorização política do bipartidarismo vigente na Espanha na década de 1980. O bipartidarismo não foi só a prevalência dos grandes partidos, comportando a existência também de partidos pequenos e de esquerda.
Qual é a minha análise do que o governo está fazendo? O governo está no meio de uma legislatura e tem boas condições para mudar de rumo. Mas se tivesse hoje que prestar contas teria mais débito do que créditos. É um governo que não cuidou de responder às mínimas expectativas suscitadas, não obstante tivesse apoio social. Nunca antes, como em tempo de pandemia, o cidadão espanhol pode compreender a importância do bem comum, e quanto o Estado forte é necessário não apenas para pagar dívidas e fazer empréstimos, como igualmente intervir na economia, definir um horizonte e garantir direitos. Além disso, conta com o importante recurso dos fundos comuns europeus, com uma expansiva política de Bruxelas na possibilidade de orientação numa mudança de modelo. E com maioria parlamentar tem a possibilidade de aprovar ou revogar o que o cidadão demanda, como abolir as reformas trabalhistas que precarizam o mercado de trabalho na Espanha; extinguir a lei da mordaça que restringe os direitos fundamentais de reunião e expressão; de regular o mercado elétrico frente ao oligopólio energético, e assim por diante.
Mas até agora tem sido um governo que não oferece a seus simpatizantes muitos motivos para defendê-lo. É verdade que geriu a pandemia de forma mais socialmente sensível do que o PP teria feito, mas isso só não parece ser o suficiente para a sociedade espanhola. O governo gasta muito fôlego, gritando para a direita passar longe. Mas isso não é suficiente para continuar na Moncloa. O governo necessita produzir transformações reais e de grande alcance na vida dos cidadãos para que eles sintam que existe uma diferença substancial entre ter no governo as direitas ou uma coalização progressista. Do contrário, o que mais se espalhará é o sentimento de apatia e cinismo. A maioria das pessoas veem as notícias com distanciamento emocional e desencanto. E quando há desencanto, quando resvala no cinismo que acha que tudo é mentira, e que a única verdade é a das “leis da natureza do mercado”, mercado dominado por oligarquias, isto sempre leva à extrema direita, reacionária.
AF
Diria que o governo já está condenado?
Íñigo Errejón
Não creio que o governo esteja condenado. Restam dois anos de mandato e é possível retificar o curso. Mas é preciso abandonar a tática defensiva e lançar-se ao ataque, porque, enfim, paga-se a conta do que se faz, e também do que não se faz. É um governo muito tímido em termos econômicos e sociais, mas que é tratado pela direita como se fosse comunista, não tendo feito absolutamente nada nesse sentido, apenas por haver representantes de partidos de esquerda no governo. Isso me lembra um ditado bem espanhol: este governo “paga tanto por latir, como por morder”. Assim, o governo precisa transformar a sociedade para que haja futuros governos progressistas, que tenham credibilidade. Enquanto a sociedade espanhola segue afundando cada vez mais, no rumo da desigualdade crescente, da destruição dos serviços públicos, da insegurança do emprego e da oligarquização da estrutura geral da sociedade, o senso comum neoliberal se generaliza, é assimilado e leva muita gente a votar com ele.
O PSOE, em especial, deveria procurar compreender que para continuar sendo uma formação reformista, tem que demonstrar mais ousadia e ser mais anti-oligárquico. Não porque esta seja a orientação ideológica de Iñigo Errejón, mas sim porque, caso o Estado e a sociedade espanhola não se transformem, e caso não se restaure a civilidade capaz de levar pessoas muito diversas a vislumbrar um futuro comum, pode acontecer que nossas propostas progressistas soem melhor, mas faltam exemplos concretos e próximos de como funcionam. A saúde pública poderia servir de exemplo de como um pedacinho de socialismo faz bater o coração de uma sociedade capitalista. E por que a saúde é tão duramente atacada? Porque é uma demonstração cotidiana de que a desmercantilização pode funcionar e de que a prestação de serviços públicos com fins sociais não só é mais justa, mas também mais eficiente. Esses exemplos servem para produzir uma convivência democrática. Do contrário, quando começar a campanha eleitoral, o adversário já entra vencendo, pois, para os direitistas só bastará sugerir aos cidadãos que se lembrem do que acontece no dia-a-dia deles, submetidos ao predomínio neoliberal: “vocês estão sós”, “salve-se quem puder”, “quem pode, manda, e quem não pode, obedece”. A importância da democracia na vida cotidiana é essencial. Do contrário, essa onda de apatia e cinismo se generaliza mais e mais, o que só beneficiará a direita.
Nosso lugar em tudo isso é modesto e pequeno. O principal é apoiar o governo quando ele avança, definir rumos com ele, e apresentar propostas estratégicas. São propostas que não tratam de perda de direitos, mas sim da geração de novos direitos, tais como uma nova jornada de trabalho, ou o desenvolvimento de políticas ecológicas-ambientais, ou o fortalecimento do sistema de saúde. É essencial para o governo, não só libertar-se do assédio da direita, como avançar. Com o nível de agressividade da direita, Sánchez é confundido com Salvador Allende, até quando dorme. O governo precisa de confiança para avançar numa direção que se traduza em mudanças palpáveis por toda a população espanhola. Quando as eleições forem convocadas pelo governo e já houver mais psicólogos no serviço de saúde pública, mais direitos trabalhistas nos locais de trabalho, se o direito à habitação já tiver sido garantido, e se o preço da energia já tiver sido regulado e se desenvolvemos novos projetos com o fundo europeu que reduzam o preço da eletricidade para uma revolução industrial verde com justiça social e milhões de empregos… Conseguir fazer isso, será o exemplo palpável e concreto de que ter um governo progressista é bom. Mas se nada for feito, continuaremos a ouvir que “políticos são todos iguais”, “são uns farsantes inúteis”, para concluir que “a Espanha deve ser governada como uma empresa”, em que todas as necessidades sociais serão geridas pelas regras do mercado.
AF
Formularam- se, e ainda se formulam, duros ataques e críticas contra ele, desde acusações de dificultar os resultados da UP e dividir a esquerda, até insinuações maliciosas de que era recebido e tratado com muita benevolência por determinados meios de comunicação, com esse mesmo propósito. O que você ponderaria?
Íñigo Errejón
As críticas, de ambas as partes, são comprováveis, e são exatamente as mesmas feitas pela IU ao Podemos, desde que ele nasceu, o que, inversamente, levou a mídia empresarial a tratá-lo tão bem. Há uma certa esquerda que ainda não entendeu que a mídia, num ambiente capitalista, se comporta visando a maximização do lucro, e quando algo desperta a atenção, eles se aproveitam, porque isso traz dinheiro. Foi exatamente por essa razão que um desconhecido Pablo Iglesias era apresentado em horário nobre quando não tinha nenhum assento sequer no Parlamento Europeu. A IU, com assento no Parlamento Europeu mas não no Congresso espanhol, reclamou da exibição, pois, pela cota, a dela deveria ser maior. A mídia empresarial não se comporta como “a mão invisível do mercado”, mas é induzida por uma espécie de dependência histérica de maximização dos lucros, que a propaganda lhe aufere. E assim nasceu o primeiro Podemos, uma formação política capaz de conectar preocupações inéditas, até então irrelevantes.
Quando falamos sobre a semana de trabalho de quatro dias ou sobre o aumento de recursos na saúde pública para o atendimento psicológico, nos conectamos com preocupações da Espanha real, com as quais ninguém se importou antes. Isto desperta o interesse de mais pessoas e a mídia passa a tratar mais disso. Foi assim com o Podemos, e está sendo assim conosco.
A questão da unidade da esquerda expressa o peso da identidade, e para algumas pessoas, isso é tudo. Uma parte da esquerda está convencida de que se a esquerda se unisse, triunfaria. Consideram que as ideias da esquerda são majoritárias, mas é preciso unir-se para alcançá-las. Este caminho remete diretamente ao PSOE, e mesmo através da UP, reconduz ao PSOE. Este problema surgiu desde que o Podemos nasceu, quando havia já uma boa parte desta esquerda tradicional prevendo que a esquerda iria se dividir. E veio o provocado terremoto. O fundamental não é garantir votos da esquerda, mas procurar incorporar ao campo progressista a maioria das pessoas comuns que não se identificam com símbolos e culturas tradicionais.
Nas eleições de Madrid motivamos, de maneira bastante eficaz, primeiros eleitores que, necessariamente, não se identificam com símbolos tradicionais, pois estes símbolos e discursos, em crise para a maioria da sociedade, não significam nada para eles. Toda esquerda deve ter o objetivo de superar-se. Tsípras e o Syrisa tiveram grandes problemas no governo. Mas depois ganharam novos eleitores, que viram nos atos não só bandeiras do Syrisa mas a da Grécia também, e que ouviram muita gente dizer: “Veja, eu não sou de esquerda, mas apoio quem defende um país digno, onde as pessoas não passem fome.” Aconteceu a mesma coisa no Uruguai, na Bolívia, no Equador, na Venezuela, na Argentina. Eles foram capazes de representar a promessa de um país mais justo e democrático que trate melhor sua população, e dispostos a discutir grandes temas. Isso requer a ousadia dos que não se submetem em nome da unidade.
Vamos seguindo nosso caminho, um caminho verde, cuja diferença de outros, em países europeus, é o nosso ponto de vista do Sul da Europa, onde a distribuição da riqueza e a justiça social são fundamentais. Somos a segunda força em Madrid e pretendemos nos fortalecer em toda a Espanha. Repetimos ao governo que deixem de se preocupar conosco, e cuidem do povo. Melhorar a vida dos espanhóis, torná-la mais segura, é garantir também um governo mais progressista na próxima legislatura. Sem dedicação, a direita prevalecerá.
AF
A ministra do Trabalho, Yolanda Díaz, propôs recentemente criar um espaço que aglutine as forças à esquerda do PSOE. Você se sente interpelado?
Íñigo Errejón
Mantenho uma boa relação com Díaz, que não é da UP. Não sei se essa tese é dela ou se é da UP. As lideranças da UP disseram outras coisas. De qualquer maneira, não nos pronunciamos. Faltam dois anos para as eleições. Não tenho uma visão ruim sobre o trabalho da ministra do Trabalho. Porém, acredito que é mais importante que o Ministério do Trabalho revogue a reforma trabalhista e resgate a garantia do emprego e dos postos de trabalho. Penso que esses são passos importantes, que podem ajudar e devolver a adesão ao governo progressista. Se o cidadão assiste a um leque de ofertas, de contra-propostas, entre siglas e coalizões, vamos aprofundar a distância emocional do cidadão com as forças políticas.
Quando o MP fala no Congresso, as pessoas não nos ouvem comentar sobre outros partidos. Nos pronunciamos sobre saúde mental, redução da jornada de trabalho, desafios ecológicos, resgate da soberania popular e serviços públicos. Esta é a perspectiva. É preciso voltar a falar da vida cotidiana, e politizá-la. É assim que recuperamos o campo político. Não sei se essas declarações da UP são uma manobra tática, do jogo político. Os governos dizem mais com suas leis do que com suas declarações. Seria desejável que falasse mais assim.
Sobre o entrevistado
Com o passar do tempo, não só o partido (hoje chamado Unidas Podemos ou UP) se debilitou, como os papéis se transformaram radicalmente. Foi Iglesias, afinal, quem levou o partido, no início de 2020, a uma coalizão com o PSOE, de Pedro Sánchez, embora com a sua força parlamentar reduzida à metade, ao longo de quatro eleições gerais, em quatro anos. O primeiro ano do governo de coalizão trouxe consigo algumas leis importantes mas também contratempos políticos para a UP e, recentemente, Iglesias deixou o cargo de vice-presidente do governo, antes de se retirar por completo da política.
Enquanto isso, Errejón tinha deixado o Podemos no início de 2019. Agora lidera o Más País, um pequeno partido verde-progressista, cujos três deputados trabalham ombro a ombro com o governo PSOE-UP. Numa entrevista à Àngel Ferrero, da Jacobin, Errejón relembra o movimento de protesto do 15–M, a sua experiência no Podemos e a fracassada tentativa de transformação da política espanhola que provocou um tsunami de reações da extrema direita nacionalista.
AF
No último maio, recordamos dez anos do 15–M. Gostaria que você fizesse um balanço daquele movimento, não só em seus aspectos positivos – bastante analisados em outros artigos – mas também dos negativos.
Íñigo Errejón
Não foi produzida nenhuma reflexão política séria. Parece relevante que, após dez anos, esse aniversário tenha passado sem choro, nem festas. Significativamente, ainda que em minoria, começam a aparecer leituras de inclinação reacionária: que o 15-M foi uma espécie de exigência meritocrática das classes médias; que não serviu para absolutamente nada e etc… É um estado de espírito que diz algumas coisas sobre o que aconteceu nestes dez anos, e que se assemelha um pouco à onda que a direita francesa lançou quando o maio de 68 foi vencido. O pêndulo balançou na direção contrária e a Espanha encontra-se num processo de direitização. As direitas fazem oposição na política e dominam a agenda cultural.
Que balanço faço do 15-M? Penso que foi uma acumulação de insatisfações, que mobilizou centenas de milhares de pessoas na Espanha com objetivos diversos. O mínimo denominador comum preponderante naquele protesto era a reivindicação por democracia, entendida não mais como mera competição entre partidos. Foi também uma contestação às elites econômicas que, embora não se canditassem nas eleições, podiam governar nosso país, independente do resultado das urnas. Foi a denúncia de que o país oficial tinha obnubilado o país real.
Essa conjunção de insatisfações produziu uma mudança na atmosfera política na Espanha. Não houve uma tradução política imediata disto porque não era possível haver: a amplitude e a diversidade das reivindicações eram enormes. Segundo uma pesquisa do Centro de Pesquisas Sociológicas (CIS), cerca de 72% dos espanhóis estavam de acordo com as demandas do 15-M. Não foi um movimento oriundo de setores tradicionalmente de esquerda, e digo isto com conhecimento de causa, como alguém que milita desde os 14 anos. O 15-M conectou-se com os anseios de regeneração da democracia e de justiça social.
Quando o 15-M chega ao seu ápice, transborda das grandes ocupações nas praças e prossegue em assembléias nos bairros, conseguindo dominar a agenda midiática. Então o 15–M depara-se com um problema típico dos movimentos sociais: não obstante o seu alcance, não quer colocar-se na disputa institucional pelas vias eleitorais e tampouco tem a capacidade de produzir poder efetivo por si só. Não é uma situação de poder dual, para usar uma expressão clássica. Perante este dilema, que não se resolve, o 15-M começa a ter uma crise de crescimento. Isso não significava que o clima gerado tivesse se diluído, mas aconteceu por falta de um catalisador político e institucional.
AF
O Podemos pretendia ser esse catalisador?
Íñigo Errejón
Exatamente. A iniciativa do primeiro Podemos nasce com esse sentido, ainda que o primeiro Podemos não seja, de maneira alguma, a expressão política do 15–M. Não é uma iniciativa do movimento, mas sim de gente que tinha participado do movimento. É a tentativa de um conjunto de ativistas e acadêmicos de produzir uma ferramenta para transformar a indignação cidadã, ampla e transversal em uma política eleitoral.
Desde o seu começo, em janeiro de 2014, até as eleições gerais de 20 de dezembro de 2015, quando o Podemos obteve cinco milhões de votos, vive-se tempos muito acelerados na política espanhola, protagonizados pelo Podemos. Ou seja, protagonizado por uma força que nasceu para interpretar o movimento populista aberto pelo 15-M e dar-lhe uma tradução política eleitoral.
A leitura que fazemos do 15–M, que está na origem do Podemos, é de que ele não era um movimento da esquerda, que não é uma impugnação aos 40 anos de democracia liberal na Espanha, nem uma revisão do que não teria sido bem feito no passado. Não é uma impugnação ao que nossos pais tenham feito, por mais que venhamos de culturas políticas que nos induzam a essa linha. O 15–M não é uma contestação ao passado, mas sim o confronto do regime político com suas próprias promessas. Isto lhe dá um caráter ambivalente. Por um lado é conservador, e não impugna a ordem imposta pelos lá de cima. Coloca-os de frente a um espelho, confrontando a ordem com os próprios princípios da ordem, por assim dizer. Isto é muito importante recordar porque é a marca de uma trajetória, de caráter mais reformista do que revolucionário, e é isso que permite a transversalidade ideológica do 15-M.
O 15–M supera a esquerda e seus símbolos. Mistura elementos anticapitalistas com vários outros, tecnocráticos e meritocráticos. Todos esses conteúdos, aparentemente contraditórios, misturam-se numa proposta reformista de caráter transversal. A iniciativa do Podemos apresenta-se explicitamente nestes termos: não somos uma formação política de esquerda, mas sim aquela que chega para ecoar a vontade cidadã e os desejos de mudança, pela radicalidade democrática.
Durante dois anos o Podemos propõe e preside toda a política espanhola, sobretudo a partir das eleições europeias de 2014. Inclusive as eleições foram convocadas com o indisfarçável propósito de nos pegar no contrapé, de nos dificultar os prazos. Desde o 15–M de 2011 até dezembro de 2015 passam-se quatro anos, em que as elites e a direita ficam culturalmente na defensiva, em que o país torna suas as razões dos indignados e, embora ausentes no Congresso, somos uma força contra-hegemônica que, sem ser majoritária, determina o rumo das instituições do país. Conseguimos 5 milhões de votos no 20 de dezembro de 2015. Tudo isto durou até as fracassadas negociações para compôr governo com o PSOE de março a abril de 2016.
AF
O que resta hoje daquele ciclo?
Íñigo Errejón
Acho que aquele ciclo acabou. Penso que não se pode entender uma boa parte das lideranças atuais, e também da gramática política espanhola, sem o 15–M. Não obstante, o pêndulo populista que, se entre 2011 e 2015 teve um sentido progressista, reformista e democrático, passou a tender no sentido reacionário. Hoje estamos num clima antipolítico que comentaristas superficialmente identificam com o 15–M, mas que para mim é o seu oposto.
A despeito de ser progressista, é um governo constituído muito mais na defensiva diante das direitas. Neste momento, enquanto conversamos, as direitas não só lideram as pesquisas, como claramente lideram o debate público. Hoje, na Espanha, são feitas declarações impensáveis de serem feitas há 10 anos atrás. E isso não é exclusivo do Vox, uma formação da direita neoliberal e autoritária, mas também difundido por outras formações que, anos atrás, não se permitiriam fazer algo assim. Nesse verão tivemos uma onda de agressões a pessoas LGTBI que não é estranha à normalização dos discursos de ódio contra os diferentes, contra os mais fracos, numa espécie de socialização da crueldade. Enquanto isso, paradoxalmente, o campo progressista está no governo e culturalmente na defensiva, numa espécie de tentativa de recomposição, em que novas idéias e propostas ainda surgem, mesmo que timidamente.
AF
Em 21 de janeiro de 2019 você renunciava ao seu posto de deputado no Congresso e, um mês depois, na plataforma Más Madrid (MM), decidiu apresentar-se às eleições. Em setembro desse mesmo ano, o Más Madrid vira Más País (MP) e passava a ser um partido a nível nacional. Ainda que pessoalmente não deva ser um tema fácil de abordar, devido a sua importância política, vejo-me obrigado a perguntar: o que o levou a romper com Podemos?
Íñigo Errejón
A versão recorrente no debate político midiático é a de que um grupo de amigos brigou. E isso é o que mais se destacou. Dessa maneira, cada um se posiciona conforme lhe convém. Obviamente, considerando aqueles que entendem a política não como um ofício, mas como compromisso e paixão, as decisões políticas de pessoas que juntas fizeram uma trajetória, muitas vezes se transformam em rupturas dolorosas. Mas isto é consequência, e não causa. Dos fundadores do Podemos, não restou ninguém em postos de liderança. Não digo isto de forma crítica, mas na tentativa de contextualização histórica. E muitos deles seguem ativos na política.
A causa, ao meu ver, e o de boa parte de quem fundou o Podemos no início, é que a partir de junho de 2016 o Podemos começa a trilhar ideologicamente outros caminhos. Não queria centrar a resposta no que eu faço, e sim no que se passa. O que penso que ocorre? Uma força política que se reivindica nacional-popular, de radicalidade democrática e transversal, que pretende subverter o eixo esquerda-direita, não por alguma tentativa de menosprezar os valores e a ideologia da esquerda, mas sim porque a construção de uma nova maioria popular ultrapassa a esquerda. Viemos daí, mas é necessário construir um movimento em termos patriotas, de justiça social e renovação democrática, como tinha sido feito na América Latina. Estas são as marcas de identidade do primeiro Podemos.
Na minha opinião, tão somente graças a este discurso e a esta forma de entender a política é que o primeiro Podemos consegue se lançar eleitoralmente. Quando nasce o primeiro Podemos, o acusam de dividir a esquerda, mas ele atrai aqueles que identificam-se mais com outros movimentos de então, como o “Occupy”, mais identificados com um discurso populista no sentido progressista, de imersão democrática... Esta é nossa chave de identidade fundamental.
Por que? Porque no primeiro Podemos confluímos, encontramo-nos como pessoas que vieram de tradições bastante diferentes. Encontramos pessoas da Juventude sem Futuro, muita gente da militância estudantil, que miravam o autonomismo e os movimentos sociais na América Latina, o ciclo populista-progressista nesta região, e não na hipótese nacional-popular. Mas logo, entre o conjunto de pessoas em torno do secretário geral, que vem de uma militância mais tradicional no Partido Comunista da Espanha (PCE) e da sua juventudes, conformam-se numa esquerda mais tradicional. Então não é um problema. Isto é notado em símbolos, em palavras. Mas logo, porém, começam a registar-se diferenças substanciais: a quem nos referenciamos, que tipo de política fazemos. Isso será muito evidente quando temos que negociar um governo com o PSOE. Aquele Podemos tem cinco milhões de votos e o PSOE cinco milhões e trezentos mil. Estamos separados por uma dezena de assentos.
AF
Que importância as negociações de formação do governo tiveram?
Íñigo Errejón
Quando tivemos que negociar em 2016 um governo, o fazíamos praticamente no téte-a-tète. Fazíamos num país em que o sentimento hegemônico era claramente de renovação progressista, enquanto a direita estava com problemas e ainda não existia a extrema direita tipo Vox. O governo pactuado no inverno de 2019 entre PSOE e Podemos já existia como possibilidade desde janeiro de 16, quase quatro anos antes e só se formou quando ambas as forças eram mais fracas e o país estava muito mais direitizado. O governo que PSOE e Unidas Podemos acordaram em dezembro de 2019 é a pior possibilidade que poderia ter existido. Levávamos quatro anos nos quais este governo poderia ter sido conformado, em melhores condições e uma correlação de forças em que Podemos estava de igual para igual com o PSOE, quase com os mesmos votos.
Este governo não foi acordado porque o grosso da direção socialista não quis, mas também porque os companheiros que vem da tradição de esquerda tradicional, mais comunista, acreditam que uma repetição eleitoral pode produzir uma surpresa ao partido socialista. Como? Porque Podemos foi se unir com a Izquierda Unida (IU). Nesta repetição eleitoral, o Podemos apresenta 5 milhões de votos e a IU com 1 milhão de votos. A partir de então, começa um processo acelerado no qual o Podemos começa a assumir o discurso, as mensagens políticas, a auto-demarcação no terreno político da esquerda tradicional. Chegamos nos espaços com bandeiras cubanas e soviéticas. Eu não tenho nenhum problema com essas bandeiras, mas tenho certeza que o Podemos não conseguiu 5 milhões de votos apelando aos seguidores destas bandeiras, mas o fez transcendendo a esquerda e apelando a questões de sentido comum para conseguir um país que tratasse melhor a sua população.
Quando o Podemos começou a renunciar ao caminho nacional-popular e transversal e começou a orientar-se para ser uma esquerda política tradicional, começou a ter os resultados eleitorais da esquerda tradicional. Desde aí, aquele Podemos não tem deixado de perder votos, as pesquisas já se aproximam muito ao que foram os melhores resultados da IU, ou seja, uma proposta para os votantes pós-comunistas tradicionais.
AF
E aqui começa o processo de ruptura
Íñigo Errejón
Numa formação política criada nas lideranças carismáticas, nós competimos contra a linha que defende o secretário geral e perdemos. Por um tempo, acreditamos que fosse possível coexistir sendo minoria, defendendo nossas posições, mas, internamente, nossa existência no Podemos começou a complicar-se cada vez mais, de uma maneira que só entende quem já tenha militado na política.
As engrenagens de um partido podem fazer com que determinadas coisas tornem-se quase impossíveis. Desde então, a trajetória política do Podemos é uma trajetória de declínio. Em cada eleição, perde votos, começa a desaparecer em certos territórios onde já não tem representação, e lhe acontece uma coisa que não se mede em números: o Podemos deixou de liderar a pauta pública espanhola. Podemos era, em 2014 e 2015, um elemento hype entre os analistas e intelectuais. Gerava prestígio aproximar-se do partido. Mas o Podemos perde isto rapidamente e converte-se numa formação tradicional, que ocupa o espaço do que havia sido a IU e o PCE. Agrada a uma porcentagem muito reduzida de espanhóis e a outra porcentagem considerável de espanhóis nada lhe diz respeito.
Eu havia ganhado as primárias para ser o candidato à presidência representando Podemos, pela Comunidade de Madrid. A situação com a qual me encontro, sem entrar em detalhes pessoais desagradáveis, é que não tenho nem a maneira, nem a ajuda, nem a disposição do partido para pleitear-me com condições nessas eleições. Então, toma-se a decisão política de me estreitar a margem, para me afastar, para me asfixiar politicamente.
Assim que lancei uma plataforma junto a Manuela Carmena, a então prefeita de Madri, que se chama Más Madrid, à qual convidamos o Podemos a se unir, de forma similar ao que Podemos fez em Barcelona, onde participa de uma plataforma que se chama Barcelona Em Comú, como uma força a mais eles não colocaram nem sequer o cabeça de lista.
AF
Como definiria a MP (Más País) para alguém que ainda não conhece a formação política?
Íñigo Errejón
Viemos da corrente fundadora de Podemos, ancorada no que chamávamos hipótese nacional – popular, destinadas em ir mais além da esquerda, não em seus valores, mas sim na forma de dirigir-se aos cidadãos. Acreditamos que a pauta verde, o ecologismo político é uma oportunidade fundamental para reconstruir a economia. Para nós, o verde não é algo setorial: é o maior desafio que tem a civilização e o modelo de desenvolvimento atual não apresenta saída. O problema da mudança climática não tem solução nos contextos atuais, oligárquicos e de mercado depredador. Para que se haja solução, é preciso o fortalecimento das comunidades, prioritariamente das comunidades locais, com um Estado forte, mas sobretudo da capacidade de planificar o futuro e não deixá-lo ao controle de quem tem mais dinheiro. Por este caminho, não é que falemos de um modelo que produza injustiças e dor social, mas que nos leva à extinção da vida tal qual a conhecemos. Este desafio nos exige superar o modelo neoliberal e recuperar a ideia do comum. Somente se reforçarmos a capacidade de cooperar podemos encarar esse desafio, dentro de Estados fortes e democráticos.
Somamo-nos à onda verde que recorre a Europa, mas nos afiliamos com uma especificidade: somos os verdes do sul da Europa. Isso significa que, em nosso caso, a justiça social e a transição ecológica devem caminhar lado a lado. Sem transição ecológica será muito difícil realizar um dos maiores desafios da nossa sociedade.
AF
Alguns comentadores classificaram MP, por vezes de forma depreciativa, como “partido regional”. Considera possível consolidar o partido a nível estatal?
Íñigo Errejón
Por ser uma força original de Madri, é natural estar mais presente aqui, mas hoje, como refletem as pesquisas, ganhamos peso e aspiramos, lentamente, e desde abaixo, a ser o que já somos em Madri, uma segunda força, que se consolide no resto do Estado. É um longo caminho, mas é um caminho determinado para criar uma força verde. Ser verde é uma enorme oportunidade política e ideológica para construir amplas bases de restauração democrática num sentido republicano, no melhor sentido da palavra.
AF
Como você avalia a ação de governo formado pelo PSOE e Unidas Podemos (UP)? E como avalia a participação da UP dentro dele? Pode parecer excessivo recordar aqui uma vez mais a irônica situação da UP, que antes rejeitou o programa apresentado primeiramente por você, para, tempos depois, nas últimas eleições, representá-lo como dela, e não conseguir se sustentar por falta de respaldo político. De onde se pode concluir que a UP não tem a alardeada capacidade de pressão sobre o PSOE, e sim o contrário.
Íñigo Errejón
Ninguém desconhece que a proposta encabeçada pelo Podermos é a mesma que fizemos 4 anos atrás, mas isso não constitui um problema para nós. É clássico na política defender propostas do opositor, após tirá-lo do caminho. E, pessoalmente, não passaria de amarga lembrança pessoal, de uma ironia do destino em minha carreira política, se durante esses 4 anos outras coisas também não tivessem acontecido. O maior problema para a execução desse programa de governo é que a Espanha mudou. Qual a diferença entre executar essa proposta em 2016 e em 2019? É a correlação de forças entre o Podemos e o PSOE, que agora é completamente diferente. O Podemos liderava o campo progressista e era a mais poderosa força da Espanha. Tinha as prefeituras de diversas cidades grandes como Madrid, Cádiz, Coruña, Bilbao, Zaragoza, Barcelona, Valencia. Era claramente uma força que ia de vento em popa. Parecia muito claro que éramos a força do futuro, que poderíamos assumir o governo a qualquer momento. E além do mais, na Espanha não tinha surgido ainda a extrema direita. E o PP vivia uma crise brutal consequente dos casos de corrupção. O conflito nacional entre a Catalunha e o Estado ainda não tinha atingido o grau de virulência que permitiu não só o acirramento da repressão de 1º de outubro como também a onda de anti-catalunha e o reacionarismo por toda a Espanha, sem a qual não se entenderia o Vox.
Éramos uma força pujante. O Podemos negociava as propostas, praticamente em igualdade de condições com o PSOE, estando no governo ou não, com a força de seu bloco no Congresso, e o governo só poderia sobreviver com o apoio do Podemos. Vivíamos diariamente um clima de entusiasmo, de ciclo de ascensão. Parecia que nossas ideias ainda eram as mesmas que as de todo o país. Só poucos anos depois, quando finalmente o acordo de governo é alcançado, tornou-se evidente o desgaste que o esforço pelo acordo causou, principalmente ao Podemos, que perdeu quase metade dos votos que tinha. Tendo perdido sua capacidade de liderança intelectual e política, na convocação das eleições, deu lugar à ascensão da direita, num clima rarefeito, impulsionado pela antipolítica: “Para que serve tudo isso? Ajudar a viver melhor, não resolve nada”, e coisas desse tipo. Pode vagamente lembrar o mesmo clima em que o 15-M nasceu, só com o sinal contrário.
Dadas tais condições, esse é um governo que nasce com um objetivo tático: frear as direitas, e alianças são feitas, por causa das direitas. Mas é um objetivo bem mais moderado do que o de anos atrás, quando nossa vontade era iniciar um processo constituinte na Espanha. Em 2015, pleiteamos objetivos muito mais radicais, com palavras muito brandas. Hoje o atual Podemos defende objetivos muito moderados com palavras muito radicais. O Podemos atual tem como objetivo frear a direita com discursos inflamados, numa retórica grandiloquente e ideológica. Isto no fundo é o restabelecimento da categorização política do bipartidarismo vigente na Espanha na década de 1980. O bipartidarismo não foi só a prevalência dos grandes partidos, comportando a existência também de partidos pequenos e de esquerda.
Qual é a minha análise do que o governo está fazendo? O governo está no meio de uma legislatura e tem boas condições para mudar de rumo. Mas se tivesse hoje que prestar contas teria mais débito do que créditos. É um governo que não cuidou de responder às mínimas expectativas suscitadas, não obstante tivesse apoio social. Nunca antes, como em tempo de pandemia, o cidadão espanhol pode compreender a importância do bem comum, e quanto o Estado forte é necessário não apenas para pagar dívidas e fazer empréstimos, como igualmente intervir na economia, definir um horizonte e garantir direitos. Além disso, conta com o importante recurso dos fundos comuns europeus, com uma expansiva política de Bruxelas na possibilidade de orientação numa mudança de modelo. E com maioria parlamentar tem a possibilidade de aprovar ou revogar o que o cidadão demanda, como abolir as reformas trabalhistas que precarizam o mercado de trabalho na Espanha; extinguir a lei da mordaça que restringe os direitos fundamentais de reunião e expressão; de regular o mercado elétrico frente ao oligopólio energético, e assim por diante.
Mas até agora tem sido um governo que não oferece a seus simpatizantes muitos motivos para defendê-lo. É verdade que geriu a pandemia de forma mais socialmente sensível do que o PP teria feito, mas isso só não parece ser o suficiente para a sociedade espanhola. O governo gasta muito fôlego, gritando para a direita passar longe. Mas isso não é suficiente para continuar na Moncloa. O governo necessita produzir transformações reais e de grande alcance na vida dos cidadãos para que eles sintam que existe uma diferença substancial entre ter no governo as direitas ou uma coalização progressista. Do contrário, o que mais se espalhará é o sentimento de apatia e cinismo. A maioria das pessoas veem as notícias com distanciamento emocional e desencanto. E quando há desencanto, quando resvala no cinismo que acha que tudo é mentira, e que a única verdade é a das “leis da natureza do mercado”, mercado dominado por oligarquias, isto sempre leva à extrema direita, reacionária.
AF
Diria que o governo já está condenado?
Íñigo Errejón
Não creio que o governo esteja condenado. Restam dois anos de mandato e é possível retificar o curso. Mas é preciso abandonar a tática defensiva e lançar-se ao ataque, porque, enfim, paga-se a conta do que se faz, e também do que não se faz. É um governo muito tímido em termos econômicos e sociais, mas que é tratado pela direita como se fosse comunista, não tendo feito absolutamente nada nesse sentido, apenas por haver representantes de partidos de esquerda no governo. Isso me lembra um ditado bem espanhol: este governo “paga tanto por latir, como por morder”. Assim, o governo precisa transformar a sociedade para que haja futuros governos progressistas, que tenham credibilidade. Enquanto a sociedade espanhola segue afundando cada vez mais, no rumo da desigualdade crescente, da destruição dos serviços públicos, da insegurança do emprego e da oligarquização da estrutura geral da sociedade, o senso comum neoliberal se generaliza, é assimilado e leva muita gente a votar com ele.
O PSOE, em especial, deveria procurar compreender que para continuar sendo uma formação reformista, tem que demonstrar mais ousadia e ser mais anti-oligárquico. Não porque esta seja a orientação ideológica de Iñigo Errejón, mas sim porque, caso o Estado e a sociedade espanhola não se transformem, e caso não se restaure a civilidade capaz de levar pessoas muito diversas a vislumbrar um futuro comum, pode acontecer que nossas propostas progressistas soem melhor, mas faltam exemplos concretos e próximos de como funcionam. A saúde pública poderia servir de exemplo de como um pedacinho de socialismo faz bater o coração de uma sociedade capitalista. E por que a saúde é tão duramente atacada? Porque é uma demonstração cotidiana de que a desmercantilização pode funcionar e de que a prestação de serviços públicos com fins sociais não só é mais justa, mas também mais eficiente. Esses exemplos servem para produzir uma convivência democrática. Do contrário, quando começar a campanha eleitoral, o adversário já entra vencendo, pois, para os direitistas só bastará sugerir aos cidadãos que se lembrem do que acontece no dia-a-dia deles, submetidos ao predomínio neoliberal: “vocês estão sós”, “salve-se quem puder”, “quem pode, manda, e quem não pode, obedece”. A importância da democracia na vida cotidiana é essencial. Do contrário, essa onda de apatia e cinismo se generaliza mais e mais, o que só beneficiará a direita.
Nosso lugar em tudo isso é modesto e pequeno. O principal é apoiar o governo quando ele avança, definir rumos com ele, e apresentar propostas estratégicas. São propostas que não tratam de perda de direitos, mas sim da geração de novos direitos, tais como uma nova jornada de trabalho, ou o desenvolvimento de políticas ecológicas-ambientais, ou o fortalecimento do sistema de saúde. É essencial para o governo, não só libertar-se do assédio da direita, como avançar. Com o nível de agressividade da direita, Sánchez é confundido com Salvador Allende, até quando dorme. O governo precisa de confiança para avançar numa direção que se traduza em mudanças palpáveis por toda a população espanhola. Quando as eleições forem convocadas pelo governo e já houver mais psicólogos no serviço de saúde pública, mais direitos trabalhistas nos locais de trabalho, se o direito à habitação já tiver sido garantido, e se o preço da energia já tiver sido regulado e se desenvolvemos novos projetos com o fundo europeu que reduzam o preço da eletricidade para uma revolução industrial verde com justiça social e milhões de empregos… Conseguir fazer isso, será o exemplo palpável e concreto de que ter um governo progressista é bom. Mas se nada for feito, continuaremos a ouvir que “políticos são todos iguais”, “são uns farsantes inúteis”, para concluir que “a Espanha deve ser governada como uma empresa”, em que todas as necessidades sociais serão geridas pelas regras do mercado.
AF
Formularam- se, e ainda se formulam, duros ataques e críticas contra ele, desde acusações de dificultar os resultados da UP e dividir a esquerda, até insinuações maliciosas de que era recebido e tratado com muita benevolência por determinados meios de comunicação, com esse mesmo propósito. O que você ponderaria?
Íñigo Errejón
As críticas, de ambas as partes, são comprováveis, e são exatamente as mesmas feitas pela IU ao Podemos, desde que ele nasceu, o que, inversamente, levou a mídia empresarial a tratá-lo tão bem. Há uma certa esquerda que ainda não entendeu que a mídia, num ambiente capitalista, se comporta visando a maximização do lucro, e quando algo desperta a atenção, eles se aproveitam, porque isso traz dinheiro. Foi exatamente por essa razão que um desconhecido Pablo Iglesias era apresentado em horário nobre quando não tinha nenhum assento sequer no Parlamento Europeu. A IU, com assento no Parlamento Europeu mas não no Congresso espanhol, reclamou da exibição, pois, pela cota, a dela deveria ser maior. A mídia empresarial não se comporta como “a mão invisível do mercado”, mas é induzida por uma espécie de dependência histérica de maximização dos lucros, que a propaganda lhe aufere. E assim nasceu o primeiro Podemos, uma formação política capaz de conectar preocupações inéditas, até então irrelevantes.
Quando falamos sobre a semana de trabalho de quatro dias ou sobre o aumento de recursos na saúde pública para o atendimento psicológico, nos conectamos com preocupações da Espanha real, com as quais ninguém se importou antes. Isto desperta o interesse de mais pessoas e a mídia passa a tratar mais disso. Foi assim com o Podemos, e está sendo assim conosco.
A questão da unidade da esquerda expressa o peso da identidade, e para algumas pessoas, isso é tudo. Uma parte da esquerda está convencida de que se a esquerda se unisse, triunfaria. Consideram que as ideias da esquerda são majoritárias, mas é preciso unir-se para alcançá-las. Este caminho remete diretamente ao PSOE, e mesmo através da UP, reconduz ao PSOE. Este problema surgiu desde que o Podemos nasceu, quando havia já uma boa parte desta esquerda tradicional prevendo que a esquerda iria se dividir. E veio o provocado terremoto. O fundamental não é garantir votos da esquerda, mas procurar incorporar ao campo progressista a maioria das pessoas comuns que não se identificam com símbolos e culturas tradicionais.
Nas eleições de Madrid motivamos, de maneira bastante eficaz, primeiros eleitores que, necessariamente, não se identificam com símbolos tradicionais, pois estes símbolos e discursos, em crise para a maioria da sociedade, não significam nada para eles. Toda esquerda deve ter o objetivo de superar-se. Tsípras e o Syrisa tiveram grandes problemas no governo. Mas depois ganharam novos eleitores, que viram nos atos não só bandeiras do Syrisa mas a da Grécia também, e que ouviram muita gente dizer: “Veja, eu não sou de esquerda, mas apoio quem defende um país digno, onde as pessoas não passem fome.” Aconteceu a mesma coisa no Uruguai, na Bolívia, no Equador, na Venezuela, na Argentina. Eles foram capazes de representar a promessa de um país mais justo e democrático que trate melhor sua população, e dispostos a discutir grandes temas. Isso requer a ousadia dos que não se submetem em nome da unidade.
Vamos seguindo nosso caminho, um caminho verde, cuja diferença de outros, em países europeus, é o nosso ponto de vista do Sul da Europa, onde a distribuição da riqueza e a justiça social são fundamentais. Somos a segunda força em Madrid e pretendemos nos fortalecer em toda a Espanha. Repetimos ao governo que deixem de se preocupar conosco, e cuidem do povo. Melhorar a vida dos espanhóis, torná-la mais segura, é garantir também um governo mais progressista na próxima legislatura. Sem dedicação, a direita prevalecerá.
AF
A ministra do Trabalho, Yolanda Díaz, propôs recentemente criar um espaço que aglutine as forças à esquerda do PSOE. Você se sente interpelado?
Íñigo Errejón
Mantenho uma boa relação com Díaz, que não é da UP. Não sei se essa tese é dela ou se é da UP. As lideranças da UP disseram outras coisas. De qualquer maneira, não nos pronunciamos. Faltam dois anos para as eleições. Não tenho uma visão ruim sobre o trabalho da ministra do Trabalho. Porém, acredito que é mais importante que o Ministério do Trabalho revogue a reforma trabalhista e resgate a garantia do emprego e dos postos de trabalho. Penso que esses são passos importantes, que podem ajudar e devolver a adesão ao governo progressista. Se o cidadão assiste a um leque de ofertas, de contra-propostas, entre siglas e coalizões, vamos aprofundar a distância emocional do cidadão com as forças políticas.
Quando o MP fala no Congresso, as pessoas não nos ouvem comentar sobre outros partidos. Nos pronunciamos sobre saúde mental, redução da jornada de trabalho, desafios ecológicos, resgate da soberania popular e serviços públicos. Esta é a perspectiva. É preciso voltar a falar da vida cotidiana, e politizá-la. É assim que recuperamos o campo político. Não sei se essas declarações da UP são uma manobra tática, do jogo político. Os governos dizem mais com suas leis do que com suas declarações. Seria desejável que falasse mais assim.
Sobre o entrevistado
Íñigo Errejón é doutor em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madrid e Deputado do Mas País.
Sobre o entrevistador
ÀNGEL FERRERO é jornalista, tradutor e colaborador regular do Público, El Salto e da revista Catarsi.
Sobre o entrevistador
ÀNGEL FERRERO é jornalista, tradutor e colaborador regular do Público, El Salto e da revista Catarsi.
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