1 de agosto de 2020

O sociólogo que poderia nos salvar do coronavírus

Ulrich Beck foi um profeta da incerteza - e o intelectual mais importante para a pandemia e suas consequências.

Adam Tooze
Adam Tooze, colunista da Foreign Policy e diretor do Instituto Europeu da Universidade de Columbia.

Foreign Policy

JON BENEDICT para a FOREIGN POLICY/GETTY IMAGES

Tradução / Todos conhecemos o roteiro de Chernobyl. O derretimento de um reator mal projetado foi seguido da tentativa pelo decrépito regime soviético de esconder o desastre. Milhões de pessoas foram colocados em risco. A verdade veio a público. O regime pagou o preço e sua legitimidade foi arruinada. O colapso sobreveio.

Para os liberais, é um agradável conto de moralidade. A ditadura fracassa quando confrontada com os desafios da modernidade. A luz do dia é o melhor desinfetante.

Na eclosão do COVID-19, nos perguntamos se esse seria o Chernobyl do presidente chinês Xi Jinping. Mas após os abusos iniciais impulsionados pela política local de Wuhan, a liderança nacional da China reafirmou seu domínio. O pior momento foi no dia 7 de fevereiro, quando centenas de milhões de chineses foram à Internet para protestar contra o tratamento dispensado a Li Wenliang, o médico whistle-blower que havia morrido da doença. Desde então, Pequim assumiu o controle, tanto da doença quanto da narrativa midiática. Longe de ser um momento de perestroika, tonaram-se mais rígidas a disciplina e censura do partido.

Na primavera do hemisfério norte, os funcionários da Casa Branca provavelmente estavam assistindo Chernobyl, a minissérie da HBO, e se perguntando sobre seu próprio chefe. Recentemente, o historiador Harold James colocou a questão: estariam os Estados Unidos vivendo seu momento final soviético, com o COVID-19 como a crise terminal do presidente Donald Trump? Se esse for o caso, não será por causa de uma dissimulação mal feita. Os estadunidenses não vivem nem no final da Ucrânia soviética nem na era de Watergate, quando uma revelação sórdida poderia destruir um presidente. Trump é obviamente culpado pela irresponsabilidade de menosprezar a doença. No entanto, ele fez isso sob todos os holofotes das câmeras de TV. O presidente se deleitou enquanto desrespeitava as recomendações de especialistas em saúde pública, calculando corretamente que uma grande parte de sua base não estava preocupada com normas convencionais de verdade ou razão.

Mesmo que nem a China de Xi nem os Estados Unidos de Trump sejam equivalentes à União Soviética em seu declínio, a referência a Chernobyl permanece relevante para a nossa situação na pandemia de COVID-19.

O que deveria nos interessar não é tanto a queda da União Soviética, mas as preocupações mais mundanas dos europeus ocidentais que, em 1986, se viram no caminho da nuvem de radiação de Chernobyl. À medida que as notícias do desastre vazavam, eles enfrentavam muitas das mesmas questões que nos assombram em 2020. Quais testes são confiáveis? É seguro sair de casa? As crianças podem brincar em caixinhas de areia? Que alimentos são seguros? Quanto tempo vai durar a incerteza? Quais são as escolhas que temos? O que exatamente é um becquerel? Quantos de nós estamos a salvo? Quais relatórios, dados e recomendações deve-se ler, dentre sua vasta gama? Em quem se deve confiar?

Em termos de Curies por quilômetro quadrado, a radiação foi pior em dois cinturões: um estendendo-se para noroeste na Escandinávia e outro para o sul na Eslovênia, Áustria e Baviera. Não há séries da HBO sobre a vida sob a nuvem radioativa naquele verão. O que temos é um livro, Sociedade de Risco, publicado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, com excelente timing, na primavera alemã de 1986.

Beck argumenta que a onipresença de ameaças em larga escala de escopo global, anônimas e invisíveis constitui o denominador comum de nossos novos tempos: “Um destino de perigos emergiu na modernidade, uma espécie de contra-modernidade, que transcende todos os nossos conceitos de espaço, tempo e diferenciação social. O que ontem ainda estava longe será encontrado hoje e no futuro ‘na porta de casa’”. A questão, tão vividamente exposta por crises como Chernobyl e a presente pandemia de coronavírus, é como navegar neste mundo. A relevância das respostas de Beck é ainda mais saliente em nossos dias do que na década de 1980.

Beck foi, sob muitos aspectos, uma figura emblemática da Alemanha do pós-guerra. Depois de seu nascimento em 1944, perto da costa do Báltico, na cidade pomerana de Stolp, agora Slupsk na Polônia, a família de Beck fugiu do Exército Vermelho para se instalar na próspera cidade industrial de Hannover. Ele estudou sociologia não na famosa e radical Frankfurt, ou na Universidade Livre de Berlim, mas em Freiburg e Munique. No início da década de 1980, ele foi nomeado como professor de sociologia na pitoresca Bamberg, rio acima de Frankfurt. Após o sucesso da Sociedade de Risco, Ulrich Beck emergiria como o cientista social mais amplamente reconhecido da Alemanha depois de Jürgen Habermas.

Não é à toa que Beck foi apelidado de “sociólogo zeitgeist”. O mundo intelectual ao qual ele estava reagindo no início da década de 1980 na Alemanha Ocidental era de considerável incerteza. O ímpeto reformista das décadas de 1960 e 1970 havia diminuído. O governo do chanceler da Alemanha Ocidental Helmut Kohl tinha pouco da energia do presidente dos EUA, Ronald Reagan, ou da primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher. Habermas caracterizou o período em termos intelectuais e políticos como die neue Unübersichtlichkeit − a nova obscuridade. O movimento mais comum foi caracterizar o período como uma era de “pós-” − pós-industrial, pós-moderno, pós-colonial. Contudo, como Beck disse, o uso do termo “pós” era um marcador de nossa prostração, o equivalente intelectual do bastão de um cego tateando no escuro. Diante do desafio de fornecer uma definição positiva, Beck escolheu a sociedade de risco.

No início da década de 1980, o tema do risco estava no ar. A escalada da tensão da Guerra Fria criou uma sensação generalizada de ameaça. A campanha contra o DDT, cujo o best-seller Silent Spring de Rachel Carson deu grande destaque, exacerbou a sensibilização sobre a poluição química invisível. O incidente de Three Mile Island em 1979 evidenciou o perigo de acidentes nucleares. Nos Estados Unidos em 1982, Mary Douglas e Aaron Wildavsky esboçaram sua teoria cultural do risco, apoiada no trabalho antropológico anterior de Douglas. Charles Perrow alertou que, ao conviver com sistemas complexos e massivos, como os sistemas de controle de tráfego aéreo, represas e reatores nucleares, os acidentes devem ser admitidos como normais.

A contribuição de Beck em Sociedade de Risco consiste em uma persuasiva interpretação sociológica desse senso generalizado de ameaça indefinida, mas onipresente, tanto como uma questão de experiência pessoal e coletiva quanto de uma época histórica. Mais do que isso, a Sociedade de Risco é uma espécie de manifesto, propondo uma nova atitude perante – e uma nova política para – a realidade contemporânea.

A primeira onda de modernização do Ocidente foi levada adiante por uma superação entusiástica da tradição e uma subordinação confiante da natureza por meio da ciência e da tecnologia. Em uma constatação desorientadora no final do século XX, essas mesmas energias, essas mesmas ferramentas eram então fonte não apenas de nossa emancipação, mas também de nossa autoameaça. Recuar seria colocar em risco os benefícios da modernização. Não podemos negar os benefícios da medicina moderna. Mas tampouco podemos negar seus riscos e efeitos colaterais, intencionais e não intencionais. Era necessária uma “abordagem científica da ciência” – na falta de uma descrição melhor. O desafio desta era, que Beck batizou de segunda modernidade ou modernidade reflexiva, seria encontrar maneiras de empregar as ferramentas da modernidade – da ciência, da tecnologia e do debate democrático – sem sucumbir às sempre presentes tentações de olhar para trás, para uma era mais familiar, ou viver na negação.

Não é uma tarefa fácil. Não existe uma fórmula liberal familiar para lidar com os riscos contemporâneos criados pelo desenvolvimento tecnológico moderno. Não se trata de denunciar ditaduras ou populismos xucros. Na verdade, há todas as razões para pensar que os problemas da sociedade de risco serão mais agudos precisamente para aqueles que se julgam particularmente razoáveis e modernos, porque não podem escapar de seus dilemas e paradoxos.

Beck compartilhou com o movimento ambientalista das décadas de 1970 e 1980 da consciência ascendente dos gigantescos riscos produzidos pelo desenvolvimento econômico moderno. Foi a questão nuclear que catapultou a sociedade de risco para a consciência pública. Porém, a década de 1980 também testemunhou o surgimento de uma consciência generalizada tanto da mudança climática quanto do “paradigma das doenças emergentes”. Se a mudança climática foi resultado de emissões de carbono, o surgimento de vírus como o HIV e o coronavírus SARS-CoV-2 teriam origem na intrusão de humanos em delicados ecossistemas florestais e nos vastos criadouros de animais do complexo agroindustrial. Como cidadãos de sociedades modernizantes bem-sucedidas, enfrentamos riscos generalizados que fundamentalmente diluem a fronteira entre o social e o natural. Beck poderia ser corretamente apontado como um dos primeiros pensadores do que hoje conhecemos por Antropoceno.

Beck vai um passo além, no entanto. Se é verdade que agora enfrentamos riscos ubíquos gerados e lançados sobre nós pelas forças da modernidade, embora não acessíveis aos nossos sentidos imediatos, como podemos lidar com isso? Até que você comece a sofrer de envenenamento por radiação, até que seu feto sofra uma mutação horrível, até que você descubra seus pulmões cheios de pneumonia, a ameaça da radiação ou de um inseto misterioso é irreal, inacessível a olho nu ou percepção imediata.

Na sociedade de risco, tornamo-nos radicalmente dependentes do conhecimento científico especializado para definir o que é e o que não é perigoso antes que nos deparemos com esse perigo. Tornamo-nos, como Beck coloca, “incompetentes nas questões” da nossa “própria aflição”. Alienados de nossas faculdades de avaliação, perdemos uma parte essencial de nossa “soberania cognitiva”. O nocivo, o ameaçador, o hostil estão à espreita em todos os lugares, mas se trata-se de algo hostil ou amistoso está “além de nosso poder de julgamento”. Assim, enfrentamos um choque duplo: uma ameaça à nossa saúde e sobrevivência e uma ameaça à nossa autonomia para avaliar essas ameaças. À medida que reagimos e lutamos para retomar o controle, não temos alternativa senão “tornarmo-nos modestos especialistas particulares interinos em riscos da modernização”. Fazemos um curso intensivo de epidemiologia e nos informamos sobre o “R zero”. Contudo, esse esforço apenas nos leva mais adentro no labirinto.

A lógica experiencial regular do pensamento cotidiano é invertida. Ao invés de partir da experiência imediata e então abstrair para afirmações gerais sobre o mundo, as notícias do dia começam com referências a fórmulas matemáticas, testes químicos e pareceres médicos. Quanto mais dependemos da ciência, mais nos distanciamos da realidade imediata. Cada encontro com nossos concidadãos, enquanto realizamos nossas atividades ordinárias, é obscurecido por um cálculo de riscos virtuais e da probabilidade de contaminação. O resultado é paradoxal. O caminho da ciência nos leva a um reino no qual forças ocultas, como os deuses e demônios da antiguidade, ameaçam nossas vidas terrenas. Uma estranha mistura de medo e cálculo nos persegue em nossos “próprios sonhos”. Enquanto a religião animista dotava a natureza de espíritos, agora vemos o mundo através das lentes das causalidades latentes e onipresentes. “Substâncias perigosas e hostis se escondem atrás de fachadas inofensivas. Tudo deve ser visto com um duplo olhar e só pode ser corretamente compreendido e julgado por meio dessa duplicação. O mundo do visível deve ser investigado, relativizado e avaliado em relação a uma segunda realidade, existente apenas conceitualmente e oculta no mundo”.

Como aprendemos durante a pandemia COVID-19, uma das principais funções de uma máscara facial é lembrar a si mesmo dos perigos invisíveis e sinalizar aos outros que estamos levando esses riscos a sério. Nos Estados Unidos, elas se tornaram algo como um dogma, uma forma de indicar publicamente que se pertence àqueles que levam “a ciência” a sério.

“Como o olhar do exorcista, o olhar do contemporâneo atormentado pela poluição é direcionado a algo invisível”. “Poluentes e toxinas onipresentes” assumem o papel dos espíritos. Em nosso esforço para enfrenta-los, desenvolvemos nossos “próprios rituais de evasão, mandingas, intuições, suspeitas e certezas”. Claro, isso não é exorcismo, insistimos. Trata-se de ciência, medicina, engenharia, tecnologia. Entretanto, fazer referência a essas autoridades não resolve efetivamente nosso problema. Porque na maioria dos assuntos com os quais nos preocupamos, parece que a ciência fala com muitas vozes. A ciência é, na melhor das hipóteses, um coro turbulento e obstinado, composto por muitas pessoas com ideias diferentes sobre a melodia que deveriam cantar. Como descobrimos em 2020, para nosso horror, é ingênua ou está de má-fé qualquer pessoa que professa acreditar que a medicina, a ciência e o conhecimento especializado em saúde pública nos dirão por si mesmos como agir. Apesar da perplexidade e do déficit de informação, não podemos nos esquivar da responsabilidade do julgamento político pessoal e coletivo.

Quanto mais sabemos, ademais, mais percebemos que não somos os únicos a emitir juízos. Cada parte interessada está selecionando e escolhendo suas fontes. É uma exposição esclarecedora, mas também chocante, sobre como é feita realmente a salsicha do conhecimento moderno. Isso, como Beck nos lembra, “não seria tão dramático e poderia ser facilmente ignorado se pelo menos não se estivesse lidando com riscos muito reais contra si próprio”.

É claramente um mundo profundamente moderno, saturado de tecnologia e expertise. Mas não é uma imagem simples da modernidade, na qual a razão científica marcha para a vitória contra a superstição e a censura. Quem dera fosse tão simples. Pelo contrário, nos encontramos em um mundo no qual o racionalismo e o ceticismo se voltam contra si mesmos. O conhecimento não vem cuidadosamente embalado na forma da verdade nitidamente reconhecível, mas em “misturas” e “amálgamas”. Ele é transportado por “agentes do conhecimento com suas combinações e oposições, suas fundamentações e argumentações, seus erros, suas irracionalidades”, tudo o que obviamente contribui para definir a possibilidade de eles saberem sobre as coisas que eles afirmam saber.

Como observa Beck, “é um desenvolvimento de grande ambivalência. Ele representa a oportunidade de emancipar a prática social do poder da ciência por meio da própria ciência”. Conseguimos uma compreensão muito mais realista da geração dos resultados científicos e da produção das vacinas. Mas a desilusão e o ceticismo resultantes também têm o potencial de imunizar “ideologias prevalecentes e pontos de vista interessados contra afirmações científicas esclarecidas, abrindo a porta para uma feudalização das práticas do conhecimento científico por meio de interesses econômicos e políticos e ‘novos dogmas’”.

O progresso tecnológico está revolvendo a natureza e gerando um contragolpe massivo e perigoso. No momento em que mais precisamos dele para nos orientar, a ciência e as decisões do governo baseadas nela perdem sua base de legitimidade. À medida que toda a extensão desse choque se instala, desencadeia-se um terceiro processo de desestabilização: começamos a questionar as narrativas mais gerais de progresso e história com base nas quais entendemos nosso presente.

A abertura de Beck à ambiguidade e à complexidade do desenvolvimento global, sua insistência na surpreendente multiplicidade e qualidade de reações potenciais à sociedade de risco: tudo isso faz com que seu livro continue um mapa relevante para ler nossa situação atual. Se voltarmos a 1986, Beck antecipou três maneiras pelas quais as sociedades lidam com os riscos que ele identificou.

O próprio Beck teve esperança no que ele chamou de uma micropolítica cosmopolita. Esta era uma extensão lógica do seu modelo de modernidade reflexiva, na qual não somente a ciência havia perdido seu trono, mas também a esfera anteriormente demarcada da política nacional, dominada por parlamentos, governos soberanos e estados territoriais. O que a Europa testemunhou no começo da década de 1980 foi um duplo movimento que, por um lado, reduziu dramaticamente a intensidade do conflito político entre partidos na esfera parlamentar e, ao mesmo tempo, politizou domínios anteriormente não políticos, como relações de gênero, a vida familiar e o ambiente, esferas que Beck chamou de “subpolítica” ou “micropolítica”. Para Beck, isso não era motivo de lamento. O desafio era revigorar as subpolíticas em qualquer escala que elas operassem. Tal escala poderia ser intensamente local, como por exemplo, conflitos sobre projetos de estrada ou de pistas de aeroportos. Mas também poderia ser de escopo global. Ulrich Beck O sociólogo

A descoberta do SARS em 2003 na China foi, para Beck, uma demonstração de uma micropolítica global em ação. Novas redes de “atores de risco” lideradas por médicos, pesquisadores e especialistas em saúde pública independentes superaram os esforços iniciais do Estado chinês para manter tudo em segredo. Se o Partido Comunista Chinês (PCC) teve seu momento Chernobyl, foi esse. A política ambiental de baixo para cima[2] e o ativismo por justiça social foram, para Beck, o modelo para o novo modo de política. Mas pode-se pensar também sobre o esforço notável envolvido em estabilizar uma instituição como o Painel Intergovernamental de Mudança Climática enquanto autoridade global no mapeamento da emergência climática, envolvendo um esforço incansável e massivo de políticas científicas. Vez após vez, cientistas do clima ao redor do mundo, usando modelos diferentes, partindo de pressuposições distintas, pagos por governos com interesses opostos, lutaram para reconciliar suas diferenças e definir espaços razoáveis de concordância. A realidade desse tipo de ciência parece mais com o funcionamento de um sistema complexo de arbitragem legal do que com a imagem imaculada de uma bancada de laboratório.

Todavia, como Beck reconheceu, haviam também outras duas possibilidades. Uma delas era a possibilidade de uma política retro, no estilo de volta para o futuro. Uma política que visaria restaurar a certeza do desenvolvimento social e o domínio da política organizada e da razão científica que guiou a primeira modernidade. A “guerra ao terror” dos Estados Unidos foi uma tentativa nesse sentido, transformando um risco de segurança do século XXI em uma guerra convencional contra o regime de Saddam Hussein no Iraque. Foi um desastre. O exemplo de esforço mais bem sucedido de controlar a sociedade de risco dentro do enquadramento de uma modernidade industrial clássica é a China. A sua resposta à crise do COVID-19 pôs isso em plena exposição. O COVID-19 foi contido e o domínio do PCC assegurado através da mobilização galopante de disciplina societal, aplicação direcionada de gastos médicos e poder estatal, tudo revestido com o disfarce do que o regime chama de Marxismo do século XXI, uma narrativa autoconfiante de modernização e progresso. Não há espaço para questionar o épico moderno que é o sonho da China. A falta de uma atitude positiva é suficiente para gerar suspeita.

Outra resposta, bastante comum nos Estados Unidos de hoje em dia, é uma fuga do redemoinho vertiginoso de racionalidade auto-reflexiva em direção a novos tabus, superstição, rigidez e negação. Segundo Beck, essa resposta não deveria ser compreendida como um remanescente de costumes tradicionais, mas como uma nova superstição surgida em resposta a novas ameaças. Dada a incerteza crescente da sociedade de risco, não é nem um pouco surpreendente que alguns reajam dessa forma. Durante a resposta ao COVID-19, era fácil se ver dividido entre dois campos descritos por Beck em seu artigo sobre Chernobyl: “Alguns se recusam a sequer perceber os perigos, enquanto outros insistem vigorosamente em condenações indiscriminadas em nome da ‘auto-proteção’ ou da preservação da ‘vida nessa terra’”. Como decidir entre essas posições? A polarização de visões nos argumentos circulares da sociedade de risco poderia se estender facilmente para a própria ciência. Se, em uma versão falibilista honesta, “a ciência é somente um erro dissimulado em suspenso… então de onde se tira o direito de acreditar somente em alguns riscos?” Um ceticismo realista sobre a autoridade científica se misturou facilmente com uma ofuscação geral dos riscos. Como Beck admitiu em Sociedade de Risco, foi um “fio da navalha”, no qual debates sobre riscos invisíveis se transformaram em um “tipo de seção espírita moderna” na qual o indicador do tabuleiro de Ouija se movia de acordo com análises científicas e contracientíficas rivais.

“Quando o invisível for introduzido”, escreveu Beck, “não serão somente os espíritos dos poluentes que determinarão o pensamento e a vida das pessoas. Tudo isso pode ser disputado, pode polarizar, ou pode ser fundido. Emergem novas comunidades e comunidades alternativas, cujas visões de mundo, normas e certezas se agrupam em torno do centro de ameaças invisíveis.” Como não pensar em nossa luta contínua acerca das máscaras faciais?

E então há a negação. Fora de um cenário totalitário, um problema social tal qual uma luta trabalhista não pode ser facilmente resolvida por negação. Mas riscos percebidos “sempre podem ser atenuados[3] (desde que ainda não tenham ocorrido)”. Salvo o desastre propriamente dito, a ansiedade crescente pode ser aliviada, basta só afastar o perigo da consciência. O risco é uma questão de percepção; logo, ele começa “no conhecimento e nas normas, e pode então ser ampliado ou reduzido no conhecimento e nas normas, ou simplesmente deslocados da tela da consciência”. A consciência de riscos modernos não era uma via de mão única. Era de dois sentidos. “Épocas turbulentas e gerações podem ser sucedidas por outras para as quais o medo, domado por interpretações, é um elemento básico do pensamento e da experiência. Aqui, as ameaças são cativadas na gaiola cognitiva de sua sempre instável ‘não-existência’”. Gerações posteriores olhariam para trás e zombariam dos medos que outrora “tanto perturbavam os ‘velhos’”. Há um refrão comum na resposta ao COVID-19, visto notavelmente entre os populistas das Américas, seja nos Estados Unidos, no México ou no Brasil: A gente vai ter que se acostumar. Afinal de contas, vivemos com a gripe. Vai passar.

Como Beck avisou há mais de 30 anos atrás, podemos estar “no começo de um processo histórico de habituação. Pode ser que a próxima geração, ou a geração depois da próxima, não se incomode mais com imagens de defeitos congênitos, como aquelas dos peixes e pássaros cobertos de tumores que circulam agora ao redor do mundo, assim como não estamos mais incomodados hoje com valores violados, com a nova pobreza e um permanente alto nível de desemprego em massa”. A notícia da Casa Branca no verão de 2020 é que os estrategistas de Trump estão esperando ansiosamente pelo dia em que as notícias de dezenas de milhares de novos casos por dia não mais provoquem manchetes.

Beck era, no fundo, mais um sociólogo do que um teórico crítico ou um teórico político normativo. Ele não denunciou o desenvolvimento da negação ou da irracionalidade, mas o mapeou e explicou. Lidando com a sociedade de risco, é preciso considerar sua força motriz mais básica: a emoção poderosa que é o medo. A questão básica que colocava era a seguinte:

Como podemos lidar como medo, se não podemos superar as causas do medo? Como podemos viver no vulcão da civilização sem esquece-lo deliberadamente, mas também sem sufocarmos nos medos – e não só nas fumaças que o vulcão expele?

Em 2020, essa questão é ainda mais premente do que em 1986.

Beck não está mais conosco para nos ajudar com a resposta. Ele morreu repentinamente de um ataque do coração no dia de ano novo em 2015, enquanto caminhava da Universidade Ludwig Maximilian de Munique para casa.

Sociedade de Risco tornou-o uma das figuras emblemáticas das ciências sociais europeias de seu tempo. O livro foi traduzido para 35 idiomas. Há nada menos do que 8.000 artigos se referindo à obra de Beck em periódicos acadêmicos chineses. Surpreendentemente, Sociedade de Risco só apareceu na língua inglesa em 1992 e, se comparado a sua reputação na Europa e na Ásia, o impacto de Beck na cena acadêmica nos Estados Unidos foi pequeno. Para o mainstream das ciências sociais estadunidenses, faltava-lhe rigor. Começando na década de 1980, a economia comportamental e as ciências sociais experimentais ganharam cada vez mais destaque na explicação da maneira como as pessoas formam julgamentos na incerteza. Para empreendedores intelectuais da esquerda estadunidense, que estão no mercado em busca de importações continentais exóticas, Beck não era radical o suficiente. Eles preferiam suas teorias em francês. Em termos políticos, Beck, assim como seu amigo e colaborador Anthony Giddens, estavam associados, durante as décadas de 1990 e 2000, com o Primeiro Ministro Britânico da Terceira Via, Tony Blair, e com a coalizão verde-vermelha na Alemanha.

Mas a recepção tímida de Beck nos Estados Unidos não se explica somente em termos de política acadêmica. É preciso também se perguntar se o alcance da imagem da condição cultural contemporânea se estendia através do Atlântico. O próprio Beck se inspirou nas políticas ambientais estadunidenses das décadas de 1960 e 1970, que lideraram o mundo no direcionamento da pesquisa científica para propósitos críticos. O híbrido de tecnologia e religião New Age do Vale do Silício poderia ser mencionado como uma instância clássica da segunda modernidade de Beck – magos da tecnologia imensamente ricos sem medo de buscar esclarecimento onde quer que possam encontra-lo, seja na yoga, em dietas mirabolantes ou em idas xamânicas ao festival Burning Man. Mas a política nacional dos Estados Unidos compunha um cenário bem diferente. Como entender um sistema político agitado por discussões sobre a interpretação de uma constituição do século XVIII, os méritos de ensinar a versão bíblica da criação e a veracidade da ciência climática? Havia bastante oposição às políticas climáticas na Europa vinda de empresas de combustíveis fósseis interessadas em si mesmas, mas poucas vozes no mainstream questionando o consenso científico estabelecido laboriosamente. E nos Estados Unidos, tudo isso veio disfarçado em um nacionalismo quase-teológico, incorporado no modo de vida sacrossanto do país.

Nos Estados Unidos de 2020, diante da confluência da religião evangélica, a presidência de Trump e teorias de conspiração como a QAnon, é tentador concluir que o anúncio de Beck sobre a vinda da segunda modernidade foi prematuro. É tentador reunir as tropas liberais e anunciar que, nos Estados Unidos de hoje, não são as lutas da modernidade reflexiva – a auto-geração de incerteza e risco – que precisam ser lutadas, mas sim as batalhas da primeira modernidade, contra a superstição, o atavismo e o obscurantismo.

Essa perspectiva pode ser atraente. Porém, ela ignora o fato óbvio de que o vortex de tele-evangelismo, a presidência de reality show e memes virais da internet são produtos de nosso capitalismo de alta tecnologia, inimagináveis em uma era anterior. Responde-los com um recuo ao racionalismo é entrar no que o sociólogo britânico Will Davies chamou recentemente de “Iluminismo kitsch.” O que estamos vivendo é realmente a segunda modernidade de Beck, porém, em uma versão mais conflituosa e catastrófica do que ele jamais imaginou. Daí, talvez, o atrativo do cenário de Chernobyl. Quão agradável é imaginar que nossos problemas são aqueles do regime soviético tardio e que o que precisamos é simplesmente uma dose de liberdade e perestroika, quando o caminho real do progresso é mais ambíguo e mais abrangente, porque implica o país como um todo.

Se eram poucos os leitores de Beck nos Estados Unidos, o mesmo não era verdade na Ásia Oriental, onde desde a década de 1980, o sociólogo alemão cultivou seguidores devotos. Beck foi, notavelmente, atraente para cientistas sociais coreanos dedicados a crítica de seu modelo nacional de modernidade autoritária. Para Beck, o entusiasmo com o qual seu conceito de segunda modernidade foi adaptado para cientistas sociais asiáticos era prova viva do dinamismo e abertura da realidade que ele tentava descrever. Nessas colaborações, foi posto em movimento um processo que provincializou conceitos e a história europeia sem condena-los a irrelevância. Japão, Coréia do Sul e China passavam por uma revolução industrial mais rápida do que qualquer coisa experimentada no Ocidente. Eles eram grandes laboratórios do Antropoceno e da apropriação desmedida da natureza.

Em julho de 2014, Beck visitou Seul e discorreu sobre as implicações de seu modelo da sociedade de risco para pensar sobre crises como o acidente nuclear em Fukushima em 2011, a tragédia do naufrágio de Sewol na Coréia em 2014 e a praga da poluição aérea na China. Beck estava particularmente interessado em sugerir caminhos possíveis para a Ásia Oriental superar criativamente o legado amargo da história do século XX, se não no nível da política nacional, então através da subpolítica da cooperação entre megacidades da região que estavam a emergir rapidamente como centros globais. A administração progressiva da cidade de Seul inaugurou um laboratório urbano para incorporar as ideias de Beck em seu planejamento urbano. Chocados pela sua morte repentina na primavera de 2015, seus colaboradores sul-coreanos realizaram um culto budista comemorativo no qual o prefeito de Seul, na época um dos líderes da oposição coreana, fez a oração fúnebre.

Sem dúvida, Beck apreciaria o gesto sincrético. Cinco anos depois, ele estaria ainda mais feliz vendo o mundo todo aprendendo a lidar com a crise do COVID-19 com um governo sul-coreano progressista. Diante da oposição amarga de grupos de interesse médicos, o governo da Coréia do Sul mobilizou efetivamente coalisões de empresas e cientistas para entregar testagens e mapeamentos rápidos e efetivos. Em vez de se apoiar em clichês sobre conformidade confuciana à normas coletivas, eles buscam construir confiança através de transparência e entrega eficaz. Além de conter a epidemia, o governo do Partido Democrático realizou uma eleição nacional no meio da crise e ganhou por muito. O país oferece um exemplo, no que resta dessa pandemia, de como acertar na sociedade de risco.

Adam Tooze é professor de história e diretor do Instituto Europeu da Universidade de Columbia. Seu último livro é Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, e ele está atualmente trabalhando na história da crise climática.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...