Pânicos sexuais continuam acontecendo porque eles exploram os medos mais profundos dos americanos sobre a necessidade de proteger inocentes da ameaça do mal - medos que são endêmicos tanto na esquerda quanto na direita. Enquanto isso, vidas são destruídas no processo.
Uma entrevista com
JoAnn Wypijewski
Em 1977, Anita Bryant convenceu os eleitores a revogar um decreto do condado da Flórida que protegia gays e lésbicas da discriminação com sua campanha Save Our Children. |
Tradução / O pânico sexual continua presente porque atinge os medos mais profundos da população no que diz respeito à necessidade de proteger inocentes da ameaça do mal – medos estes, que são endêmicos tanto para a esquerda quanto para a direita. Enquanto isso, vidas vem sendo destruídas neste processo.
O novo livro de JoAnn Wypijewski, O que não falamos quando falamos sobre #MeToo: Ensaios sobre sexo, autoridade e a bagunça da vida, é uma coleção de seus escritos ao longo de várias décadas sobre sexo, classe e libertação – e o que nós todos perdemos quando nos rendemos ao pânico moral. No livro, ela explora e complexifica narrativas em torno da AIDS, os escândalos em torno de “padres pedófilos” que atormentam a Igreja Católica, o movimento #MeToo e muitos outros.
Liza Featherstone
O novo livro de JoAnn Wypijewski, O que não falamos quando falamos sobre #MeToo: Ensaios sobre sexo, autoridade e a bagunça da vida, é uma coleção de seus escritos ao longo de várias décadas sobre sexo, classe e libertação – e o que nós todos perdemos quando nos rendemos ao pânico moral. No livro, ela explora e complexifica narrativas em torno da AIDS, os escândalos em torno de “padres pedófilos” que atormentam a Igreja Católica, o movimento #MeToo e muitos outros.
Liza Featherstone
O que é um pânico sexual?
JoAnn Wypijewski
É uma erupção social alimentada pela mídia e caracterizada por alarmar sobre alguma forma de inocência em perigo. Essa inocência, histórica e estereotipada, pertence a mulheres e crianças brancas. O pânico sexual sempre envolve alguma forma de mau ator. Normalmente, o homem mau, o predador, é uma presença social mutável, à espreita, uma ameaça contra a qual a população pode ser mobilizada. O antropólogo Roger Lancaster chama isso de “solidariedade envenenada”. Você pode analisar historicamente, por exemplo, o filme Birth of a Nation. Você pode voltar no tempo e ver o pânico da branquitude frente ao escravizados nos anos 1880. Ou, em um período mais moderno, a década de 1950, onde o Red Scare era uma forma de pânico moral, que ocorria na mesma época do "Lavender Panic".
"Superpredadores", escândalos sexuais envolvendo padres, o pânico do demônio – todos este já ganharam ou continuam ganhando uma incrível parcela de tempo e atenção da mídia, focando na repetição de uma mesma história que não pode ser questionada.
Contra o “homem mau” tudo pode ser feito. E aqueles que o fazem podem sentir uma tremenda sensação de vingança e validação social em seus atos. Isso resultou em algo muito prático: ajudou a construir o estado prisional. De acordo com um livro fantástico chamado The War on Sex [A Guerra contra o Sexo em tradução livre], os crimes sexuais são a causa de crescimento mais rápido de pessoas presas. Como socialistas, devemos nos preocupar com isso. Mas isso também ajudou a desenvolver culturalmente a ideia de que contra algumas certas pessoas, todo e qualquer ato se torna justificado.
Liza Featherstone
Contra o “homem mau” tudo pode ser feito. E aqueles que o fazem podem sentir uma tremenda sensação de vingança e validação social em seus atos. Isso resultou em algo muito prático: ajudou a construir o estado prisional. De acordo com um livro fantástico chamado The War on Sex [A Guerra contra o Sexo em tradução livre], os crimes sexuais são a causa de crescimento mais rápido de pessoas presas. Como socialistas, devemos nos preocupar com isso. Mas isso também ajudou a desenvolver culturalmente a ideia de que contra algumas certas pessoas, todo e qualquer ato se torna justificado.
Liza Featherstone
Falemos de um destes casos. Conte para nós um pouco mais sobre Nushawn Williams.
JoAnn Wypijewski
Nushawn Williams era um jovem do Brooklyn nos anos 1990 que era um traficante de drogas de pequeno porte, envolvido em várias atividades criminosas que, assim como vários outros jovens na época, foi ao interior do Estado vender drogas em busca do que, provavelmente, seria um vida melhor. Ele foi para a cidade de Jamestown, cerca de 120 quilômetros a sudeste de Buffalo, onde eu cresci. Ele era muito popular entre as mulheres e muito bem-sucedido como empresário. Ele foi preso em um determinado momento, testado com HIV, e disseram-lhe que ele era HIV positivo.
Seja por não ter acreditado ou por estar em negação – não sabemos – ele continuou a fazer sexo com mulheres jovens. Várias delas tornaram-se soropositivas e o Estado fez algo que nunca tinha feito antes. Pegou sua foto e colocou em um pôster que dizia: “Ameaça à saúde pública, advertência, perigo. Se você fez sexo com este homem, venha imediatamente fazer um teste.” Neste pôster, ainda constava que todas aquelas que fossem em busca do teste, teriam sua identidade totalmente resguardada. Claro, eles tinham acabado de quebrar a confidencialidade dele! Mas o fato é que Williams fez tudo o que o Estado queria. Quando soube que era HIV positivo, perguntaram-lhe: “Com quem você fez sexo?”. E ele falou todos os nomes.
Liza Featherstone
Há uma ressonância contemporânea aqui. Como estamos redescobrindo agora com a COVID-19, o rastreamento de contatos é difícil porque as pessoas muitas vezes não cooperam com as autoridades da mesma forma com que ele o fez. Nushawn Williams foi uma cobaia modelo neste processo.
JoAnn Wypijewski
Ele foi uma cobaia modelo! Este caso foi um grande alerta no caminho para a criminalização do HIV, um alarme estridente: “Há um predador com HIV entre vocês”. Ele foi capa de todos os tabloides, no New York Times, passou na CNN e foi manchete na imprensa mundial. E todas as histórias eram iguais. Ele era um “sedutor letal”. Ele era o próprio diabo. Ele era um monstro, um demônio, ele era um predador com HIV positivo, e isso era dito a todo instante. Diversas jovens foram entrevistadas. Elas disseram uma série de coisas que se resumiam a: “Eu pensei que estava apaixonada. Ele me deu presentes. Achei que ele estaria por perto. Estou tão triste e de coração partido agora.” E essa era a história, exceto por uma mulher que disse: “Não sei, não vou participar disso. Eu o amei uma vez. Eu não vou demonizá-lo.” Esta mulher tinha 18 anos. Eu pensei: “É ela. É com ela que eu quero falar”. E eu a conheci na prisão. Ela estava na prisão por quebrar a liberdade condicional. E então conheci outras pessoas que estiveram com ele ou que coabitavam o mesmo mundo que ele, e explorei isso.
A cidade inteira estava repentinamente abraçando jovens pelas quais nunca tiveram nenhum interesse. Elas eram o “lixo”. Quer dizer, eu não as chamaria assim, mas é assim que elas sempre haviam sido vistas. Mas, de repente, elas eram a flor de Jamestown. De repente, elas eram garotas inocentes que foram contaminadas por esse monstro horrível, esse animal, esse predador. E, de repente, elas foram humanizadas. Elas foram humanizadas apenas enquanto vítimas.
Algumas não tinham como saber com certeza [que pegaram o vírus de Williams]. E as autoridades estavam completamente desinteressadas em saber como ele mesmo teria contraído o vírus.
Sempre penso em cada história que faço como uma história sobre classe. Essa é a minha experiência, meu histórico. Antes de começar a escrever sobre sexo, escrevia principalmente sobre trabalho, classe, sindicatos e política sindical, mas sempre me interessei pelas pessoas envolvidas e suas particularidades. Não pude falar com Williams. [Seus advogados se recusaram a liberá-lo para conceder entrevistas.] Mas eu estava interessada no mundo das mulheres e no mundo da cidade. Depois que essa história apareceu, as pessoas em Jamestown ficaram chateadas. Eles disseram: “Você fez parecer que a cidade inteira é terrível”.
Liza Featherstone
Bem, você realmente fez com que Jamestown soasse como um lugar deprimente, mas você também deixa bem claro que não era mais deprimente do que muitas outras cidades americanas.
JoAnn Wypijewski
O cara que se tornou prefeito, Sam Teresi – antes disso, ele era o diretor de desenvolvimento – falou bem diretamente sobre o que a desindustrialização fez ao país. Isso foi em meados dos anos 90, mas embora as pessoas tendem a ver a desindustrialização como um efeito do NAFTA, naquela parte do Estado de Nova York e na cidade de Nova York, tudo começou muito antes, no final dos anos 60. Então, no final dos anos 70, tudo começa a fechar. Assim, em Buffalo, a cidade onde cresci, onde meu tio trabalhava na usina siderúrgica e meu pai em uma fábrica de ferramentas – para a empresa que inventou o limpador de pára-brisa – todos nós fomos afetados. A catástrofe atingiu todos os condados e essas cidades. Teresi estava dizendo, mesmo com os melhores planos que temos aqui para Jamestown, tentando fazer algo acontecer, que ninguém vai fazer um oásis no deserto da América desindustrializada.
Acho isso muito pesado e acho que as pessoas deveriam ter prestado atenção a essa parte: por que é que todos esses caras estavam envolvidos no crime [como traficantes de drogas]? Certamente não havia outros caminhos para acessar bons salários. E as jovens mulheres, se não estivessem no negócio (das drogas ou do sexo), estariam trabalhando em uma fábrica de parafusos ganhando US$ 6 a hora, e essa é a realidade. E assim, sexo naquele contexto, e sexo com Nushawn Williams naquele contexto, não era nem de longe o pior negócio a se fazer. Na verdade, ele talvez representasse o melhor negócio. E é isso que deve levantar questões para todos nós.
Como em toda história, isso também deve nos ajudar a reconhecer a humanidade de cada um(a) destes diferentes atores. Isso é o que tentei fazer. Toda a minha carreira é baseada em olhar, mesmo para as pessoas que fizeram a pior coisa, e tentar vê-las não como monstros, não como demônios, mas produtos de uma cultura, de uma sociedade. Eles já foram um bebezinho pequenininho nos braços de alguma mãe, e algo os levou a algum ponto onde, digamos… a matar Matthew Shepard em uma cerca, ou a fazer algo hediondo aos prisioneiros em Abu Ghraib. As figuras do livro existem no tempo histórico e no tempo social, cultural e econômico em que habitam. Suas escolhas são confinadas neste mesmo espectro, da mesma forma, onde todas as nossas escolhas são confinadas.
Não havia nenhuma maneira de alguém como um Nushawn Williams obter um tratamento justo nesta situação, uma vez que ele foi declarado um monstro. Ele foi declarado inimigo público. Ele foi declarado criminoso e teve que ser preso, e o Estado não tinha leis específicas que criminalizassem o HIV, mas encontrou outros meios. Ele foi condenado por fazer sexo com duas mulheres menores de idade (estupro legal) e cumpriu 12 anos de prisão.
Quando ele saiu, o Estado decidiu que iria abrir um processo civil contra ele, para prendê-lo por tempo indefinido declarando-o como uma pessoa “sexualmente perigosa”. Daí, seguiu-se um julgamento de fachada para comprovar isso, o que ocorre o tempo todo em todo o país. Ele foi realmente considerado uma pessoa sexualmente perigosa, não pelo que ele fez especificamente, mas pelo que ele poderia vir a fazer. E, assim, ele se juntou a cerca de 6 mil outras pessoas que estão confinadas em instituições psiquiátricas, detidas por tempo indeterminado, sem esperança de sair, supostamente para permanecerem “em tratamento”.
Acho que precisamos olhar para os mecanismos sociais que organizam o consentimento para a punição. O que sempre me perturba é que essa abordagem extática, apavorante e moralizante também é adotada pela esquerda, por pessoas que podem evitar, por exemplo, as reportagens do Times sobre terrorismo.
Liza Featherstone
Sim, e quanto as "exceções quanto a sexo" na esquerda? Parece especialmente chocante agora, quando idéias como a abolição das prisões e da polícia têm tanta força, e a justiça restaurativa é um conceito dominante... Estas idéias parecem encontrar ressonância como sendo certas em casos como, por exemplo, quando alguém é acusado de assassinato, mas mesmo as pessoas de esquerda ainda exigem o sangue de qualquer pessoa acusada de violação sexual.
JoAnn Wypijewski
Se levamos a cultura a sério, bem como seu poder formativo, então teríamos que olhar para a cultura dominante que é o caldeirão da danificada vida atual. Temos que levar isso a sério, porque é isto que forma o que James Baldwin chamou de “hábitos de pensamento” que reforçam e sustentam os hábitos de poder. Quer dizer, em direção ao autoritarismo.
Como nós resistimos a estes hábitos de pensamento significa, de alguma forma, como nos separamos – ou tentamos nos separar – deles. Esse é o trabalho de uma vida inteira, porque o poder de propagandização da cultura é algo ininterrupto e sem fim.
Colaboradores
JoAnn Wypijewski é jornalista e autora do livro "What We Don’t Talk About When We Talk About #MeToo: Essays on Sex, Authority and the Mess of Life".
Liza Featherstone é colunista da Jacobin, jornalista freelancer e autora de "Selling Women Short: The Landmark Battle for Workers’ Rights at Wal-Mart"
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