17 de agosto de 2020

Ajustamento com desenvolvimento

Austeridade fiscal drástica pode frear recuperação da economia e do emprego

Paulo Nogueira Batista Jr.

Folha de S.Paulo

O economista Paulo Nogueira Batista Jr. (Mathilde Missioneiro/Folhapress)

Uma coisa nunca deixa de me espantar, leitor: a falta de lógica dos economistas. Não estou falando de nenhuma lógica sofisticada. Ainda não fomos apresentados sequer a Aristóteles!

Em 2018 e 2019, muitos economistas proclamavam que o Estado estava falido, ou prestes a falir. Estranhamente, até Paulo Guedes, já na condição de ministro da Economia, alardeava a tese. A solução, dizia-se, era privatizar e implementar uma série de reformas.

Na época, o déficit total do setor público andava por volta de 6% a 7% do PIB, e a dívida bruta, em torno de 75% do PIB. Em 2020, com a pandemia de Covid-19 e a recessão, o déficit pode subir para 16%, e a dívida bruta para cerca de 95% do PIB, segundo projeções oficiais.

Se o Estado estava falido antes, imagine agora, leitor. Deveríamos estar experimentando um ou mais dos seguintes fenômenos: interrupção do pagamento da dívida pública, alta acentuada das taxas de juro ou inflação descontrolada. Mas a dívida continua sendo refinanciada, ainda que em condições menos favoráveis de prazo. O juro básico nunca esteve tão baixo. A inflação, idem.

À moda de Ptolomeu, arautos da falência estatal adaptaram o discurso, introduzindo epiciclos. Agora, é a partir de 2021 que o Estado quebra mesmo —se não privatizarmos rapidamente e não fizermos reformas urgentes, aplicando cortes drásticos de gasto. A mesma ladainha, deslocada no tempo.

A realidade é que o Estado central brasileiro não estava falido antes e não está agora. O diagnóstico da falência estatal sofre de equívocos conceituais e empíricos. Entre eles: 1) a ideia de que existem limites facilmente identificáveis para a relação dívida/PIB e a emissão primária de moeda; 2) o foco na dívida bruta, e não na dívida líquida do setor público, que é muito menor; e 3) não levar na devida conta de que a dívida pública é interna e está sobretudo na mão de residentes.

Isso não significa, claro, que o problema possa ser desconsiderado. Como fazê-lo com os números de 2020? É essencial, entretanto, afastar soluções falsas ou perigosas.

Por exemplo, não se deve tentar rápido ajustamento das contas públicas a partir de 2021. Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica, em entrevista recente à Folha, prometeu uma recuperação em "V", se o Congresso aprovar as reformas, e insistiu na ideia de uma contração fiscal expansionista (abrupta redução do gasto, que abriria espaço para o aumento do investimento privado) —oxímoro que não é intrinsecamente absurdo, mas se mostra altamente improvável na prática. O mais provável é que austeridade fiscal drástica dificulte muito a indispensável recuperação da economia e do emprego.

O que fazer? A situação das contas requer cuidados, mas é melhor espaçar o ajustamento do déficit ao longo de vários anos, adotando de preferência uma regra fiscal mais racional ou reformulando as atuais (em especial o teto constitucional de gasto). Se essa trajetória gradual for crível, o Estado poderia continuar tirando partido de circunstâncias favoráveis, notadamente os baixos juros internos, que aliviam o custo da dívida. O ajustamento gradual não impediria o Estado de promover o crescimento econômico, com as devidas precauções, lançando mão dos bancos públicos, mantendo câmbio depreciado e juros baixos, e usando a própria política fiscal para alavancar o crescimento. O crescimento da economia facilitaria o ajustamento ao elevar a base de arrecadação e diminuir gastos como o seguro-desemprego. Com o crescimento do PIB superando a taxa média de juros incidente sobre a dívida, o ajustamento gradativo do déficit primário permitiria estabilizar a razão dívida/PIB no médio prazo.

Em síntese: precisamos de um ajustamento com desenvolvimento, que combine crescimento econômico com controle das contas públicas. Isso inclui retomar o investimento governamental e manter transferências elevadas a setores de baixa renda, com alta propensão a consumir. E aplicar severa disciplina sobre despesas não essenciais, revendo inclusive os gastos tributários (as renúncias fiscais). Havendo necessidade de aumentar impostos —e provavelmente haverá—, cabe fazê-lo sobre os super-ricos que pagam pouco e têm baixa propensão a gastar —adotando ao mesmo tempo, se preciso, medidas fiscais e regulatórias para coibir fuga de capitais para o exterior.

Falta, porém, um pequeno detalhe: governo.

Sobre o autor

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai), ex-diretor-executivo no FMI em Washington e autor de "O Brasil não cabe no quintal de ninguém" (editora LeYa)

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