10 de agosto de 2020

Bacurau é o filme mais imperdível desde Parasita

Filmes sobre classes sociais e desigualdade entraram no mainstream global recentemente e estão ganhando prêmios importantes. O inclassificável e eletrizante filme brasileiro, Bacurau, é o mais recente deles. Você tem que assisti-lo.

Eileen Jones


Still de Bacurau (2019).

Tradução / É um evento raro quando você pode correr para todos os seus amigos socialistas e incentivá-los a assistir a um filme empolgante que agrada ao público. Devemos encarar o fato de que, geralmente, os esquerdistas recomendam documentários solenes e informativos uns aos outros, ou biografias sombrias de pessoas que se destacaram na história porque, em algum momento, tiveram consciência social e fizeram algo a respeito - e provavelmente pagaram um preço alto. E, claro, sempre há dramas indie sombrios sobre opressão, além dos filmes de Ken Loach. Nossos filmes que nos deixam mal geralmente ficam escanteados da mídia internacional.

Mas agora temos Bacurau.

Você já deve ter ouvido sobre este filme brasileiro inclassificável que está dando o que falar. É uma exclente aquisição do Kino Marquee, o serviço de streaming de vídeo sob demanda do distribuidor independente Kino Lorber. Mas se você não ouviu nada sobre o filme, melhor ainda. Ajuda entrar em Bacurau sabendo o mínimo possível, para que o deleite do contrariamento das expectativas possam funcionar ao máximo.

Eu gostaria de respeitar a regra "sem spoilers" o máximo que puder ao descrever o filme, embora, neste caso, qualquer descrição arrisque um spoiler porque há tantas mudanças de narrativa engenhosas desde o início. Vou apenas dar isso - Bacurau termina em um banho de sangue espetacular de violência necessária, e você vai adorar cada gota derramada.

Bacurau é o nome do filme e da vila fictícia e empobrecida do sertão do Nordeste brasileiro onde ele se passa. Se você conhece a história do cinema deste país pode se lembrar do Cinema Novo assistindo às primeiras cenas empoeiradas e realistas da vida da comunidade com um elenco vívido de personagens memoráveis ​​interpretados por um conjunto de atores profissionais e não profissionais locais.

O Cinema Novo foi um movimento brasileiro da década de 1960 que assumiu como parte de seu projeto o exame da opressão racial e de classe, muitas vezes em remotas subculturas regionais do vasto país, e frequentemente incluindo elementos fantásticos extraídos das histórias folclóricas dessas regiões. Em fases posteriores do movimento, que incluíam tentativas de tornar o Cinema Novo mais popular, ele abraçou o chamado “Tropicalismo” na forma de cores berrantes, mau gosto e o tema sangrento de canibalizar inimigos estrangeiros, com base em clichês de filmes B e pornochanchadas (comédias sexuais do final dos anos 1960-70).

Mas enquanto o movimento politicamente revolucionário do Cinema Novo rejeitou e subverteu as convenções do cinema influenciadas por Hollywood, que há muito eram dominantes no Brasil, Bacurau as recupera e as celebra em uma tentativa de obter popularidade internacional. Com a estranha inclusão de clichês de faroeste, ficção científica, terror e filmes de ação, mal sabemos onde procurar para encontrar as fontes das várias ameaças possíveis à comunidade do interios.

A principal ameaça é a morte da matriarca idosa da aldeia no início do filme, indicando uma tremenda perda de poder da comunidade que é um mau presságio? O poder da matriarca era baseado em uma liderança forte ou magia folclórica ou crime regional representado pela presença do gangster local Pacote (Thomas Aquino), que agora se chama Acácio em uma tentativa de reforma? Por que a formidável médico da aldeia Domingas (interpretado pela lendária estrela brasileira Sônia Braga) denuncia a matriarca em seu funeral?

A principal ameaça é a morte da velha matriarca da comunidade no início do filme, indicando uma tremenda perda de poder da comunidade como um mau presságio? O poder da matriarca era baseado em uma forte liderança ou magia folclórica ou na criminalidade regional representado pela presença do gangster local Pacote (Thomas Aquino), que passou a denominar Acácio em uma tentativa de mudar de vida? Por que a formidável médica da aldeia Domingas (interpretada pela lendária estrela brasileira Sônia Braga) denuncia a matriarca em seu funeral?

Além disso, o que dizer do caminhão cheio de caixões tombado na estrada após um acidente de trânsito que Teresa (Bárbara Colen), voltando para a cidade para o funeral da matriarca, passa a caminho de casa, em um aceno sinistro para o a cidade produtora de caixões e corpos mortos como no famoso western spaghetti de Sergio Leone, A Fistful of Dollars?

Quem atirou no caminhão de distribuição de água a caminho da cidade, em um momento de crise quando a comunidade teve seu abastecimento de água cortado, possivelmente pelo prefeito rechonchudo Tony Jr. (Thardelly Lima), que pode estar envolvimento em corrupção local nos níveis de Chinatown de ou ainda mais abrangente? O que são as pílulas que os membros da comunidade continuam tomando? E um disco voador de verdade foi realmente avistado por um fazendeiro local quando ia com sua motocicleta para a cidade?

Acima de tudo, por que a comunidade está desaparecendo repentinamente dos mapas de satélite, e como isso se relaciona com os turistas brasileiros, americanos, europeus e australianos vistos na área? A presença de um alemão ameaçador interpretado por Udo Kier não pode ser boa.

Influência cinematográfica

O roteirista e diretor de Bacurau Kleber Mendonça Filho, que trabalhou pela primeira vez com o codiretor Juliano Dornelles, conquistou um rico sentido de lugar, algo que perseguiu em seus três filmes, seja um bairro (O Som ao Redor, 2012), uma edifício em uma comunidade litorânea (Aquarius, 2016), ou uma vila como em Bacurau.

Neste filme, ele se concentra em um lugar que está sob a ameaça de uma combinação de forças que também contribuíram para sua criação - geografia atravessada pelo colonialismo, exploração econômica, corrupção política e divisões raciais. Mendonça fez seus dois primeiros filmes em sua cidade natal, Recife, e Bacurau, em sua região natal, o Nordeste do Brasil.

A localização é significativa para ambos os diretores, porque seu povo é formado por proletários rurais e figuras de cidades pequenas que ganham a vida alugando-se à classe alta urbana. Como disse Dornelles: “O Nordeste é de onde vêm as empregadas domésticas de São Paulo e de onde Kleber e eu somos. Queríamos uma aventura onde fossemos os heróis.”

A dura crítica política manifestada no filme levou à crença de que Mendonça e Dornelles o projetaram como um ataque direto ao presidente de direita Jair Bolsonaro, mas Bacurau foi escrito e filmado antes de Bolsonaro chegar ao poder. Mendonça e Dornelles são esquerdistas declarados - assim como a atriz Sônia Braga, que estrelou Aquário de Mendonça e Bacurau - e foram ativos no apoio à antecessora de Bolsonaro, Dilma Rousseff, que foi tirada do cargo em 2016 no que Mendonça chama de “golpe suave”, e antes dela, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na estreia de Aquarius em Cannes, eles fizeram um protesto no tapete vermelho, com cartazes dizendo “Pare o golpe no Brasil” e “O Brasil não é mais uma democracia”.

Ressalte-se que a hostilidade do governo Bolsonaro à indústria cinematográfica brasileira em geral tem assumido formas destrutivas que, segundo Mendonça, chegam ao nível da “sabotagem”.

Em julho passado, o presidente acusou a agência nacional de cinema ANCINE - normalmente a fonte inicial de investimento dos filmes brasileiros - de fazer “pornografia”, ameaçando-a de privatização, a menos que aplicasse um “filtro de conteúdo”. Ainda assim, por trás do bombástico está uma política mais silenciosa de orçamentos reduzidos..., particularmente hostil aos projetos LGBT - quatro dramas de TV específicos tiveram o financiamento retirado - e uma burocracia sufocante. Sob um conselho de quatro membros no qual três cadeiras estão vagas, o financiamento do cinema estagnou quase totalmente. Estima-se que até 4.000 filmes em vários estágios de desenvolvimento estejam no limbo.

E Mendonça também está sob ataque direto. Em maio, após seu triunfo no Festival de Cannes - Bacarau ganhou o importante Prêmio do Júri - o governo brasileiro exigiu que Mendonça devolvesse os cerca de US $ 500 mil que previa para seu filme de estreia O Som ao Redor, alegando que ele havia ultrapassado o orçamento.

A indústria cinematográfica brasileira está em crise e até o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro perdeu o apoio do governo. O futuro da indústria está agora em questão. “Filmes prestes a serem rodados foram cancelados”, diz Mendonça. "Isso foi feito com alegria."

Parece mais do que provável que Mendonça em breve buscará apoio financeiro da comunidade cinematográfica internacional. Isso parece adequado, dada sua perspectiva cinematográfica global. Em entrevista recente, por exemplo, Mendonça falou sobre o parentesco entre Bacurau e o Parasita do diretor coreano Bong Joon Ho.

Isso não é apenas por causa das representações implacáveis ​​de seus filmes da guerra de classes, que eclipsa as fronteiras nacionais - como Bong expressa, "Todos nós vivemos no mesmo país... capitalismo." Em vez disso, Mendonça se refere às suas influências cinematográficas compartilhadas. Os dois diretores cresceram ao mesmo tempo e viram os mesmos grandes filmes de gênero dos anos 1970 e início dos anos 80, feitos por autores como John Carpenter, George Miller, David Cronenberg e Steven Spielberg (antes de se arruinar).

Como disse Mendonça: “Quando vi Parasita, foi como se Bong estivesse falando a mesma língua que eu. Na verdade, sinto que Bacurau e Parasita são primos.” Se isso não fizer com que você assista a Bacarau, nada mais do que eu possa dizer fará.

Sobre a autora

Eileen Jones é crítica de cinema da Jacobin e autora de Filmsuck, USA. Ela também comanda um podcast chamado Filmsuck.

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