Para cientista político, Elena Landau e coautores usam retórica anacrônica e vaga sobre o liberalismo
Jorge Chaloub
Folha de S.Paulo
Elena Landau, Fernando Schüler, Leandro Piquet Carneiro e Samuel Pessôa publicaram na Ilustríssima, em 1º de agosto, resposta ao ensaio de professores da USP sobre a atualização de certa tradição fascista brasileira no bolsonarismo.
Com o título “Desafios de uma sociedade aberta”, o artigo requenta uma série de chavões conhecidos sobre liberalismo, fascismo e comunismo, que pouco contribuem para o debate sobre ideologias políticas. Ele interessa, todavia, por ser representativo de certo discurso influente em nossa conjuntura.
Façamos uma brevíssima análise do seu uso do conceito de liberalismo. Os autores acusam os adversários de anacronismo, mas curiosamente constroem um conceito completamente anacrônico de liberalismo, a partir de uma definição que ignora suas transformações e o toma como sinônimo de democracia e liberdade.
Nesse discurso, o liberalismo é necessariamente virtuoso e seus eventuais limites sempre decorrem de uma "ausência" ou realização parcial. O mundo, ademais, seria ainda mais sombrio e autoritário caso os liberais, verdadeiros defensores da liberdade, não tivessem insistido em suas condutas, que soam como erros apenas para os que ignoram elementos centrais da realidade.
Não faltam bons exemplos de antecedentes desse mesmo padrão narrativo. Um clássico exercício de “retórica da ameaça”, tão bem esmiuçado por Albert Hirschman em "A Retórica da Intransigência", é a defesa dos discursos e ações liberais prévios à crise de 1929 em “Uma História Monetária dos Estados Unidos”, de Milton Friedman e Anna Schwartz. Neste livro, o economista responsabiliza as ações do Federal Reserve Bank pela Grande Depressão, em uma narrativa que ignora fortes evidências historiográficas em sentido contrário, a partir de uma definição normativa do que é a ordem liberal.
Se qualquer tradição intelectual só vier a produzir efeitos em sua forma pura, nunca poderemos avaliar o lugar das ideologias e ideias no mundo, pois a propria existência já viola a pureza dos manuais.
Paulo Guedes, atual ministro da Economia, é fervoroso entusiasta da narrativa de Friedman, que, segundo ele, demonstrou que “uma trágica atuação do Fed, o banco central americano, e não uma falha sistêmica das economias de mercado” foi a grande razão da crise .
A tentativa de definir a tradição liberal ou estabelecer um cânone também é imprecisa, vaga e anacrônica no texto. Ante a profunda influência do pensamento liberal nos últimos séculos e sua ampla variedade interna, as menções amplas ao conceito de liberalismo, sem qualquer adjetivo ou explicação mais precisa, pouco contribuem. Uma lista de autores que vai de Hayek a Rawls, claros adversários no debate público e na politica norte-americana, quer dizer pouco ou quase nada.
Como já dito, o debate sobre o liberalismo realizado pelo artigo não apenas tem pouco de novo, mas não faz jus ao produzido recentemente sobre o tema. O que mais interessa no texto, entretanto, é sua avaliação da conjuntura. Além do fato de que alguns dos autores atuam com frequência como intelectuais públicos, com colunas semanais em jornais de grande circulação, sua opinião merece ainda maior destaque por seus cargos em governos anteriores e vínculos com o grande empresariado.
Uma das teses fundamentais do texto em relação à conjuntura é a legitimidade de Bolsonaro como ator e portador de ideias toleráveis em uma ordem democrática. Contrários ao pluralismo liberal-democrático seriam os seus adversários: "A vitória do capitão reformado é fruto da emergência de novas forças políticas na sociedade e do exercício legítimo da alternância de poder. É nessa dimensão que ele deve ser entendido por aqueles que comungam de uma visão plural da democracia".
De acordo com o argumento do artigo, antidemocráticos são os que questionam e defendem a imediata ação contra um governo que se manifesta publicamente a favor do extermínio de minorias, do aniquilamente da oposição, de destruição das instituições, da negação da ciência e da constituição de milícias armadas.
Todos os movimentos do texto caminham no sentido de normalizar Bolsonaro e suas ideias, seja por meio de falsas equivalências com a esquerda, seja por tratá-lo como expressão de legítimos dissensos da sociedade brasileira perante uma suposta hegemonia da esquerda que, no artigo, atinge até mesmo a grande mídia.
No esforço de compreender as origens do bolsonarismo e as causas da sua eleição, os autores fogem de elucubrações mais sofisticadas e responsabilizam as esquerdas, que, com seu afã pela polarização, produziram o presidente: “Bolsonaro é, antes de qualquer coisa, o resultado de um processo de polarização política da sociedade brasileira muito anterior a sua eleição. A raiz contemporânea desse fenômeno remonta à retórica violenta da esquerda à época imediatamente anterior de sua chegada ao poder, com o 'Fora, FHC' e seu esforço para estigmatizar e deslegitimar um governo de clara orientação social-democrata”.
Em interpretação sócio-histórica absurda, eles sugerem uma relação direta de causalidade entre uma ação política da esquerda de 21 anos atrás, o “Fora, FHC” —no meu entender, aliás, um erro à epoca— e a emergência do bolsonarismo. Não há maior justificativa sobre os critérios da escolha, nem reflexão sobre suas eventuais continuidades.
Gostaria de conhecer melhor os pressupostos que embasam argumento tão pouco usual, ou mesmo a escolha de 1999 como marco inicial. Por que não o “Fora, Collor”, as Diretas Já ou o comício da Central?
A demanda de autocrítica das esquerdas vem, por sua vez, acompanhada de tímidas menções aos erros do PSDB, sem referências ao questionamento dos resultados eleitorais em 2014, por Aécio Neves, ou mesmo à escolha no mínimo "ambígua" de FHC —para utilizar um termo do texto que sera logo debatido— de lutar por um novo mandato em pleno exercício do poder, como quando da aprovação da emenda constitucional da reeleição.
O texto segue com uma longa lista de senões ante as credenciais democráticas do PT, que para o leitor soam mais graves que os do bolsonarismo. A lista vai do questionamento do respeito à liberdade de imprensa ao auxílio a ditadores vizinhos.
Outra vez acaba pouco justificada a seleção dos episódios: “Há igualmente contas que pesam sobre a esquerda brasileira [...]. A primeira delas diz respeito a sua relação ambígua com a democracia e as instituições. Alguns exemplos: o inaceitável suporte político e financeiro, via BNDES, à ditadura castrista e à escalada autoritária na Venezuela; episódios como a 'devolução' dos boxeadores cubanos e a defesa intransigente de um condenado por homicídios na Itália; a permanente retórica de 'regulação da mídia' e o processo sistêmico e amplamente documentado de corrupção do Estado brasileiro”.
A esquerda teria, por esse trecho, uma relação “ambígua” com a democracia e as instituições. Em um texto que pretende analisar o bolsonarismo, o raciocínio não tem outro papel que reforçar o sistema de falsas equivalências e normalizá-lo. Os autores constroem toda sua argumentação a partir de uma sugestão das afinidades entre o petismo e o bolsonarismo, que, em ultima medida, se amparariam nas similaridades entre comunismo e fascismo, ambos inimigos da "sociedade aberta".
A associação direta do PT com o comunismo nem mesmo merece maior reflexão no artigo, mas surge de crenças não ditas, que nesse ponto, aliás, muito se aproximam da retórica de Jair Bolsonaro, que sempre atribuiu aos petistas a intenção de transformar o Brasil em uma ditadura comunista.
Para os autores, os liberais ocupam um lugar neutro, de recusa às práticas antidemocráticas cultivadas por comunistas, ou seja, pelo PT, e por fascistas: “É possível fazer de conta que nada disso é importante, que tudo é justificável à luz do 'embate político' e de uma estranha lógica seletiva sobre boas e más ditaduras. Na visão dos liberais, não. A democracia não comporta esse tipo de seletividade, estejam no poder forças à esquerda ou à direita do espectro político".
Esse apurado senso de justiça permite aos autores concluir que, apesar da gritaria da esquerda, as instituições funcionam: “Dizer que as instituições funcionam não significa concordar com toda e qualquer decisão tomada, seja pelo Congresso, seja pelo STF”.
Segundo os autoproclamados liberais, não se pode confundir o combate ao autoritarismo com a proibição do dissenso. O texto mais uma vez sugere que não apenas Bolsonaro defende pautas autoritárias, mas que a esquerda também o faz. A defesa do “Fora, Bolsonaro” seria uma delas.
“A democracia liberal é avessa à proibição estatal do dissenso. É preocupante assistir à atuação de grupos que defendem pautas autoritárias, em diversas direções. Sua atuação reflete, antes de qualquer coisa, a permanência de cultura despótica na base da sociedade brasileira.”
O texto não define quem deseja proibir o dissenso. Pela argumentação, eu pensaria na esquerda, e talvez até mesmo incluísse o bolsonarismo nesse grupo. Os autores preferem, todavia, recorrer ao termo cultura e classificar Bolsonaro como populista, dois excelentes conceitos para fazer acusações genéricas e definir com pouco rigor o objeto da sua crítica.
Nesse ponto do artigo surge uma possível razão da escolha do “Fora, FHC” como marco inicial do processo que levaria ao bolsonarismo. Nas entrelinhas, o texto sugere que a defesa do impeachment de Bolsonaro é mais uma das manifestações do autoritarismo da esquerda.
Ainda de acordo com os autores, o governo Bolsonaro decorreria de um “conjunto relevante de tendências da vida política brasileira”, como “pensamento conservador”, “uma demanda difusa pela ética na vida pública” e “uma ampla e difusa aliança com o mercado a partir da pauta econômica formulada por Paulo Guedes e sua equipe”.
A naturalização, simplista perante os olhos de qualquer teoria da representação política sofisticada, dos vínculos entre sociedade e governo, interessa pouco. Mais sugestivos são os adjetivos que qualificam a aliança com o mercado: ampla e difusa. Eles se vinculam a outros termos, dessa vez usados para qualificar o lugar da agenda liberal no governo, que seria objeto de um “consenso frágil” e dotada de resultados “bastante tímidos”.
A moderação revela que a ambiguidade em relação à democracia, atribuída à esquerda, talvez seja característica dos autores, ávidos por normalizar as ações autoritárias e o discurso fascista do governo Bolsonaro ante a esperança de “reformas liberais”.
O objetivo é dissociar o governo Bolsonaro da tradição liberal: “Tudo isso reflete o fato de que, apesar de iniciativas e intenções liberais, o governo Bolsonaro não é, em seu conjunto, um governo liberal. Não vai aí uma distinção trivial. O liberalismo supõe compromissos que vão muito além dos temas relativos ao livre mercado, como respeito a instituições, afirmação de direitos, cultivo de valores associados à liberdade. O atual governo anda longe disso”.
De acordo com os critérios de pureza estabelecidos pelos autores para definir o liberalismo, dificilmente o encontraríamos na história. Não creio que seria muito diferente, caso seguidos os mesmo requisitos, os casos do comunismo e do conservadorismo.
O texto ignora a evidência de que, perante grande parte do empresariado, da grande mídia e de outros grupos sociais relevantes, a retórica do liberalismo econômico, em sua versão mais radical, próxima ao anarcocapitalismo, é central para a construção da legitimidade de um governo que adota, para sermos moderados, uma retórica de extração claramente fascista.
Em meio a formulações vagas sobre ideologias políticas e do esforço para equiparar a esquerda ao bolsonarismo, a indicação explícita do texto é: esperemos 2022, pois as instituições e a democracia funcionam. Quem discorda e defende o impeachment do presidente é, segundo os autores, autoritário.
Sobre o autor
Doutor em ciência política pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)
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