Tanto o hip-hop quanto o punk floresceram do colapso social criado pela crise econômica dos anos 1970. Mas onde está a música do nosso desastre do século XXI?
Alexander Billet
Grandmaster Flash, um pioneiro do hip-hop, se apresentou em clubes punk. (Wikimedia Commons) |
Tradução / "Senhoras e senhores, o Bronx está incendiando."
Howard Cosell nunca proferiu essas palavras, na realidade. Sua conversa com o colega locutor esportivo Keith Jackson, durante o Game 2 do 1977 World Series foi, posteriormente, dita repetidas vezes por outros jornalistas e escritores.
Se foi intencional ou não, essas palavras captaram certa frieza acerca da normalização do desastre. Como as câmeras se mexiam de um lado para o outro, do jogo ao apartamento incendiado a alguns prédios de distância. A devastação poderia ocasionar no intervalo, ainda que um pouco desanimador.
Os Estados Unidos estava caindo por terra na década de 70, tornando-se um lugar onde as múltiplas crises político-econômicas convergiam. Tal como no pós Segunda Guerra, quando a ordem econômica finalmente desmoronou. Em lugar nenhum isso era mais aparente do que em South Bronx.
A constante redução do investimento e o fenômeno do white flight fez com que os moradores, predominantemente de pretos/negros e marrons/ imigrantes/ do sudeste asiático, encarassem a pobreza crescente, o aumento do desemprego, más condições de moradia e redução dos serviços sociais. O South Bronx era, em 1977, o distrito congressional mais pobre do país – e segue até os dias de hoje. Para muitos de seus moradores, o desastre já se mostra como algo prolongado.
Bronx na decada de 70
"Se a cultura do blues tivesse se desenvolvido sob as condições de opressão e trabalho forçado", escreve Jeff Chang magnificamente em Can’t Stop Won't Stop, "a cultura do hip-hop ascenderia das condições de falta de trabalho." Enquanto as narrativas insólitas trazem as pessoas do South Bronx de mal a pior, a realidade acerca das origens do hip-hop revelam jovens comunidades reinventando tanto a si quanto seus arredores.
Eles usavam o que tinham, e constantemente, era muito pouco. Eles pegavam a vitrola e as caixas de som, encaixavam as gambiarras nos postes para festas improvisadas de rua, criando novos métodos de mixagem e de fazer prosa.
Grandmaster Flash performou em clubes punk, com um jovem punk chamado Rick Rubin que contribuiria com o Def Jam, e com uma banda experimental de hard-core pouco conhecida. Esta, posteriormente se tornou os Beastie Boys.
Bastante impactados pela memória do movimento de libertação dos negros, assim como o soul, o funk e os sound systems de dub da Jamaica, o hip-hop soava novo e fresquinho ao mesmo tempo que era um canal de expressões rebeldes de outros tempos e lugares. Afinidades frequentemente esquecidas como o reggae, são particularmente esclarecedoras. Interferências por parte do Norte Global levou às condições de instabilidade na Jamaica, que com frequência abriu espaço para conflitos urbanos de baixo nível. A tensão e o “pulso firme” poderiam ser facilmente escutadas no reggae, no dub, e, conforme Afrofuturistas contemporâneos argumentam, era reflexo de um desejo profundo de transcender o caos.
Esse foi um ethos que caia bem como matéria-prima para o hip-hop, “os pais do rap raíz”, como diria Jeff Chang. Toasting — o ato de prosear verbalmente sobre as o reggae ou as batidas de dub — se tornou rapping. O reaproveitamento do som previamente gravado assumiu novas dimensões e sínteses. Além disso, DJ Kool Herc, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, todos filhos de imigrantes caribenhos que viviam no Bronx.
"Vista o saco de lixo"
Enquanto isso, no Lower East Side, uma cena de orientação mais roqueira – mas também insurgente – estava gestando nos bares e clubes de Alphabet City e do Bowery. A associação da brutalidade ao punk rock faz um desserviço à criatividade pela qual muitos se dedicaram, assim como os seus antecessores do rock de garagem. Television, Suicide, Patti Smith e Richard Hell – poucos podiam negar a repercussão da irreverência agressiva e crua desses artistas em uma cidade que se encontrava em ruínas.
Assim como no hip-hop, orbitando o punk havia um ar de desprezo e proibição, daqueles que haviam escapado das explosões da década anterior, finalmente ressurgindo, transformados em uma presença inevitável e chocante. Como os setentistas cederam aos oitentistas, as duas cenas começaram se encontrar, colidir e colaborar em Nova York. Grandmaster Flash performou em clubes/ casas punk, um jovem punk chamado Rick Rubin que contribuiria com o Def Jam, e com uma banda experimental de hard-core pouco conhecida. Esta, se tornaria os Beastie Boys.
Do outro lado do oceano, a iteração punk de Londres era reflexo de feridas ainda mais sangrentas de caos e declínio. A recessão global atingiu com força o Reino Unido. John Lydon, antigo membro do Sex Pistols, reconta em The Filth and the Fury (O Lixo e a Fúria) a cena absurda das pessoas de cabelo penteados e calça flare descendo a Kings Road se empilhavam como sacos de lixo a três metros de altura. “Vista o saco de lixo,” ele diz. “Aí você está lidando com isso.”
O apelo de “lidar” com a crise foi levado mais a sério quando Lydon gritou “no future”, (sem futuro). Mas foi bem mais distinto e magnético quando “1977” ou “City of the Dead” do The Clash. As explorações da identidade adolescente em X-Ray Spex no meio do consumismo vazio – “Identity,” “Art-I-Ficial” – e em “Babylon’s Burning”, do The Ruts.
A influência do reggae no punk britânico foi bem mais proeminente. Isso tem muito mais haver com a própria história do processo de colonialismo do Reino Unido sobre o Caribe e a migração estimulada, mas o milenarismo apocalíptico do reggae dos anos 70 também se aplicava à vida urbana britânica, que estava vivendo seus últimos momentos de pompa imperial. Grupos de reggae como Aswaad e Steel Pulse – muitos deles, filhos de imigrantes jamaicanos – encontraram facilmente um lugar para suas composições cheias de arrogância dentro do contexto britânico.
Muitos grupos punk concordaram, porque as músicas do The Ruts, The Slits e o movimento two-tone reverberavam. Não é surpresa que mais uma camada de intercâmbio cultural foi descoberta. As duas cenas terminariam compartilhando o palco e, com frequência, experimentando os sons uma da outra.
Recontar isso tudo não é um ato nostálgico. Ouvir rap, punk e reggae, em consonância com o apocalipse, é relembrar a nós mesmos que a música não é meramente uma válvula de escape. A ideia de que as artes existem apenas porque desejamos retratar a realidade é uma narrativa burguesa, dolorosa e limitada. E também derrotista, uma vez que só transcendendo a válvula de escape quando rompemos essas barreiras da existência – que nos automatiza e desumaniza.
“Em uma sociedade em declínio, a arte, se verdadeira, deve também refletir a decadência,” escreveu o marxista e crítico de arte, Ernst Fischer. “A menos que ela rompa com sua função social, a arte deve mostrar o mundo como mutável, e deve ajudar a muda-lo”.
Não resta dúvidas de que punk, hip-hop e reggae, em suas respectivas particularidades de expressão, são reflexos da decadência. Junto a isso, eles revelam não somente que a crise é global, mas que é o interesse comum entre os artistas que atravessam fronteiras de nações e raças.
Qualquer engajamento sustentado pelos artistas em suas cenas revela também que cada um deles estava tentando mostrar como o mundo é mutável. Até mesmo o ato de criar modas e músicas que parecessem e soassem como destroços (no caso do punk), ou fosse uma luz de atrevimento brilhando em seus rostos (para o hip-hop) exigia uma interpelação, um ato de reimaginação.
A música Pop é sempre política?
Podemos dizer que esses estilos contribuíram para a mudança do mundo? Existem várias armadilhas rodeando essa questão. Naturalmente, o simples ato de tocar uma música pode não mudar o mundo, assim como o protagonista de uma romance não pode pular das páginas para ter uma conversa com você.
A cultura musical atual se inclina fortemente para a playlist personalizada, seus headphones constroem uma barreira invisível entre mundo e você, conforme você se move através dele.
Isso não é uma negação ao poder que a música e a cultura compartilhada tem diante de um contexto de revolta. Quando a juventude Afro-Caribenha lutou contra os policiais no carnaval londrino de Notting Hill em 1976, eles agiam em defesa de suas próprias vidas e de uma experiência cultural coletiva que promovia a eles o mesmo significado. A história de Boots Riley sobre moradores de conjuntos habitacionais gritando "Fight the Power" (Enfrente o poder) contra o inimigo público, enquanto libertavam seu vizinho ferido da traseira de um carro de polícia, reflete um fenômeno semelhante. A esses envolvidos, arte e cultura são fortes pressões do que significa resistir e viver.
Um relato honesto da música no capitalismo tardio revela que esses momentos são passageiros. De fato, sob o neoliberalismo parece ser mais justo dizer que o mundo mudou a música, ou, pelo menos, a forma como é consumida, e não o contrário. O capitalismo se resgatou das catástrofes da década de 70, e, em prol de uma cultura de individualismo, esmagou o potencial de uma luta coletiva.
Até a forma mais básica de consumo musical foi automatizada. Antes, era fácil ouvir um disco tanto com os amigos quanto sozinho. Hoje, a cultura musical se inclina fortemente para a lista de reprodução personalizada. Seus fones de ouvido constroem uma barreira invisível entre você e o mundo enquanto você se move por ele. O serviço de streaming que você usa, paga os artistas em frações de centavo por cada play. Isso apenas melhora o negócio para a própria indústria que pede que você "faça (e ouça) o que você ama".
Não faz sentido moralizar sobre isso. Ter uma gama de músicas gravadas virtualmente na tela do seu celular, em qualquer lugar, a qualquer hora, cria possibilidades. Como sempre, o ponto crítico dessas possibilidades não é a tecnologia em si, ou a média. É à quem a tecnologia pertence, quem controla essa média.
Hoje, vasculhando o número infinito de nichos e cenas online, é fácil encontrar artistas e músicos incríveis tentando entender a queda. Não é nenhuma surpresa que muitos deles trabalhem ou sejam inequivocamente influenciados por gêneros já familiarizados com o desastre.
O Hip-Hop age como um recorte e a Air Credits tomou uma abordagem cinemática, coletando histórias que ponderam como manter a humanidade no pós-apocalipse. Grupos como Parquet Courts e Algiers – ambos trabalhando no amplo ramo do "pós-punk" – minando a violência da vida cotidiana. Ambos, de maneira significativa, se aliaram abertamente aos anticapitalistas de esquerda em suas músicas.
Esses artistas, sem dúvida, assumem o papel de criar uma imaginação pós-capitalista. Mas a verdade dura é de que, diariamente, conforme a crise se aprofunda, não há garantia de que tal imaginação germine, e tampouco floresça. De fato, não é incomum que esse tipo de música pode se subverter contra si mesma bem à parte da intenção do artista. O sentimento de ouvir músicas rebeldes pode facilmente ser transformado em uma substituição da própria rebelião por quem embala e vende, condicionando-nos à uma vida sombria ao nos sentir convencidos de que estamos fazendo o que é possível. É, de certa maneira, a mercantilização final da dissidência.
Conseguimos imaginar a arte, ou a vida, para além dessa mercantilização? De maneira mais concreta, podemos criar movimentos e espaços onde seja possível imaginar? Durante a catástrofe da década de 1930, o Partido Comunista estadunidense estava apto a proporcionar performances de folk e jazz, de modo que as pessoas se aproximassem e se sentissem livres. Capacitando-as de remodelar suas vidas, mesmo que por uma noite. São esses os tipos de espaço em que o intercâmbio cultural se torna possível; onde os novos estilos podem emergir.
Mas isso não seria possível sem os movimentos de cada vizinhança e locais de trabalho que estavam lutando ativamente por essa liberdade e por esses espaços. O desastre só se torna um ponto de partida para a reinvenção se houver competição suficiente por ele.
A indústria cultural atualmente é infinitamente mais poderosa e mais capaz de traçar o seu caminho pela arte e colonizar as nossas vidas. Somos de fazer igual nossos antigos camaradas fizeram, sob condições muito piores? É uma pergunta aberta, e um "não" como resposta vem acompanhado de tristes consequências.
Não é que a música ou a arte não possam ajudar a mudar o mundo, por mais subordinado que seja esse papel de ajudante. Mas mudar o mundo é uma tarefa muito mais monumental do que muitas músicas nos fariam acreditar.
Não resta dúvidas de que punk, hip-hop e reggae, em suas respectivas particularidades de expressão, são reflexos da decadência. Junto a isso, eles revelam não somente que a crise é global, mas que é o interesse comum entre os artistas que atravessam fronteiras de nações e raças.
Qualquer engajamento sustentado pelos artistas em suas cenas revela também que cada um deles estava tentando mostrar como o mundo é mutável. Até mesmo o ato de criar modas e músicas que parecessem e soassem como destroços (no caso do punk), ou fosse uma luz de atrevimento brilhando em seus rostos (para o hip-hop) exigia uma interpelação, um ato de reimaginação.
A música Pop é sempre política?
Podemos dizer que esses estilos contribuíram para a mudança do mundo? Existem várias armadilhas rodeando essa questão. Naturalmente, o simples ato de tocar uma música pode não mudar o mundo, assim como o protagonista de uma romance não pode pular das páginas para ter uma conversa com você.
A cultura musical atual se inclina fortemente para a playlist personalizada, seus headphones constroem uma barreira invisível entre mundo e você, conforme você se move através dele.
Isso não é uma negação ao poder que a música e a cultura compartilhada tem diante de um contexto de revolta. Quando a juventude Afro-Caribenha lutou contra os policiais no carnaval londrino de Notting Hill em 1976, eles agiam em defesa de suas próprias vidas e de uma experiência cultural coletiva que promovia a eles o mesmo significado. A história de Boots Riley sobre moradores de conjuntos habitacionais gritando "Fight the Power" (Enfrente o poder) contra o inimigo público, enquanto libertavam seu vizinho ferido da traseira de um carro de polícia, reflete um fenômeno semelhante. A esses envolvidos, arte e cultura são fortes pressões do que significa resistir e viver.
Um relato honesto da música no capitalismo tardio revela que esses momentos são passageiros. De fato, sob o neoliberalismo parece ser mais justo dizer que o mundo mudou a música, ou, pelo menos, a forma como é consumida, e não o contrário. O capitalismo se resgatou das catástrofes da década de 70, e, em prol de uma cultura de individualismo, esmagou o potencial de uma luta coletiva.
Até a forma mais básica de consumo musical foi automatizada. Antes, era fácil ouvir um disco tanto com os amigos quanto sozinho. Hoje, a cultura musical se inclina fortemente para a lista de reprodução personalizada. Seus fones de ouvido constroem uma barreira invisível entre você e o mundo enquanto você se move por ele. O serviço de streaming que você usa, paga os artistas em frações de centavo por cada play. Isso apenas melhora o negócio para a própria indústria que pede que você "faça (e ouça) o que você ama".
Não faz sentido moralizar sobre isso. Ter uma gama de músicas gravadas virtualmente na tela do seu celular, em qualquer lugar, a qualquer hora, cria possibilidades. Como sempre, o ponto crítico dessas possibilidades não é a tecnologia em si, ou a média. É à quem a tecnologia pertence, quem controla essa média.
Hoje, vasculhando o número infinito de nichos e cenas online, é fácil encontrar artistas e músicos incríveis tentando entender a queda. Não é nenhuma surpresa que muitos deles trabalhem ou sejam inequivocamente influenciados por gêneros já familiarizados com o desastre.
O Hip-Hop age como um recorte e a Air Credits tomou uma abordagem cinemática, coletando histórias que ponderam como manter a humanidade no pós-apocalipse. Grupos como Parquet Courts e Algiers – ambos trabalhando no amplo ramo do "pós-punk" – minando a violência da vida cotidiana. Ambos, de maneira significativa, se aliaram abertamente aos anticapitalistas de esquerda em suas músicas.
Esses artistas, sem dúvida, assumem o papel de criar uma imaginação pós-capitalista. Mas a verdade dura é de que, diariamente, conforme a crise se aprofunda, não há garantia de que tal imaginação germine, e tampouco floresça. De fato, não é incomum que esse tipo de música pode se subverter contra si mesma bem à parte da intenção do artista. O sentimento de ouvir músicas rebeldes pode facilmente ser transformado em uma substituição da própria rebelião por quem embala e vende, condicionando-nos à uma vida sombria ao nos sentir convencidos de que estamos fazendo o que é possível. É, de certa maneira, a mercantilização final da dissidência.
Conseguimos imaginar a arte, ou a vida, para além dessa mercantilização? De maneira mais concreta, podemos criar movimentos e espaços onde seja possível imaginar? Durante a catástrofe da década de 1930, o Partido Comunista estadunidense estava apto a proporcionar performances de folk e jazz, de modo que as pessoas se aproximassem e se sentissem livres. Capacitando-as de remodelar suas vidas, mesmo que por uma noite. São esses os tipos de espaço em que o intercâmbio cultural se torna possível; onde os novos estilos podem emergir.
Mas isso não seria possível sem os movimentos de cada vizinhança e locais de trabalho que estavam lutando ativamente por essa liberdade e por esses espaços. O desastre só se torna um ponto de partida para a reinvenção se houver competição suficiente por ele.
A indústria cultural atualmente é infinitamente mais poderosa e mais capaz de traçar o seu caminho pela arte e colonizar as nossas vidas. Somos de fazer igual nossos antigos camaradas fizeram, sob condições muito piores? É uma pergunta aberta, e um "não" como resposta vem acompanhado de tristes consequências.
Não é que a música ou a arte não possam ajudar a mudar o mundo, por mais subordinado que seja esse papel de ajudante. Mas mudar o mundo é uma tarefa muito mais monumental do que muitas músicas nos fariam acreditar.
Colaborador
Alexander Billet é escritor, artista e crítico cultural que mora em Los Angeles. Seus escritos apareceram em Jacobin, In These Times, Chicago Review e outros meios de comunicação. Ele é editor da Locust Review e blogs da To Whom It May Concern.
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