21 de agosto de 2020

A classe governante não acredita na democracia

Sob o capitalismo, a disputa democrática é permitida desde que não ameace a classe dominante – uma vez que essa linha seja cruzada, a fachada democrática desmorona rapidamente com a colaboração do judiciário, o exército e a polícia.

Daniel Finn

Tribune

Confronto em 18 de junho de 1984 entre a tropa de choque e os mineiros em greve. Fotografia: Photofusion / Shutterstock.

Tradução / Em 2020, o medo tomou conta da sociedade. Desenvolvimentos políticos da Índia ao Brasil, da Hungria aos Estados Unidos, levaram muitos a antecipar o surgimento de uma nova direita autoritária que eliminará por completo as liberdades democráticas.

É improvável que esses países repitam a experiência da Itália fascista ou da Alemanha nazista: muita coisa mudou para que esse seja um modelo plausível. Em vez de perguntar se “X é um fascista”, é mais útil olhar para essas tendências de um ângulo diferente. Será que algum governo de extrema direita vai deixar de lado os limites formais da democracia e impor um regime plenamente autoritário? Se não, quão repressivos esses governos podem ser enquanto permanecem dentro desses limites?

Essas questões ganharam muito mais urgência na última década. Na Europa, a direita pós-fascista escapou das gaiolas que antes restringiam seu avanço. Na Hungria e na Polônia, os ultra-nacionalistas assumiram o poder por meio das urnas. Os partidos de extrema direita se juntaram aos governos da Itália e da Áustria sem atrair a mesma hostilidade dos Estados vizinhos da coalizão austríaca de curta duração envolvendo o Partido da Liberdade de Jörg Haider duas décadas antes.

Quando Marine Le Pen alcançou o segundo turno das eleições presidenciais francesas em 2017, ela estava seguindo os passos de seu pai, Jean-Marie; desta vez, porém, não foi uma ocorrência bizarra, mas um desfecho previsto com bastante antecedência. Seria necessário apenas uma pequena mudança política para colocar o italiano Matteo Salvini à frente de um novo governo: seu partido Lega Nord liderou as pesquisas de opinião ao longo de 2019.

Enquanto isso, os partidos da direita mainstream abraçaram ideias que extrapolaram o limite aceitável: não parece mais fazer sentido descrever os conservadores britânicos ou o Partido Popular da Espanha como “centro-direita”. O exemplo mais impressionante dessa guinada para a direita, é claro, pode ser encontrado do outro lado do Atlântico, onde Donald Trump forneceu à direita populista um campeão no Salão Oval.

Nenhum desses casos se encaixa na imagem tradicional de um regime autoritário. Todos os movimentos em questão tiveram de enfrentar o desafio de eleições nas urnas. Mesmo na Hungria, que avançou mais no caminho autoritário, os partidos de oposição e os meios de comunicação ainda conseguem funcionar, embora enfrentem restrições que dificultam o pluralismo genuíno. Em outras partes do mundo, homens fortes de direita como Narendra Modi da Índia e Jair Bolsonaro do Brasil também usaram a estrutura da democracia representativa para fazer avançar sua agenda. É fácil imaginar Modi ou Bolsonaro como uma figura ditatorial num sistema de partido único – seu desprezo pelos valores democráticos é revelado – mas nenhum radical de direita cruzou esse rubicão até agora.

A casca da democracia

Em seu livro Marxism and Politics, Ralph Miliband advertiu que:

havia uma tentação marxista permanente de desvalorizar a distinção entre regimes democráticos burgueses e regimes autoritários. Do ponto de vista de que os primeiros são regimes de classe de tipo mais ou menos repressivo, o que é inteiramente legítimo, sempre foi bastante fácil para os marxistas passarem para a visão imprecisa e perigosa de que o que os separa de regimes verdadeiramente autoritários não é relevante, ou não “qualitativamente” significativo.

O argumento de Miliband não perdeu nada de sua atualidade. Mas também há o perigo de ignorar as mudanças qualitativas na natureza do governo capitalista, porque ele preserva a casca formal da democracia liberal enquanto corrói a maior parte de seus pilares.

O incentivo para preservar essa casca é muito maior do que era no passado. Durante as décadas do entre guerras na Europa, os líderes fascistas ridicularizaram abertamente a democracia liberal como um sistema fracassado que estava destinado à pilha de sucata histórica. Ambos os lados na Guerra Fria defendiam os ideais democráticos da boca para fora, mas o Bloco Oriental rejeitou explicitamente a ideia de um sistema multipartidário, enquanto os Estados Unidos deram apoio incondicional a países como o Zaire ou a Indonésia, onde um único governante autocrático deteve o poder por décadas.

Esse tipo de regime saiu de moda. Até mesmo um estado teocrático como o Irã presta homenagem ao governo representativo com um parlamento e uma presidência eleitos, mantidos sob controle por superintendentes clericais. A contra-revolução árabe gerou pelo menos um déspota nos moldes de Augusto Pinochet ou Suharto: o governante militar do Egito de Abdel Fattah el-Sisi. Mas o modelo preferido na esfera de influência dos EUA é aquele que combina a democracia formal com fortes restrições à vontade popular. A experiência recente na América Latina mostra o que essas restrições podem se tornar quando as coisas estão ruins.

Democracia "não-liberal"

Fareed Zakaria popularizou o conceito de “democracia não-liberal” em um ensaio de 1997 para a revista Foreign Affairs. Ele enfatizou a necessidade de limites ao governo da maioria – elogiando o Senado dos Estados Unidos como “a câmara alta menos representativa do mundo, com a única exceção da Câmara dos Lordes” – e transformou a autonomia judicial em um fetiche: “O ‘modelo ocidental’ é melhor simbolizado não pelo plebiscito em massa, mas pelo juiz imparcial.”

Sem surpresa, Zakaria ofereceu apenas a mais leve sugestão de que o capitalismo e a democracia podem entrar em conflito: “Cinquenta anos atrás, os políticos no mundo em desenvolvimento queriam poderes extraordinários para implementar as doutrinas econômicas da moda, como a nacionalização de indústrias. Hoje, seus sucessores querem poderes semelhantes para privatizar essas mesmas indústrias.” A definição de “democracia não-liberal” que ele apresentou poderia facilmente ser usada para estigmatizar líderes populares democraticamente eleitos, como Hugo Chávez e Evo Morales, cujo programas foram considerados inaceitáveis ​​por Washington.

Duas décadas depois, logo após o grande crash financeiro e seus resultados políticos, Zakaria ainda não havia detectado nenhuma falha importante no sistema capitalista, embora admitisse que suas virtudes podem ter alguns limites: “Às vezes penso comigo mesmo, se o currículo da faculdade foi determinado inteiramente pelas forças de mercado, isso seria uma coisa boa? Eu suspeito que não.”

No entanto, o próprio termo “democracia não-liberal” poderia ser reaproveitado e aplicado de forma mais justa a alguns dos principais Estados clientes dos Estados Unidos na América Latina. O não-liberalismo, neste sentido, não vem de um excesso de democracia ou poder popular, mas dos próprios “freios e contrapesos” celebrados por Zakaria – não menos importante seus amados “juízes imparciais”. Foi a Suprema Corte hondurenha que forneceu o pretexto para um golpe militar contra o governo de Manuel Zelaya em 2009. O magistrado brasileiro Sérgio Moro transformou sua cruzada “anticorrupção” em uma luta partidária contra o governante Partido dos Trabalhadores (PT), pavimentando o caminho para o triunfo eleitoral de Jair Bolsonaro – para, em seguida, assumir o ministério da Justiça no governo Bolsonaro.

Este é o novo modelo de mudança de regime antidemocrático. Essas manobras pseudo-legais eram mais apresentáveis ​​para a mídia internacional do que um golpe antiquado, mas o resultado foi o mesmo: um governo progressista impedido de cumprir seu mandato por centros de poder não eleitos, com a violência estatal pronta para esmagar qualquer resistência.

A recente deposição de Evo Morales foi outra variação do tema: alegações duvidosas de fraude eleitoral que só precisaram durar o tempo suficiente para justificar a intervenção dos militares, seguida de uma entrega do poder a políticos de direita sob uma bandeira de “transição”. As eleições que eventualmente ocorrerem na Bolívia podem ser fraudadas, como foi em Honduras, ou podem ser honestas no sentido mais restrito, como o voto presidencial no Brasil. No entanto, a oligarquia de direita fará tudo o que puder para embaralhar as cartas antes que uma única eleição justa seja lançada.

A Colômbia, em particular, mostra quanta repressão pode ocorrer por trás de uma fachada democrática. Ao contrário da maioria de seus vizinhos, o país tem muito pouca experiência de governo militar, tendo a alternância regular de poder entre presidentes civis. No entanto, esse modelo foi combinado com um terror implacável contra a esquerda colombiana, que excede em muito a contagem de cadáveres no Chile sob Pinochet ou na Argentina sob Jorge Rafael Videla. O Estado subcontratou o trabalho de aterrorizar seus oponentes a esquadrões da morte paramilitares, dando aos seus patrocinadores em Washington uma folha de negação plausível enquanto injetavam ajuda militar em grande escala.

Tolerância zero

Desde o fim da Guerra Fria, a América Latina testou os limites da democracia capitalista como ninguém. A chamada terceira onda de democratização celebrada por escritores como Samuel Huntington baseou-se em um consenso tácito sobre a política econômica: o capitalismo era o único jogo na cidade, e todos os Estados capitalistas convergiam em torno do mesmo modelo neoliberal (o “Consenso de Washington”). Foi fácil para as oligarquias corporativas tolerarem um sistema multipartidário quando sabiam que uma mudança de governo não representava uma ameaça.

Os governos de esquerda na América Latina perturbaram essa complacência. Embora os governos do PT no Brasil recebessem elogios da imprensa empresarial mundial por sua abordagem reformista, a classe dominante brasileira ainda respondia como se tivesse sido ameaçada de expropriação ao estilo cubano, provando que os desafios insurrecionais não eram mais necessários para detonar uma resposta virulenta.

Mas isso não aconteceu apenas a América Latina. Se os movimentos de esquerda nos países centrais representam um sério desafio ao status quo, eles podem esperar reações semelhantes da elite. Na verdade, já vimos a política assumir um caráter distintamente latino-americano em vários países europeus, embora nenhum tenha atingido ainda o mesmo tom.

No período seguinte ao avanço eleitoral do Syriza em 2012, a direita grega adotou um discurso que negava a seus oponentes de esquerda qualquer legitimidade política. Isso ocorreu em um contexto também marcado pelo surgimento de um partido neonazista com seus próprios esquadrões paramilitares e simpatizantes entre a polícia grega. O confronto de alto nível entre o governo de Alexis Tsipras e os principais Estados da União Europeia obscureceu o fato de que Tsipras também enfrentou hostilidade implacável internamente contra a oposição conservadora e seus aliados na máquina estatal (notadamente o governador do Banco Central grego). Se o Syriza não tivesse cedido à pressão da troika europeia em 2015, esta “latino-americanização” da política grega certamente teria se intensificado, com consequências explosivas.

A Grécia talvez pudesse ser descartada como uma exceção à norma da Europa Ocidental, com sua experiência de guerra civil e ditadura militar colocando-a mais perto de muitos Estados latino-americanos do que da Escandinávia. Mas o mesmo nunca poderia ser dito da Grã-Bretanha, uma nação há muito conhecida por sua estabilidade e moderação, que não passou por uma revolução ou guerra civil desde o século XVII. A ascensão do corbynismo provocou uma mudança no discurso da política de direita que espelhou de perto os desenvolvimentos na Grécia após 2012.

Esse discurso polarizador aumentou na campanha para as eleições gerais de 2019, quando o Partido Conservador, seus aliados da mídia e grande parte do autoproclamado centro liberal se uniram para apresentar o movimento liderado por Jeremy Corbyn como uma força “anti-nacional” ilegítima cuja presença no governo seria semelhante a uma ocupação estrangeira. Chefes de inteligência aposentados denunciaram o líder trabalhista como uma ameaça à segurança nacional; jornais promoveram listas de alvos para extrema direita a fim de incitar a violência contra esquerdistas proeminentes.

O objetivo principal desse ataque era evitar o perigo de uma vitória eleitoral trabalhista. No entanto, se o partido de Corbyn tivesse desafiado as probabilidades e vencido os conservadores, o terreno já teria sido preparado para um impulso ainda maior para deslegitimar seu programa de reformas sociais.

Os conservadores podem sempre evocar o "estado profundo"

Mas isso não para com Corbyn. O Partido Nacional Escocês está em rota de colisão com o governo de Boris Johnson por causa de sua promessa de realizar um novo referendo de independência. A virada mais repressiva de qualquer Estado da Europa Ocidental nos últimos anos veio em resposta a um movimento de independência catalã liderado por nacionalistas de centro-direita, não por insurgentes de esquerda.

Carles Puigdemont e seus aliados não tinham interesse em interromper os ciclos do capitalismo, mas ainda enfrentavam o poder do Estado espanhol, com julgamentos políticos espetaculares, uma repressão violenta aos protestos e a imposição do governo direto de Madri. Sob a liderança de Johnson, o Estado britânico é perfeitamente capaz de seguir o exemplo espanhol.

O surgimento de um movimento de esquerda com uma agenda inaceitavelmente radical não é o único fator que pode levar o conservadorismo dominante à extrema direita. Polônia e Hungria mostram que você pode ter um anticomunismo estridente sem nenhum comunista contra quem reclamar (sem mencionar o anti-semitismo sem nenhuma população judia significativa). No entanto, é mais provável que a existência de uma ameaça percebida inspire uma reação reacionária, durante a qual os limites estabelecidos entre o centro, a direita e a extrema direita se tornam cada vez mais fluídos.

Se os socialistas na Europa e na América do Norte querem construir partidos que possam assumir o poder nas urnas com uma agenda genuinamente transformadora, eles devem estar preparados para que a democracia capitalista assuma uma forma muito parecida com a da Itália durante a Guerra Fria. O sistema político italiano funcionava com base no pressuposto explícito de que a oposição comunista jamais poderia formar um governo, não importa quantos votos ganhasse.

O núcleo repressivo do Estado usava rotineiramente a violência letal contra os manifestantes de esquerda e colaborava com grupos terroristas de extrema direita (as Brigadas Negras, que tinham um histórico muito mais sangrento do que suas contrapartes vermelhas). Este obscuro bloco ultraconservador também se preparou para um golpe de estilo chileno, caso a esquerda italiana chegasse ao poder por meios convencionais.

Quando Silvio Berlusconi, ex-apoiador da rede de extrema direita P2 (Propaganda Due), sediou a cúpula do G8 em 2001, seu governo transformou Gênova em um estado policial para a ocasião, com campos de detenção próprios onde os Carabinieri torturaram ativistas de esquerda e os forçaram a cantar hinos fascistas.

Apoiadores de Donald Trump recentemente sequestraram o termo “estado profundo” e drenaram seu significado original. Certa vez, eles alegaram que essas redes sobrepostas estavam atrapalhando os trabalhos das agências estatais de repressão e a extrema direita em conluio com crime organizado em países como a Grécia ou a Turquia, que haviam sido governados por ditaduras militares que existiriam até hoje.

Padrões semelhantes de conluio podem ser observados na Alemanha, onde o chefe espião doméstico – um membro da União Democrática Cristã de Angela Merkel – teve que renunciar por causa de suas simpatias com a extrema direita expressas publicamente, após vários escândalos indicando que grupos neofascistas violentos tiveram apoio do serviço de inteligência do país. A relutância das forças policiais locais dos EUA em reprimir as redes de supremacia branca também está bem documentada. E o Estado britânico tem um longo histórico de colaboração com paramilitares leais na Irlanda do Norte, responsáveis ​​por centenas de assassinatos. O “Estado profundo” é uma realidade viva, mesmo em países com tradições ininterruptas de governo constitucional que remontam a gerações.

Apesar de todas as diferenças óbvias entre aquela época e agora, há duas lições óbvias da experiência do fascismo europeu entre guerras que vale a pena ter em mente. Como Robert Paxton mostrou em The Anatomy of Fascism, nunca houve qualquer “revolução fascista” contra a ordem estabelecida: em todos os casos, os movimentos fascistas chegaram ao poder com a aquiescência das elites conservadoras tradicionais. E, tendo feito isso, eles descobriram que as instituições estatais existentes – especialmente o exército, a polícia e o judiciário – estavam mais do que dispostas a cooperar com seu projeto de poder.

No contexto de hoje, a verdadeira ameaça de extrema direita provavelmente envolverá convergência em vez de conquista, já que a linha entre o conservadorismo dominante e seus rivais ultranacionalistas se torna cada vez mais nebulosa. Responder a essa ameaça é uma das nossas prioridades mais urgentes.

Sobre o autor

Daniel Finn é o editor de artigos da Jacobin.

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