O antropólogo Wade Davis sobre como a COVID-19 sinaliza o fim da era americana
Wade Davis
A crise do COVID reduziu a farrapos a ideia do excepcionalismo americano. (Gary Hershorn/Getty Images) |
Tradução / Nunca vivemos antes a experiência de um fenômeno tão global. Pela primeira vez na história mundial, toda a humanidade, informada graças ao alcance — até então inédito — da tecnologia digital, viu-se unida e focada na mesma ameaça existencial, consumida pelos mesmos medos e incertezas — e antecipando-os ansiosamente junto com as promessas ainda não alcançadas pela ciência médica.
Ao longo de poucos meses, a civilização foi derrubada por um parasita microscópico 10 mil vezes menor do que um grão de sal. O Covid-19 ataca nossos corpos físicos, mas também os alicerces culturais de nossas vidas, a caixa de ferramentas de comunidade e conectividade, que para os seres humanos equivalem ao que garras e dentes representam para os tigres.
Nossas intervenções, até agora, concentraram-se principalmente em mitigar a taxa de disseminação, para achatar a curva de mortalidade. Não há tratamento disponível, nem a certeza de uma vacina no horizonte próximo. A vacina mais rápida já desenvolvida na história foi a da caxumba. Demorou quatro anos. O Covid-19 matou 100 mil estadunidenses em quatro meses. Há algumas evidências de que a infecção natural pode não implicar imunidade, o que faz alguns questionarem a eficácia de uma vacina, supondo que ela seja desenvolvida. Além do mais, ela deve ser segura. Se a população global for imunizada, complicações letais na proporção de apenas uma pessoa para cada mil significam a morte de milhões
Pandemias e pestes costumam mudar o curso da história, e nem sempre de uma maneira imediatamente evidente para os que sobrevivem. No século XIV, a Peste Negra dizimou quase metade da população da Europa. A escassez de mão de obra levou ao aumento dos salários. As expectativas crescentes culminaram na revolta camponesa de 1381, um ponto de inflexão que marcou o início do fim da ordem feudal que dominou a Europa medieval por mil anos.
A pandemia da covid será lembrada como um desses momentos da história, um evento seminal cujo significado só se revelará na esteira da crise. A pandemia vai marcar nossa era tanto quanto o assassinato do arquiduque Ferdinando em 1914, a Grande Depressão de 1929 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933 tornaram-se referências fundamentais do século passado. Todos mensageiros de resultados e consequências maiores.
O significado histórico da covid não reside no quanto ela interfere em nossas vidas cotidianas. Afinal, a mudança é uma constante quando de cultura se trata. Todas as pessoas, em todos os lugares, em todos os momentos, estão sempre lidando com novas possibilidades de vida. Conforme as empresas eliminam ou reduzem o tamanho dos escritórios centrais, os funcionários trabalham em casa, os restaurantes e os shoppings fecham, o streaming traz entretenimento e eventos esportivos para casa e as viagens aéreas se tornam cada vez mais problemáticas e miseráveis, as pessoas adaptam-se, como sempre fizeram. A fluidez da memória e a capacidade de esquecer são, talvez, os traços mais assustadores de nossa espécie. Como a história confirma, eles nos permitem enfrentar qualquer grau de degradação social, moral ou ambiental.
É um fato que a incerteza financeira irá projetar uma grande sombra. Por algum tempo, vai pairar sobre a economia global a humilde compreensão de que nem mesmo todo o dinheiro de todas as nações da Terra será suficiente para compensar as perdas sofridas quando o mundo inteiro deixa de funcionar, com trabalhadores e empresas de todos os lugares enfrentando uma escolha entre a sobrevivência econômica e a biológica.
Por mais perturbadoras que essas transições e circunstâncias sejam, com exceção de um colapso econômico completo, nenhuma delas se destaca como um momento decisivo na história. Mas se há uma coisa que se destaca. Foi o impacto absolutamente devastador que a pandemia teve sobre a reputação e a posição internacional dos Estados Unidos.
Em uma sombria temporada de pandemia, o Covid reduziu a frangalhos a ilusão do excepcionalismo americano. No auge da crise, com mais de 2 mil pessoas morrendo por dia, os norte-americanos viram-se no interior de um Estado falido, comandado por um governo disfuncional e incompetente, em grande parte responsável pelas taxas de mortalidade, o que acrescentou um trágico fim à reivindicação, pelos EUA, de supremacia no mundo.
Pandemias e pestes costumam mudar o curso da história, e nem sempre de uma maneira imediatamente evidente para os que sobrevivem. No século XIV, a Peste Negra dizimou quase metade da população da Europa. A escassez de mão de obra levou ao aumento dos salários. As expectativas crescentes culminaram na revolta camponesa de 1381, um ponto de inflexão que marcou o início do fim da ordem feudal que dominou a Europa medieval por mil anos.
A pandemia da covid será lembrada como um desses momentos da história, um evento seminal cujo significado só se revelará na esteira da crise. A pandemia vai marcar nossa era tanto quanto o assassinato do arquiduque Ferdinando em 1914, a Grande Depressão de 1929 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933 tornaram-se referências fundamentais do século passado. Todos mensageiros de resultados e consequências maiores.
O significado histórico da covid não reside no quanto ela interfere em nossas vidas cotidianas. Afinal, a mudança é uma constante quando de cultura se trata. Todas as pessoas, em todos os lugares, em todos os momentos, estão sempre lidando com novas possibilidades de vida. Conforme as empresas eliminam ou reduzem o tamanho dos escritórios centrais, os funcionários trabalham em casa, os restaurantes e os shoppings fecham, o streaming traz entretenimento e eventos esportivos para casa e as viagens aéreas se tornam cada vez mais problemáticas e miseráveis, as pessoas adaptam-se, como sempre fizeram. A fluidez da memória e a capacidade de esquecer são, talvez, os traços mais assustadores de nossa espécie. Como a história confirma, eles nos permitem enfrentar qualquer grau de degradação social, moral ou ambiental.
É um fato que a incerteza financeira irá projetar uma grande sombra. Por algum tempo, vai pairar sobre a economia global a humilde compreensão de que nem mesmo todo o dinheiro de todas as nações da Terra será suficiente para compensar as perdas sofridas quando o mundo inteiro deixa de funcionar, com trabalhadores e empresas de todos os lugares enfrentando uma escolha entre a sobrevivência econômica e a biológica.
Por mais perturbadoras que essas transições e circunstâncias sejam, com exceção de um colapso econômico completo, nenhuma delas se destaca como um momento decisivo na história. Mas se há uma coisa que se destaca. Foi o impacto absolutamente devastador que a pandemia teve sobre a reputação e a posição internacional dos Estados Unidos.
Em uma sombria temporada de pandemia, o Covid reduziu a frangalhos a ilusão do excepcionalismo americano. No auge da crise, com mais de 2 mil pessoas morrendo por dia, os norte-americanos viram-se no interior de um Estado falido, comandado por um governo disfuncional e incompetente, em grande parte responsável pelas taxas de mortalidade, o que acrescentou um trágico fim à reivindicação, pelos EUA, de supremacia no mundo.
Pela primeira vez, a comunidade internacional viu-se coagida a enviar ajuda humanitária a Washington. O Irish Times escreveu que, por mais de dois séculos, “os Estados Unidos despertaram uma ampla gama de sentimentos no resto do mundo: amor e ódio, medo e esperança, inveja e desprezo, admiração e raiva. Mas há uma emoção que, até então, nunca tinha sido dirigida aos EUA: pena”. Enquanto médicos e enfermeiras norte-americanos aguardavam ansiosamente o transporte aéreo de emergência com suprimentos básicos vindo da China, a porta da história abria-se para o século asiático.
Nenhum império perdura por muito tempo, mesmo que poucos antecipem seu fim. Todo reino nasce para morrer. O século XV pertenceu aos portugueses, o XVI à Espanha, o XVII aos holandeses. A França dominou o século XVIII; e a Grã-Bretanha, o XIX. Enfraquecidos e falidos pela Grande Guerra, os britânicos mantiveram uma pretensão de dominação até 1935, quando seu império atingiu a maior extensão geográfica. Àquela altura, é claro, a tocha já havia passado fazia tempo para as mãos dos Estados Unidos.
Nenhum império perdura por muito tempo, mesmo que poucos antecipem seu fim. Todo reino nasce para morrer. O século XV pertenceu aos portugueses, o XVI à Espanha, o XVII aos holandeses. A França dominou o século XVIII; e a Grã-Bretanha, o XIX. Enfraquecidos e falidos pela Grande Guerra, os britânicos mantiveram uma pretensão de dominação até 1935, quando seu império atingiu a maior extensão geográfica. Àquela altura, é claro, a tocha já havia passado fazia tempo para as mãos dos Estados Unidos.
Em 1940, já com a Europa em chamas, os EUA detinham um exército menor que o de Portugal ou da Bulgária. Ao longo de quatro anos, 18 milhões de homens e mulheres passaram a vestir uniformes, e muitos outros milhões passaram a trabalhar em jornadas duplas nas minas e fábricas que fizeram os Estados Unidos tornarem-se o arsenal da democracia, como prometido pelo presidente Roosevelt.
Quando os japoneses, seis semanas depois de Pearl Harbor, assumiram o controle de 90% do suprimento mundial de borracha, os EUA baixaram o limite de velocidade para 60 km/h para preserver os pneus e, em três anos, inventaram do nada uma indústria de borracha sintética que permitiu aos exércitos aliados derrubar os nazistas. No auge, a fábrica Willow Run, de Henry Ford, produzia um caça B-24 Liberator a cada duas horas, 24 horas por dia. Os estaleiros em Long Beach e Sausalito fabricavam navios Liberty a uma taxa de dois por dia, durante quatro anos; o recorde foi um navio construído em 4 dias, 15 horas e 29 minutos. Uma única fábrica americana, o Arsenal de Detroit, da Chrysler, construiu mais tanques do que todo o Terceiro Reich.
Na imediato pós-guerra, com a Europa e o Japão em cinzas, os Estados Unidos, com apenas 6% da população mundial, respondiam por metade da economia global, incluindo a produção de 93% de todos os automóveis. Tal domínio econômico deu origem a uma classe média vibrante, um movimento sindical que permitia a um homem com educação limitada ter casa e carro, sustentar uma família e enviar seus filhos para boas escolas. Não era de forma alguma um mundo perfeito, mas a riqueza permitia uma trégua entre capital e trabalho, uma reciprocidade de oportunidades em uma época de rápido crescimento e declínio da desigualdade de renda, marcada por altas taxas de impostos para os ricos — que já não eram os únicos beneficiários da era de ouro do capitalismo americano.
Mas a liberdade e a riqueza têm um preço. Os Estados Unidos, uma nação praticamente desmilitarizada às vésperas da Segunda Guerra Mundial, nunca mais recuaram, mesmo após a vitória. Até hoje, tropas norte-americanas estão estacionadas em 150 países. Desde os anos 1970, a China não entrou em guerra nenhuma vez; e os EUA não passaram um dia em paz. Recentemente, o ex-presidente Jimmy Carter observou que os EUA, em seus 242 anos de história, desfrutaram de apenas 16 anos de paz, tornando-se assim, como ele escreveu, “a nação mais bélica da história mundial”. Desde 2001, os EUA gastaram mais de 6 trilhões de dólares em operações militares e guerra, dinheiro que poderia ter sido investido na infraestrutura doméstica. Enquanto isso, a China construiu sua nação, assentando mais cimento a cada três anos do que os Estados Unidos fizeram em todo o século XX.
Enquanto os EUA policiavam o mundo, a violência voltou para casa. Em 6 de junho de 1944, no famoso “Dia D”, o número de Aliados mortos foi de 4.414; em 2019, a violência doméstica com armas de fogo matou aproximadamente a mesma quantidade de homens e mulheres norte-americanos somente no primeiro quadrimestre. Em junho daquele ano, as armas nas mãos dos estadunidenses comuns causaram mais baixas do que as que os aliados sofreram na Normandia no primeiro mês de uma campanha que consumiu as forças militares de cinco nações.
Mas a liberdade e a riqueza têm um preço. Os Estados Unidos, uma nação praticamente desmilitarizada às vésperas da Segunda Guerra Mundial, nunca mais recuaram, mesmo após a vitória. Até hoje, tropas norte-americanas estão estacionadas em 150 países. Desde os anos 1970, a China não entrou em guerra nenhuma vez; e os EUA não passaram um dia em paz. Recentemente, o ex-presidente Jimmy Carter observou que os EUA, em seus 242 anos de história, desfrutaram de apenas 16 anos de paz, tornando-se assim, como ele escreveu, “a nação mais bélica da história mundial”. Desde 2001, os EUA gastaram mais de 6 trilhões de dólares em operações militares e guerra, dinheiro que poderia ter sido investido na infraestrutura doméstica. Enquanto isso, a China construiu sua nação, assentando mais cimento a cada três anos do que os Estados Unidos fizeram em todo o século XX.
Enquanto os EUA policiavam o mundo, a violência voltou para casa. Em 6 de junho de 1944, no famoso “Dia D”, o número de Aliados mortos foi de 4.414; em 2019, a violência doméstica com armas de fogo matou aproximadamente a mesma quantidade de homens e mulheres norte-americanos somente no primeiro quadrimestre. Em junho daquele ano, as armas nas mãos dos estadunidenses comuns causaram mais baixas do que as que os aliados sofreram na Normandia no primeiro mês de uma campanha que consumiu as forças militares de cinco nações.
Mais do que qualquer outro país, os Estados Unidos, na era do pós-guerra, enalteciam o indivíduo às custas da comunidade e da família. Era o equivalente sociológico de dividir um átomo. O que foi ganho em termos de mobilidade e liberdade pessoal veio às custas da devastação de um propósito comum. Em grandes regiões dos EUA, a família como instituição perdeu seu fundamento. Na década de 1960, 40% dos casamentos terminavam em divórcio. Apenas 6% dos lares americanos tinham avós morando sob o mesmo teto que os netos: os mais velhos passaram a ser abandonados em asilos de idosos.
Com slogans como o “24/7” celebrando a dedicação total ao local de trabalho, homens e mulheres exaurem-se em empregos que só reforçam seu isolamento de suas famílias. O pai norte-americano médio passa menos de 20 minutos por dia em comunicação direta com seu filho. Quando um jovem chega aos 18 anos, ele ou ela terá passado dois anos inteiros assistindo televisão ou olhando para a tela de um laptop, contribuindo para uma epidemia de obesidade que o Estado-Maior Conjunto classificou como crise de segurança nacional.
Com slogans como o “24/7” celebrando a dedicação total ao local de trabalho, homens e mulheres exaurem-se em empregos que só reforçam seu isolamento de suas famílias. O pai norte-americano médio passa menos de 20 minutos por dia em comunicação direta com seu filho. Quando um jovem chega aos 18 anos, ele ou ela terá passado dois anos inteiros assistindo televisão ou olhando para a tela de um laptop, contribuindo para uma epidemia de obesidade que o Estado-Maior Conjunto classificou como crise de segurança nacional.
Somente metade dos estadunidenses afirmam ter relações sociais significativas, do tipo “cara-a-cara”, diariamente. A nação consome dois terços da produção mundial de medicamentos antidepressivos. O colapso da família da classe trabalhadora foi responsável, em parte, pela crise de opióides que fez com que os acidentes de carro se tornassem a principal causa de morte de cidadãos com menos de 50 anos.
Na base dessa transformação e declínio encontramos um abismo cada vez maior entre aqueles americanos que têm e os que têm pouco ou nada. Existem disparidades econômicas em todas as nações, criando uma tensão que pode ser muito perturbadora quando as desigualdades são injustas. No entanto, em qualquer cenário, as forças negativas que destroem uma sociedade são atenuadas ou mesmo silenciadas quando há outros elementos que reforçam a solidariedade social — seja a fé religiosa, a força e conforto da família, o orgulho da tradição, a fidelidade à terra, um espírito de lugar.
Mas quando todas as suas antigas certezas revelam-se mentiras, quando a promessa de uma vida boa para uma família trabalhadora é quebrada com o fechamento de fábricas ou com líderes corporativos enriquecendo a cada dia, criando empregos no exterior, o contrato social é irrevogavelmente quebrado. Por duas gerações, os EUA celebraram a globalização com uma intensidade emblemática, apesar de ela não ser mais do que apenas capital à espreita, na busca de fontes de trabalho cada vez mais baratas — como qualquer trabalhador pode perceber.
Mas quando todas as suas antigas certezas revelam-se mentiras, quando a promessa de uma vida boa para uma família trabalhadora é quebrada com o fechamento de fábricas ou com líderes corporativos enriquecendo a cada dia, criando empregos no exterior, o contrato social é irrevogavelmente quebrado. Por duas gerações, os EUA celebraram a globalização com uma intensidade emblemática, apesar de ela não ser mais do que apenas capital à espreita, na busca de fontes de trabalho cada vez mais baratas — como qualquer trabalhador pode perceber.
Por muitos anos, a direita conservadora dos Estados Unidos invocou uma nostalgia pela década de 1950 e por uma América que nunca foi, mas deve-se presumir que existiu para racionalizar seu sentimento de perda e abandono, seu medo de mudança, seus amargos ressentimentos e persistente desprezo pelos movimentos sociais da década de 1960, uma época de novas aspirações para mulheres, gays e negros. Na verdade, pelo menos em termos econômicos, o país dos anos 1950 lembrava muito mais a Dinamarca do que os EUA de hoje. As taxas marginais de impostos para os ricos eram de 90%. Os salários dos CEOs eram, em média, apenas 20 vezes maiores que os de seus funcionários de média gerência.
Hoje, o salário-base dos que estão no topo é normalmente 400 vezes maior do que o de seus demais assalariados — e muitos deles ganham ainda mais, com participações em ações e outros benefícios. A elite que compõe o 1% dos norte-americanos controla 30 trilhões de dólares em ativos, enquanto a metade inferior tem mais dívidas do que ativos. Os três americanos mais ricos têm mais dinheiro do que os 160 milhões mais pobres de seus compatriotas. Quase um quinto dos lares americanos tem patrimônio líquido zero ou negativo, um número que sobe para 37% entre as famílias negras. A riqueza média das famílias negras é um décimo da dos brancos. A grande maioria dos norte-americanos — brancos, negros e pardos — estão a apenas dois salários da falência. Apesar de viver em uma nação que se gaba como a mais rica da história, a maioria dos americanos vive na corda bamba, sem rede de segurança para evitar uma queda.
Com a crise do Covid, 40 milhões de norte-americanos perderam seus empregos e 3,3 milhões de empresas fecharam, incluindo 41% de todas as empresas de propriedade de negros. Os estadunidenses negros, que superam significativamente os brancos nas prisões federais, apesar de serem apenas 13% da população, estão sofrendo taxas chocantemente altas de morbidez e mortalidade, morrendo quase três vezes mais do que os brancos. A regra fundamental da política social norte-americana — não deixar nenhum grupo étnico ficar abaixo dos negros, ou permitir que ninguém sofra mais indignidades — tornou-se verdadeira mesmo em meio a uma pandemia, como se o vírus estivesse seguindo as pegadas da própria história americana.
O coronavírus não derrubou os EUA: ele simplesmente revelou aquilo que havia sido abandonado há muito tempo. À medida em que a crise se desenrolava, com mais um norte-americano morrendo por minuto todo dia, um país que antes produzia aviões de caça por hora não conseguia sequer produzir as máscaras de papel ou os cotonetes essenciais para o rastreamento da doença. A nação que derrotou a varíola e a poliomielite, e liderou o mundo em inovações e descobertas médicas por gerações, foi reduzida ao ridículo quando o palhaço-presidente defendeu o uso de desinfetantes domésticos como tratamento para uma doença que ele não tinha nem como começar a compreender, intelectualmente.
Enquanto vários países agiam rapidamente para conter o vírus, os Estados Unidos tropeçavam na negação, como se estivessem cegos. Com menos de 4% da população global, rapidamente os EUA tornaram-se responsáveis por mais de um quinto das mortes por Covid. A porcentagem de vítimas mortais norte-americanas foi seis vezes maior do que a média global. Alcançar a maior taxa de morbidade e mortalidade do mundo não provocou vergonha, mas apenas mais mentiras, bodes expiatórios e o orgulhar-se de curas milagrosas tão duvidosas quanto as reivindicações de um vigarista em formação.
Enquanto os Estados Unidos respondiam à crise feito uma ditadura corrupta, os verdadeiros ditadores do mundo aproveitaram a oportunidade para tomar conta do terreno, saboreando um raro senso de superioridade moral, especialmente após a morte de George Floyd em Minneapolis. O líder autocrático da Chechênia, Ramzan Kadyrov, fustigou os EUA por “violar maliciosamente os direitos dos cidadãos comuns”. Os jornais norte-coreanos também se opuseram à “brutalidade policial” estadunidense. Citado na imprensa iraniana, o aiatolá Khomeini se regozijou: “Os Estados Unidos começaram o seu próprio processo de autodestruição”.
O desempenho de Trump e a crise dos Estados Unidos conseguiram até desviar a atenção da má gestão da China no surto inicial em Wuhan, isso sem mencionar seu movimento para esmagar a democracia em Hong Kong. Quando um funcionário americano levantou a questão dos direitos humanos no Twitter, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, invocando o assassinato de George Floyd, respondeu com uma frase curta: “Não consigo respirar”.
Essas observações politicamente motivadas podem ser fáceis de esquivar. Mas os norte americanos não colaboram com eles mesmos. Seu processo político tornou possível a ascensão de um demagogo, tão moral e eticamente comprometido quanto alguém poderia ser, ao mais alto cargo do país, numa desgraça nacional. Como cunhou certo escritor britânico, “sempre houve pessoas burras no mundo, e muitas pessoas desagradáveis também. Mas raramente a burrice foi tão desagradável, ou a maldade tão burra”.
O presidente norte americano vive para cultivar ressentimentos, demonizar seus oponentes, validar o ódio. Sua principal ferramenta de governo é a mentira; em 9 de julho de 2020, a contagem documentada de suas distorções e declarações falsas chegava a 20.055. Se o primeiro presidente dos EUA, George Washington, ficou famoso por não saber mentir, o atual não consegue reconhecer a verdade. Invertendo as palavras e os sentimentos de Abraham Lincoln, este troll sombrio celebra a crueldade para todos e a bondade para ninguém.
Por mais detestável que seja, Trump é muito menos causa do declínio dos Estados Unidos do que uma consequência direta deste. Enquanto os estadunidenses olham-se no espelho e se dão conta somente do mito de seu excepcionalismo, eles permanecem quase que bizarramente incapazes de ver o que realmente aconteceu com seu país. A república que definiu o livre fluxo de informações como o sangue vital da democracia, hoje ocupa a 45ª posição entre as nações quando se trata de liberdade de imprensa. Em uma terra que antes acolhia as massas aglomeradas do mundo, hoje mais pessoas preferem construir um muro ao longo da fronteira sul do que apoiar os cuidados de saúde e proteção para as mães e crianças indocumentadas que chegam em desespero às suas portas. Em um abandono completo do bem coletivo, as leis dos EUA definem a liberdade como o direito inalienável de um indivíduo de possuir um arsenal pessoal de armas, um direito natural que supera até mesmo a segurança das crianças; somente na última década, 346 alunos e professores americanos foram baleados em áreas escolares.
O culto americano ao indivíduo nega não apenas a comunidade, como a própria ideia de sociedade. Ninguém deve nada a ninguém. Todos devem estar preparados para lutar por tudo: educação, abrigo, alimentação, assistência médica. O que toda democracia próspera e bem-sucedida considera ser direitos fundamentais — saúde universal, acesso igualitário a educação pública de qualidade, rede de segurança social para menos favorecidos, idosos e doentes — os Estados Unidos consideram indulgências socialistas, como se fossem sinais de fraqueza.
Como pode o resto do mundo esperar que os Estados Unidos lidem com as ameaças globais — mudança climática, crise de extinção, pandemias — se o país não tem mais nenhum senso de propósito benigno ou de bem-estar coletivo, nem dentro de sua própria comunidade nacional? O patriotismo embrulhado em bandeiras não substitui a compaixão; e raiva e hostilidade não são páreos para o amor. Aqueles que se aglomeram em praias, bares e comícios políticos, colocando em risco seus concidadãos, não estão exercendo a liberdade — estão exibindo, como observou um comentarista, a fraqueza de um povo que não tem o estoicismo para suportar uma pandemia, nem a coragem para derrotá-la. Na liderança, temos Donald Trump, um guerreiro sem preparo físico, um mentiroso e uma fraude, a caricatura grotesca de um homem forte, com a espinha dorsal de um brigalhão.
Nos últimos meses, circulou na internet uma piada sugerindo que morar no Canadá hoje é como ter um apartamento em cima de um laboratório de metanfetamina. O Canadá não é um lugar perfeito, mas lidou bem com a crise do Covid, principalmente na Colúmbia Britânica, onde moro. Vancouver fica a apenas três horas de estrada ao norte de Seattle, onde o surto nos EUA começou. Metade da população de Vancouver é asiática, e normalmente dezenas de voos chegam da China e do Leste Asiático diariamente. Por lógica, o país deveria ter sido atingido com muita força, mas o sistema de saúde funcionou extremamente bem. Durante a crise, as taxas de teste em todo o Canadá têm sido consistentemente cinco vezes maiores que as dos EUA. Em uma base per capita, o Canadá sofreu metade da morbidade e mortalidade. Para cada pessoa que morreu na Colúmbia Britânica, 44 morreram em Massachusetts, um estado com uma população comparável que relatou mais casos de Covid do que todo o Canadá. Em 30 de julho, mesmo com as taxas de infecção e morte pelo vírus disparadas em grande parte dos Estados Unidos, com 59.629 novos casos relatados apenas naquele dia, os hospitais na Colúmbia Britânica registraram um total de apenas cinco pacientes infectados.
Quando meus amigos americanos me pedem uma explicação, incentivo-os a refletir sobre a última vez que compraram mantimentos no Safeway de seu bairro. Nos EUA, quase sempre existe um abismo racial, econômico, cultural e educacional entre o consumidor e a equipe do caixa — abismo este que é difícil, senão impossível, superar. No Canadá, a experiência é bem diferente. A pessoa interage, senão como colega, certamente como membro de uma comunidade mais ampla. A razão para isso é muito simples. O caixa pode não compartilhar do seu mesmo nível de riqueza, mas ele sabe que você sabe que ele ganha um salário digno graças aos sindicatos. E ele sabe que você sabe que os filhos deles e os seus, provavelmente, vão para a mesma escola pública do bairro. Terceiro, e mais importante, ele sabe que você sabe que se os filhos deles adoecerem, eles receberão exatamente o mesmo nível de assistência médica, não apenas de seus filhos, mas dos do primeiro-ministro. Esses três fios entrelaçados tornam-se o tecido da social-democracia canadense.
Questionado sobre o que pensava da civilização ocidental, Mahatma Gandhi deu a sua famosa resposta: “Acho que seria uma boa ideia.” Tal observação pode parecer cruel, mas reflete com precisão a visão dos EUA hoje sobre a perspectiva de qualquer social-democracia moderna. O Canadá teve um bom desempenho durante a crise do Covid devido ao seu contrato social, aos laços da comunidade, à confiança mútua e às suas instituições, seu sistema de saúde em particular, com hospitais que atendem às necessidades médicas do coletivo, não do indivíduo — e muito menos ao investidor privado, que enxerga cada cama de hospital como um imóvel alugado. A medida da riqueza em uma nação civilizada não é a moeda acumulada por poucos afortunados, mas sim a força e ressonância das relações sociais e os laços de reciprocidade que conectam todas as pessoas em um propósito comum.
Isso não tem nada a ver com ideologia política, mas tem tudo a ver com qualidade de vida. Os finlandeses vivem mais e têm menor probabilidade de morrer na infância ou no parto se comparados com os norte americanos. Os dinamarqueses ganham aproximadamente a mesma receita líquida que os norte americanos, trabalhando 20% menos. Eles pagam em impostos 19 centavos a mais para cada dólar ganho. Mas, em troca, recebem assistência médica gratuita, educação gratuita da pré-escola à universidade e a oportunidade de prosperar em uma economia de mercado livre e próspera com níveis drasticamente mais baixos de pobreza, falta de moradia, crime e desigualdade. O trabalhador médio é melhor remunerado, tratado com mais respeito e recompensado com seguro de vida, planos de aposentadoria, licença maternidade e seis semanas de férias remuneradas por ano. Todos esses benefícios apenas inspiram os dinamarqueses a trabalhar mais, com 80% dos homens e mulheres entre 16 e 64 anos engajados na força de trabalho, um número muito maior do que o dos Estados Unidos.
Os políticos americanos rejeitam o modelo escandinavo, enxergando-o como um socialismo rastejante, um comunismo leve, algo que nunca funcionaria nos Estados Unidos. Na verdade, as social-democracias são bem-sucedidas precisamente porque fomentam economias capitalistas dinâmicas que beneficiam todas as camadas da sociedade. Que a social-democracia nunca vá se estabelecer nos EUA pode muito bem ser verdade, mas, se for assim, é uma acusação impressionante, e exatamente o que Oscar Wilde tinha em mente quando brincou que os Estados Unidos foram o único país a sair da barbárie para chegar na decadência, sem passar pela civilização.
O coronavírus não derrubou os EUA: ele simplesmente revelou aquilo que havia sido abandonado há muito tempo. À medida em que a crise se desenrolava, com mais um norte-americano morrendo por minuto todo dia, um país que antes produzia aviões de caça por hora não conseguia sequer produzir as máscaras de papel ou os cotonetes essenciais para o rastreamento da doença. A nação que derrotou a varíola e a poliomielite, e liderou o mundo em inovações e descobertas médicas por gerações, foi reduzida ao ridículo quando o palhaço-presidente defendeu o uso de desinfetantes domésticos como tratamento para uma doença que ele não tinha nem como começar a compreender, intelectualmente.
Enquanto vários países agiam rapidamente para conter o vírus, os Estados Unidos tropeçavam na negação, como se estivessem cegos. Com menos de 4% da população global, rapidamente os EUA tornaram-se responsáveis por mais de um quinto das mortes por Covid. A porcentagem de vítimas mortais norte-americanas foi seis vezes maior do que a média global. Alcançar a maior taxa de morbidade e mortalidade do mundo não provocou vergonha, mas apenas mais mentiras, bodes expiatórios e o orgulhar-se de curas milagrosas tão duvidosas quanto as reivindicações de um vigarista em formação.
Enquanto os Estados Unidos respondiam à crise feito uma ditadura corrupta, os verdadeiros ditadores do mundo aproveitaram a oportunidade para tomar conta do terreno, saboreando um raro senso de superioridade moral, especialmente após a morte de George Floyd em Minneapolis. O líder autocrático da Chechênia, Ramzan Kadyrov, fustigou os EUA por “violar maliciosamente os direitos dos cidadãos comuns”. Os jornais norte-coreanos também se opuseram à “brutalidade policial” estadunidense. Citado na imprensa iraniana, o aiatolá Khomeini se regozijou: “Os Estados Unidos começaram o seu próprio processo de autodestruição”.
O desempenho de Trump e a crise dos Estados Unidos conseguiram até desviar a atenção da má gestão da China no surto inicial em Wuhan, isso sem mencionar seu movimento para esmagar a democracia em Hong Kong. Quando um funcionário americano levantou a questão dos direitos humanos no Twitter, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, invocando o assassinato de George Floyd, respondeu com uma frase curta: “Não consigo respirar”.
Essas observações politicamente motivadas podem ser fáceis de esquivar. Mas os norte americanos não colaboram com eles mesmos. Seu processo político tornou possível a ascensão de um demagogo, tão moral e eticamente comprometido quanto alguém poderia ser, ao mais alto cargo do país, numa desgraça nacional. Como cunhou certo escritor britânico, “sempre houve pessoas burras no mundo, e muitas pessoas desagradáveis também. Mas raramente a burrice foi tão desagradável, ou a maldade tão burra”.
O presidente norte americano vive para cultivar ressentimentos, demonizar seus oponentes, validar o ódio. Sua principal ferramenta de governo é a mentira; em 9 de julho de 2020, a contagem documentada de suas distorções e declarações falsas chegava a 20.055. Se o primeiro presidente dos EUA, George Washington, ficou famoso por não saber mentir, o atual não consegue reconhecer a verdade. Invertendo as palavras e os sentimentos de Abraham Lincoln, este troll sombrio celebra a crueldade para todos e a bondade para ninguém.
Por mais detestável que seja, Trump é muito menos causa do declínio dos Estados Unidos do que uma consequência direta deste. Enquanto os estadunidenses olham-se no espelho e se dão conta somente do mito de seu excepcionalismo, eles permanecem quase que bizarramente incapazes de ver o que realmente aconteceu com seu país. A república que definiu o livre fluxo de informações como o sangue vital da democracia, hoje ocupa a 45ª posição entre as nações quando se trata de liberdade de imprensa. Em uma terra que antes acolhia as massas aglomeradas do mundo, hoje mais pessoas preferem construir um muro ao longo da fronteira sul do que apoiar os cuidados de saúde e proteção para as mães e crianças indocumentadas que chegam em desespero às suas portas. Em um abandono completo do bem coletivo, as leis dos EUA definem a liberdade como o direito inalienável de um indivíduo de possuir um arsenal pessoal de armas, um direito natural que supera até mesmo a segurança das crianças; somente na última década, 346 alunos e professores americanos foram baleados em áreas escolares.
O culto americano ao indivíduo nega não apenas a comunidade, como a própria ideia de sociedade. Ninguém deve nada a ninguém. Todos devem estar preparados para lutar por tudo: educação, abrigo, alimentação, assistência médica. O que toda democracia próspera e bem-sucedida considera ser direitos fundamentais — saúde universal, acesso igualitário a educação pública de qualidade, rede de segurança social para menos favorecidos, idosos e doentes — os Estados Unidos consideram indulgências socialistas, como se fossem sinais de fraqueza.
Como pode o resto do mundo esperar que os Estados Unidos lidem com as ameaças globais — mudança climática, crise de extinção, pandemias — se o país não tem mais nenhum senso de propósito benigno ou de bem-estar coletivo, nem dentro de sua própria comunidade nacional? O patriotismo embrulhado em bandeiras não substitui a compaixão; e raiva e hostilidade não são páreos para o amor. Aqueles que se aglomeram em praias, bares e comícios políticos, colocando em risco seus concidadãos, não estão exercendo a liberdade — estão exibindo, como observou um comentarista, a fraqueza de um povo que não tem o estoicismo para suportar uma pandemia, nem a coragem para derrotá-la. Na liderança, temos Donald Trump, um guerreiro sem preparo físico, um mentiroso e uma fraude, a caricatura grotesca de um homem forte, com a espinha dorsal de um brigalhão.
Nos últimos meses, circulou na internet uma piada sugerindo que morar no Canadá hoje é como ter um apartamento em cima de um laboratório de metanfetamina. O Canadá não é um lugar perfeito, mas lidou bem com a crise do Covid, principalmente na Colúmbia Britânica, onde moro. Vancouver fica a apenas três horas de estrada ao norte de Seattle, onde o surto nos EUA começou. Metade da população de Vancouver é asiática, e normalmente dezenas de voos chegam da China e do Leste Asiático diariamente. Por lógica, o país deveria ter sido atingido com muita força, mas o sistema de saúde funcionou extremamente bem. Durante a crise, as taxas de teste em todo o Canadá têm sido consistentemente cinco vezes maiores que as dos EUA. Em uma base per capita, o Canadá sofreu metade da morbidade e mortalidade. Para cada pessoa que morreu na Colúmbia Britânica, 44 morreram em Massachusetts, um estado com uma população comparável que relatou mais casos de Covid do que todo o Canadá. Em 30 de julho, mesmo com as taxas de infecção e morte pelo vírus disparadas em grande parte dos Estados Unidos, com 59.629 novos casos relatados apenas naquele dia, os hospitais na Colúmbia Britânica registraram um total de apenas cinco pacientes infectados.
Quando meus amigos americanos me pedem uma explicação, incentivo-os a refletir sobre a última vez que compraram mantimentos no Safeway de seu bairro. Nos EUA, quase sempre existe um abismo racial, econômico, cultural e educacional entre o consumidor e a equipe do caixa — abismo este que é difícil, senão impossível, superar. No Canadá, a experiência é bem diferente. A pessoa interage, senão como colega, certamente como membro de uma comunidade mais ampla. A razão para isso é muito simples. O caixa pode não compartilhar do seu mesmo nível de riqueza, mas ele sabe que você sabe que ele ganha um salário digno graças aos sindicatos. E ele sabe que você sabe que os filhos deles e os seus, provavelmente, vão para a mesma escola pública do bairro. Terceiro, e mais importante, ele sabe que você sabe que se os filhos deles adoecerem, eles receberão exatamente o mesmo nível de assistência médica, não apenas de seus filhos, mas dos do primeiro-ministro. Esses três fios entrelaçados tornam-se o tecido da social-democracia canadense.
Questionado sobre o que pensava da civilização ocidental, Mahatma Gandhi deu a sua famosa resposta: “Acho que seria uma boa ideia.” Tal observação pode parecer cruel, mas reflete com precisão a visão dos EUA hoje sobre a perspectiva de qualquer social-democracia moderna. O Canadá teve um bom desempenho durante a crise do Covid devido ao seu contrato social, aos laços da comunidade, à confiança mútua e às suas instituições, seu sistema de saúde em particular, com hospitais que atendem às necessidades médicas do coletivo, não do indivíduo — e muito menos ao investidor privado, que enxerga cada cama de hospital como um imóvel alugado. A medida da riqueza em uma nação civilizada não é a moeda acumulada por poucos afortunados, mas sim a força e ressonância das relações sociais e os laços de reciprocidade que conectam todas as pessoas em um propósito comum.
Isso não tem nada a ver com ideologia política, mas tem tudo a ver com qualidade de vida. Os finlandeses vivem mais e têm menor probabilidade de morrer na infância ou no parto se comparados com os norte americanos. Os dinamarqueses ganham aproximadamente a mesma receita líquida que os norte americanos, trabalhando 20% menos. Eles pagam em impostos 19 centavos a mais para cada dólar ganho. Mas, em troca, recebem assistência médica gratuita, educação gratuita da pré-escola à universidade e a oportunidade de prosperar em uma economia de mercado livre e próspera com níveis drasticamente mais baixos de pobreza, falta de moradia, crime e desigualdade. O trabalhador médio é melhor remunerado, tratado com mais respeito e recompensado com seguro de vida, planos de aposentadoria, licença maternidade e seis semanas de férias remuneradas por ano. Todos esses benefícios apenas inspiram os dinamarqueses a trabalhar mais, com 80% dos homens e mulheres entre 16 e 64 anos engajados na força de trabalho, um número muito maior do que o dos Estados Unidos.
Os políticos americanos rejeitam o modelo escandinavo, enxergando-o como um socialismo rastejante, um comunismo leve, algo que nunca funcionaria nos Estados Unidos. Na verdade, as social-democracias são bem-sucedidas precisamente porque fomentam economias capitalistas dinâmicas que beneficiam todas as camadas da sociedade. Que a social-democracia nunca vá se estabelecer nos EUA pode muito bem ser verdade, mas, se for assim, é uma acusação impressionante, e exatamente o que Oscar Wilde tinha em mente quando brincou que os Estados Unidos foram o único país a sair da barbárie para chegar na decadência, sem passar pela civilização.
Prova dessa decadência terminal é a escolha que tantos americanos fizeram em 2016 de priorizar suas indignações pessoais, colocando seus próprios ressentimentos acima de qualquer preocupação com o destino do país e do mundo, enquanto corriam para eleger um homem cuja única ficha de apresentação era sua disposição de dar voz aos seus ódios, validar sua raiva e mirar em seus inimigos, reais ou imaginários. Estremecemos só de pensar no que significará para o mundo se os americanos em novembro, sabendo de tudo o que fazem, decidirem manter esse homem no poder político. Mas mesmo que Trump seja derrotado de forma retumbante, não está claro se uma nação tão profundamente polarizada será capaz de encontrar um caminho a seguir. Para o bem ou para o mal, o tempo dos EUA já passou.
O fim da era norte americana e a entrega da tocha para a Ásia não é motivo de comemorações, não é hora de se vangloriar. Em momentos de risco internacional, quando a humanidade poderia muito bem ter entrado em uma era das trevas para além de todos os horrores concebíveis, o poder industrial dos Estados Unidos, junto com o sangue de soldados russos comuns, literalmente, salvou o mundo. Os ideais americanos, conforme celebrados por Madison e Monroe, Lincoln, Roosevelt e Kennedy, ao mesmo tempo inspiraram e deram esperança a milhões.
Se os chineses estão em ascensão, quando eles estiverem no topo, com seus campos de concentração para os uigures e com o alcance implacável de seus militares, suas 200 milhões de câmeras de vigilância observando cada movimento e gesto de seu povo, certamente ansiaremos pelos melhores anos do século americano. Por enquanto, temos apenas a cleptocracia de Donald Trump. Trump, entre elogios aos chineses pelo tratamento dado aos uigures, descrevendo sua prisão e tortura como “a coisa certa a se fazer”, e seus conselhos médicos sobre o uso terapêutico de desinfetantes químicos, alegremente comentou: “É como um milagre, um dia vai desaparecer. ” Ele tinha em mente, é claro, o coronavírus. Mas, como outros já disseram, ele poderia muito bem estar se referindo ao sonho americano.
Sobre o autor
Wade Davis holds the Leadership Chair in Cultures and Ecosystems at Risk at the University of British Columbia. His award-winning books include “Into the Silence” and “The Wayfinders.” His new book, “Magdalena: River of Dreams,” is published by Knopf.
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