31 de outubro de 2021

A revolução egípcia ainda não foi derrotada

Alaa Abd el-Fattah é um dos mais famosos dos 60.000 prisioneiros políticos do Egito. Seu último livro, You Have Not Yet Been Defeated, é uma acusação condenatória do autoritarismo e da violência do Estado egípcio.

Nihal El Aasar


O dissidente egípcio e prisioneiro político Alaa Abd el-Faatah. (Wikimedia Commons)

Resenha do livro You Have Have Not Have Been yet Defeated: Selected Works 2011–2019 por Alaa Abd el-Fattah (Edições Fitzcarraldo, 2021, a serem publicadas nos EUA em março de 2022 pela Seven Stories Press).

Tradução / Em janeiro do ano passado, o décimo aniversário da revolução egípcia de 2011 passou sem cerimônias. Uma década depois, 60.000 presos políticos permanecem na prisão, um lembrete de que o atual regime do presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi ainda está aterrorizado com sua memória. Durante a década que se passou desde a revolução, as perspectivas para a esquerda no Egito não foram favoráveis. A repressão generalizada da oposição significou que as vozes críticas contra o regime não foram capazes de se organizar politicamente.

Dentro deste contexto repressivo, Alaa Abd el-Fattah, autor de You Have Not Yet Been Defeated, tem sido um dos críticos mais persistentes e de maior destaque do Estado autoritário egípcio. No You Have Not Yet Been Defeated, Alaa Abd el-Fattah tenta defender o legado da revolução contra seus detratores e testemunhar o uso contínuo da violência de seu governo para reprimir a oposição.

Dos 60.000 prisioneiros políticos atualmente sob custódia do Estado egípcio, Alaa Abd el-Fattah, coloquialmente referido como Alaa, é indubitavelmente o mais famoso. Um crítico ferrenho de todos os governos pós-revolucionários do Egito, ele passou a maior parte da última década na prisão. Alaa foi preso pelos três governos sucessivos de Hosni Mubarak, Mohamed Morsi e al-Sisi. Seus confrontos com os governos autoritários do Egito renderam-lhe o apoio de todo o mundo, e no Egito a hashtag #FreeAlaa tem sido uma presença constante nas redes sociais desde 2006.

Historicizando o Alaa

Para compreender a importância de Alaa, é preciso situá-lo dentro do contexto de declínio de mais de meio século da esquerda egípcia. Não é exagero dizer que a esquerda egípcia não se recuperou da derrota do país para Israel em 1967, na Guerra dos Seis Dias. A derrota simbolizou não apenas o fim do pan-arabismo, mas, mais importante, do socialismo árabe.

Após a morte de Gamal Abdel Nasser em 1970, Anwar Sadat, terceiro presidente do Egito, iniciou a política de “porta aberta”, ou Infitah, um projeto que levou o Egito a adotar os princípios do livre mercado e a política externa amigável aos EUA. Este novo realinhamento geopolítico incluiu a assinatura de um tratado de paz com Israel, a adoção dos ajustes estruturais recomendados pelo Fundo Monetário Internacional (FNI) e pelo Banco Mundial (BC) e a construção de laços mais estreitos com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

Esta última mudança resultou na infiltração do wahhabismo no Egito e no fortalecimento da Irmandade Muçulmana, que buscava se opor aos nasseristas e à esquerda egípcia. Independentemente do que se veja como as causas estruturais para este declínio, é indiscutível que, quando Hosni Mubarak chegou ao poder em 1981, a esquerda egípcia estava substancialmente fragmentada.

O projeto político de Mubarak deu continuidade às políticas pró-capitalistas iniciadas por Sadat. Mubarak construiu laços mais fortes entre as elites empresariais egípcias e a classe dominante, mas continuou reprimindo os partidos políticos. Em 25 de janeiro de 2011, o povo egípcio conseguiu derrubar Mubarak após ocupar a Praça Tahrir no Cairo por 18 dias. Quando Mubarak caiu, não existiam partidos populares ou mecanismos democráticos para preencher o vazio.

Enquanto os revolucionários de 2011 experimentaram a manifestação democrática na praça, a Irmandade Muçulmana – o único partido organizado permitido a existir – tomou o poder. Mohamed Morsi foi eleito presidente em junho de 2012, depois de uma eleição apressada e contestada. No verão de 2013, Morsi foi removido em um golpe e os mesmos problemas permaneceram: as forças contra revolucionárias foram capazes de ultrapassar os opositores do regime que, apesar de terem a determinação de enfrentar o Estado, foram incapazes de derrubar as antigas estruturas de poder.

É nestas condições incrivelmente difíceis que Alaa se destacou como um dos críticos mais perspicazes e persistentes do Estado egípcio.

Uma formação radical

A natureza exclusivamente online da política de Alaa faz sentido uma vez que se leva em consideração a natureza do atual Estado egípcio. Na internet, os militantes têm trabalhado no anonimato, duas armas contra um Estado que rapidamente reprime a oposição. Dentro deste mundo de militância online, Alaa reivindicou para si mesmo como um dos mais perspicazes críticos do Estado egípcio.

Muitas vezes descrito como um “revolucionário digital” por seus apoiadores dentro e fora do Egito em seus esforços para promover o jornalismo cidadão online, o engenheiro de software Alaa fez seu primeiro nome como blogueiro e ativista político. Para toda uma geração de egípcios que atingiu a maioridade na era pós-revolução, Alaa tem sido um emblema da dissidência política. Ele documentou a famosa revolução de janeiro postando vídeos nas redes sociais e blogando sobre a miríade de protestos que ocorreram em seu rescaldo. Apesar de ter sido preso inúmeras vezes antes e depois da revolução, Alaa continuaria escrevendo e compartilhando informações sobre os abusos cometidos pelas mãos do Estado egípcio.

Desde setembro de 2019, Alaa é mantido na ala de segurança máxima no complexo prisional de Tora. Ele está sendo confinado em prisão preventiva sob acusações falsas de pertencer a uma organização ilegal e de divulgar informações falaciosas. A Procuradoria Suprema de Segurança do Estado renova sua detenção de forma rotineira. As condições de sua prisão atual são as piores de suas múltiplas detenções que datam de 2006. Alaa não tem acesso a materiais de leitura, luz solar ou água limpa de forma confiável.

Alaa vem de uma família com uma rica história de militância e dissidência. Seu pai, Ahmed Seif el-Islam, um advogado de direitos humanos, foi preso por cinco anos em 1983 por desacato contra o governo. Sua mãe Laila Soueif é uma militante política, professora de matemática na Universidade do Cairo, e irmã do renomado romancista egípcio Ahdaf Soueif. A irmã de Alaa Mona Seif também é uma ativista política que usa suas redes para apontar as violações dos direitos humanos do governo. É através das postagens de Seif nas redes sociais que os apoiadores de Alaa são capazes de receber atualizações sobre sua condição. Sua outra irmã, Sanaa, é uma cineasta e militante que cumpre atualmente uma pena de 18 meses de prisão.

Os envolvimentos entre a vida familiar e política de Alaa são a fonte da forma profundamente personalizada com que ele escreve e fala sobre resistência. Em uma entrevista de 2006, ele disse:

A palavra militante não tem sentido. Foi inventada como parte de uma grande conspiração para dividir o mundo em grupos dos que se importam e dos que não se importam ou algo assim. Acredito que não existem ativistas e não ativistas, existem apenas atos de ativismo e graus de comprometimento, e nesse sentido, sim, fui criado para ser um ativista. Penso que antes do dia 25 de maio, meu envolvimento político era apenas uma desculpa para passar tempo com minha mãe. Os protestos anti-guerra de 2003 e 2004 foram na verdade uma ótima maneira de ver minha mãe e meu pai compartilhando algo. De alguma forma, o tempo que passamos juntos foi melhor do que nas grandes reuniões familiares.

A maneira de Alaa descrever os acontecimentos políticos é sempre de se situar em relação à sua família. É como se ele visse o próprio protesto político como um assunto de família com o qual não podia se relacionar de maneira desapaixonada.

Documentando a revolução

You Have Not Yet Been Defeated é uma coleção de ensaios de Alaa, posts em blogs, entrevistas e posts na rede social, reunidos junto com suas declarações públicas ao promotor público. É uma prova de uma vida passada em oposição e, como o título sugere, um apelo contra o desespero. Os escritos da coleção vão desde blogs de prisões, reflexões sobre 2011, declarações de solidariedade com a Palestina e comentários sobre o Estado da tecnologia e da vigilância.

Um número substancial dos ensaios deste livro – originalmente publicado no jornal egípcio de esquerda Mada Masr – foi contrabandeado para fora de sua cela prisional, e traduzido para o inglês por sua família e amigos para ser republicado nesta coleção. Muito poucos dos relatos de 2011 que surgiram nos últimos dez anos capturam a intensidade emocional do momento e a tragédia de seu desdobramento tão perceptivamente como Alaa faz no You Have Not Yet Been Defeated. Estes ensaios são uma leitura necessária para qualquer pessoa que deseje entender a última década da política egípcia.

Ostensivamente, a coleção parece estar estritamente preocupada com Alaa; entretanto, sua perspectiva serve como uma lente para a vida política contemporânea no Egito. Como o título sugere, You Have Not Yet Been Defeated é uma tentativa de nos encorajar a olhar além da derrota como uma estrutura para interpretar os acontecimentos da revolução de janeiro:

Eu não sei se a revolução acabou ou não. A revolução é um processo histórico. Quando eu digo derrota, quero dizer no sentido de uma batalha. Mas nós continuaremos existindo, e como continuaremos existindo, continuará havendo outras lutas.

É como uma tentativa de incutir nos leitores a fortaleza e a força para estas lutas futuras que a coleção de Alaa deve ser lida.

Alaa foi uma das primeiras pessoas no Egito a começar a usar o Facebook e o Twitter para o que mais tarde viria a ser conhecido como jornalismo cidadão. Comentários políticos através de artigos no Facebook, declarações ao procurador do Estado e tweets são coletados nesta edição junto com seus artigos mais longos. Estes últimos foram originalmente publicados em jornais egípcios como Al-Shorouk e Mada Masr, assim como em jornais em inglês como The Guardian, antes de serem reimpressos nesta coleção. Os limites entre diário pessoal, declaração oficial e jornalismo são, portanto, difusos no You Have Not Yet Been Defeated.

You Have Not Yet Been Defeated é realmente um livro sobre a revolução e suas consequências. Não na forma de um simples registro jornalístico dos acontecimentos, mas uma tentativa de transmitir as paixões e as frustrações que o momento tornou possível. Ao longo dos ensaios arranjados cronologicamente, o leitor tem uma noção de como a voz de Alaa muda à medida que sua prisão continua e o mundo ao seu redor parece ainda mais impenetrável à mudança.

O foco no pessoal, portanto, não é simplesmente uma peculiaridade do estilo de expressão de Alaa; é a prova de que, no Egito, as fronteiras entre o pessoal e o político não são respeitadas pelas autoridades políticas. Não é incomum, por exemplo, que a polícia egípcia pare as pessoas no centro do Cairo e peça para ver suas contas no Facebook.

A memória da Praça Tahrir

A Praça Tahrir foi tanto uma experiência coletiva quanto pessoal para Alaa – esta é a tensão central de seu livro. Alaa frequentemente escreve e fala de forma autodepreciativa sobre seu próprio envolvimento pessoal no movimento de oposição do Egito. Por exemplo, em novembro de 2013, ele tweetou, “Déjà vu, estou prestes a me entregar novamente às autoridades no sábado. Minha prisão acontecendo sempre é agora uma piada que corre todo o Egito”.

A relação de Alaa com sua própria história de prisão é complexa. No início dos anos pós-revolução, ele abraçou uma visão um tanto romântica do valor de enfrentar o establishment. Em seu estilo caracteristicamente emotivo, ele escreveu em dezembro de 2011:

Vamos à praça para descobrir que amamos a vida fora dela, e para descobrir que nosso amor pela vida é resistência. Corremos das balas porque amamos a vida, e caminhamos para a prisão porque amamos a liberdade.

Compare esta afirmação, repleta de otimismo, com outra feita por Alaa três anos mais tarde: “O que está acrescentando à opressão que eu sinto é que eu acho que esta prisão não serve para nada. Não é resistência, e não há revolução”.

O filósofo alemão Theodor Adorno disse uma vez que “para um homem que não tem mais uma pátria, escrever torna-se um lugar para se viver”. Alaa é a prova da verdade deste ditame. Não é que ele tenha renunciado de qualquer forma à sua pátria. Ao contrário, o esvaziamento da oposição extraparlamentar ao Estado egípcio após a revolução deixou os radicais sem uma comunidade política. É impossível entender o que é único em Alaa sem reconhecer este fator básico.

Confundir os escritos de Alaa com as reflexões solipsistas seria, portanto, perder o objetivo. Ele está no seu melhor estado quando escreve sobre a brutalidade do Estado egípcio. Em “To Be With the Martyrs, For That Is Far Better”, publicado em outubro de 2011, ele documenta o horrível massacre de Maspero. Trezentos egípcios foram feridos e trinta, na maioria cristãos, foram mortos pela polícia, que ceifou a vida dos manifestantes com porta-aviões blindados perto do prédio do Sindicato de Rádio e Televisão do Egito.

Na época, o incidente foi ignorado pela mídia estatal, que continua a negar o envolvimento dos militares nos assassinatos. O relato de Alaa é arrepiante precisamente porque ele não tenta esconder suas emoções. A perda foi coletiva, mas foi também pessoal. Mina Daniel, um dos camaradas da Praça Tahrir de Alaa, foi morto em Maspero. Pouco depois, Alaa foi preso por seu envolvimento nos acontecimentos. Sua esposa estava grávida de 8 meses na época e deu à luz enquanto ele estava na prisão.

Para Alaa, as lutas internacionais em todo o Sul Global permanecem firmemente no horizonte. A Palestina, em particular, aparece constantemente em seus escritos. Alaa nos lembra o quanto a causa palestina está intimamente ligada ao movimento anti-regime no Egito. Em uma entrevista de março de 2014, Democracy Now!, ele compara as táticas das Forças Armadas israelenses e egípcias:

É quase como se eles estivessem copiando os israelenses. Na verdade, eles arrancam oliveiras e demolem casas. Quando um ataque contra os militares acontece, eles vão e demolem as casas das famílias que estão relacionadas com o povo que acusam do ataque.

Em 2018, o New York Times publicou um artigo expondo operações operadas entre os militares egípcios e israelenses. Tais revelações mostram que a comparação entre os dois regimes não é superficial.

Alaa, não devemos esquecer, é o produto das condições sociais e históricas no Egito que tornam impossível a ação coletiva e a organização política. Isto significa que a resistência toma cada vez mais a forma de atos heróicos singulares. Dentro deste contexto, é compreensível que uma figura como Alaa possa ter subido à tona tanto no Egito quanto no mundo como um símbolo de oposição ao autoritarismo.

Alaa não é de forma alguma ingênuo e reconhece ele mesmo esta tensão. No principal ensaio da coleção, ele escreve:

O que devo fazer com um eu político – arrancado de seu contexto físico e humano comum? Como viver como um símbolo, por mais icônico que seja... Alaa Seif, Alaa Abd el-Fattah foi um papel que desempenhei na esfera pública.

Por mais notável que Alaa seja claramente uma figura pública, a política socialista não pode prosseguir com a lealdade de indivíduos. A tarefa da esquerda no Egito e em todo o mundo deve ser construir um movimento maior que qualquer indivíduo, para criar uma forma de resistência que não dependa do martírio. Não devemos ler este livro para fazer uma exceção ao Alaa. No seu melhor, ele tenta falar com, e trazer à existência, um movimento maior do que ele mesmo.

Temos que lutar para libertar Alaa, libertar Sanaa e libertar todos os outros prisioneiros cujos nomes não foram ouvidos.

Sobre o autor

Nihal El Aasar, é um pesquisador egípcio que vive em Londres.

30 de outubro de 2021

Documentos mostram como o governo dos EUA usou as mídias sociais para intervir na Venezuela

A indignação com a suposta intervenção russa nas eleições dos EUA tem sido generalizada. Mas documentos obtidos pela Jacobin revelam que os EUA intervieram nas eleições venezuelanas treinando forças da oposição para usar o Facebook contra o partido do presidente Nicolás Maduro.

Tim Gill e Christian Lewelling

Jacobin

O presidente venezuelano Nicolás Maduro fala durante uma entrevista coletiva em Caracas, Venezuela, em agosto de 2021. (Manaure Quintero / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / Nos últimos anos, os políticos dos EUA condenaram o Facebook por prejudicar a saúde das crianças, amplificar a violência de Washington à Índia e disseminar desinformações sobre a COVID-19 e sua vacina na pandemia. As críticas seguem um vazamento de milhares de documentos internos da empresa conhecidos como Facebook Papers, que revelam que, apesar do conhecimento do papel de seus produtos em alimentar uma série de comportamentos tóxicos, o Facebook se recusou a tomar qualquer ação significativa em resposta, colocando seus lucros na frente da saúde social.

Nos últimos anos, os políticos dos EUA condenaram o Facebook por prejudicar a saúde das crianças, amplificar a violência de Washington à Índia e disseminar desinformações sobre a COVID-19 e sua vacina na pandemia. As críticas seguem um vazamento de milhares de documentos internos da empresa conhecidos como Facebook Papers, que revelam que, apesar do conhecimento do papel de seus produtos em alimentar uma série de comportamentos tóxicos, o Facebook se recusou a tomar qualquer ação significativa em resposta, colocando seus lucros na frente da saúde social.

No entanto, enquanto os parlamentares estão explorando as consequências políticas do vazamento para aumentar os ataques em andamento à gigante da tecnologia, os contribuintes também podem estar interessados ​​em saber por que o governo dos EUA financiou programas para ajudar partidos políticos e ativistas da oposição a usar o Facebook para minar governos estrangeiros. E a Venezuela é um caso a parte que merece uma análise detalhada.

Após a morte do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, o Instituto Democrático Nacional – um braço independente do governo dos EUA criado para financiar e apoiar partidos políticos no exterior de uma maneira mais formal do que a Agência Central de Inteligência (CIA) – financiou membros da oposição venezuelana para usar um uma das maiores redes sociais da internet para mobilizar seus apoiadores e atrair seguidores do governo socialista “para o outro lado”. Recentemente, recebemos documentos do governo dos EUA, através de uma solicitação da Lei de Liberdade de Informação (FOIA), que ilustram como o governo desenvolveu um programa focado no uso do Facebook para ajudar a oposição venezuelana nas eleições municipais de 2013 e legislativas em 2015. Os documentos mostram, em outras palavras, que o governo dos EUA está usando ativamente as redes sociais para se intrometer nas eleições de outros países.

A crise do Facebook

Ativistas de todo o mundo usaram o Facebook, Twitter e outros meios online para transmitir mensagens, coordenar protestos e até derrubar governos nos últimos tempos. Dada a importância do Facebook em particular, tem havido uma pressão crescente para regular as mensagens no site. Parlamentares dos EUA, por exemplo, criticaram a empresa por não reprimir supostas campanhas de desinformação da Rússia destinadas a semear o caos e influenciar as eleições nos Estados Unidos. Além disso, muitos denunciaram o fracasso da corporação em reprimir os seguidores do Trump que alegaram que as eleições de 2020 eram fraudulentas e usaram o site para organizar a rebelião de 6 de janeiro em Washington, DC.

Na esteira dos Documentos do Facebook, os políticos dos EUA reacenderam suas críticas à gigante da tecnologia. Os documentos revelam que os executivos do Facebook sabiam que a “mecânica central” de suas plataformas (ou seja, os algoritmos) leva os usuários às postagens mais sensacionalistas, controversas e polarizadoras em seu feed, resultando em uma série de efeitos socialmente tóxicos.

Por exemplo, os documentos revelam que, apesar de pesquisas internas verificarem que o aplicativo Instagram, da mesma empresa, prejudica a auto-estima das crianças, os executivos do Facebook avançaram com planos de desenvolver um aplicativo semelhante para crianças menores de 13 anos – e só interromperam esses planos duas semanas após a os Facebook Papers vieram à tona. Eles também detalham a crescente preocupação entre os funcionários da empresa sobre os impactos sociais mais amplos da plataforma, desde a facilitação da violência política e a disseminação de fake news sobre COVID-19 até o uso por cartéis de drogas, traficantes de seres humanos e grupos armados para contratar assassinos, documentar assassinatos, atrair mulheres para a servidão e promover o genocídio em países como Mianmar.

Os documentos mostram que, em resposta, os executivos do Facebook priorizaram os lucros recusando-se a tomar qualquer ação concreta – optando por táticas de gerenciamento de relações públicas – com a preocupação de que alterar seus algoritmos reduziria o engajamento do usuário e, portanto, o crescimento da plataforma.

O resultado foi a pior crise política da história da empresa (pelo menos desde a Cambridge Analytica), levando a empresa a anunciar um rebranding de sua marca. Tanto políticos democratas quanto republicanos capitalizaram a crise para criticar ainda mais o Facebook, até sinalizando apoio bipartidário para aumentar a regulamentação da gigante da tecnologia.

A senadora Marsha Blackburn, por exemplo, declarou: “Está claro que o Facebook prioriza o lucro sobre o bem-estar das crianças e de todos os usuários”, enquanto o senador Richard Blumenthal sugeriu que esse pode ser o objetivo do Facebook. “Momento Big Tobacco”, referindo-se à indignação após as revelações sobre como as maquinações da indústria do tabaco semearam dúvidas sobre os impactos negativos de seus produtos na saúde.

É um tanto divertido ouvir os senadores americanos expressarem suas preocupações com a orientação de uma empresa em direção ao lucro em uma sociedade capitalista – especialmente quando vários deles detêm milhões em ações das Big Techs. Mas quaisquer que sejam as críticas que os políticos americanos tenham sobre o impacto do Facebook em território nacional, o governo dos EUA está fazendo pior com o Facebook ao promover suas próprias políticas imperialistas no exterior.

Um plano de intervenção financiado pelos EUA

A partir de outubro de 2013, o National Endowment for Democracy (NED) – uma agência governamental criada pelo governo Reagan – forneceu quase US$ 300.000 para o Instituto Democrático Nacional (NDI) para um programa intitulado Venezuela: Improved Training and Communications Skills for Political Activists [Venezuela: treinamento aprimorado e habilidades de comunicação para ativistas políticos]. O NDI também foi fundado sob o governo Reagan, como o braço internacional do Partido Democrata, ao lado de seu homólogo GOP, o Instituto Republicano Internacional. Ambas instituições, no entanto, muitas vezes trabalham lado a lado e apoiam muitos dos mesmos atores e têm os mesmo objetivos no exterior.

O NED continua a ser a agência-mãe de ambos os grupos e recebe quase todo o seu financiamento dos contribuintes. Embora o NED e o NDI reivindiquem sua independência do governo dos EUA, ambos devem relatar suas atividades ao Congresso, que permanece sujeito às solicitações da FOIA.

Na descrição do programa, o NED afirma que o governo venezuelano tem procurado controlar a “mídia de massa” do país, usando-a como ferramenta para coagir seus cidadãos. Assim, o NED relata que os opositores e “ativistas políticos têm desafios particulares na comunicação com os cidadãos, bem como na organização e mobilização de apoiadores”. Alternativamente, o NED descreve a rede social como “menos vulnerável a restrições governamentais e… uma ferramenta útil para ativistas políticos independentes na Venezuela divulgarem mensagens e se organizarem”.

Embora o NED descreva cuidadosamente esses ativistas como independentes, é claro que este programa foi projetado para ativistas e membros do partido associados à organização de oposição da Mesa de la Unidad Democrática (MUD).

Formado em 2008, o MUD continua sendo o maior bloco de partidos de oposição na Venezuela, buscando unificar toda oposição existente em torno de um candidato de consenso contra membros do Partido Socialista da Venezuela (PSUV), o partido de Chávez e Maduro, em disputas eleitorais. Alguns de seus principais partidos incluem Primero Justicia, La Causa Radical, Un Nuevo Tiempo e Voluntad Popular, dos quais Juan Guaidó – o líder da oposição apoiado pelos EUA que tentou depor antidemocraticamente Maduro, inclusive pela força, e que alguns países reconhecem como o legítimo líder da Venezuela – continua fazendo parte.

Após a morte de Chávez em março de 2013 e subsequente a vitória presidencial de seu sucessor Nicolás Maduro no mês seguinte, a oposição começou a traçar estratégias para as eleições municipais em dezembro de 2013 e, igualmente importante, as eleições legislativas em 2015. O NED relata que enquanto as redes sociais são fundamental para a organização política contemporânea, a oposição venezuelana não estava equipada para o “uso das redes sociais e outras tecnologias de informação e comunicação (TICs)”.

Por causa disso, o NED financiou o NDI para fornecer vários serviços à oposição venezuelana.

Primeiro, o NDI planejou e sediou “um seminário fora da Venezuela sobre o uso de tecnologia e rede social para divulgação e engajamento dos cidadãos”. Além disso, o NDI criou uma “caixa de ferramentas virtual” hospedada em um site intitulado Innovation Network, também financiado pelo NED, oferecendo “curso online personalizado de capacitação em uma série de questões relacionadas à inovação política”. O site e seus cursos permanecem ativos.

Após as eleições municipais em dezembro de 2013, a equipe do NDI organizou uma “sessão de revisão de estratégia” com membros da oposição “para desenvolver estratégias de longo prazo e para manter contato com os cidadãos e melhorar sua capacidade de comunicar e divulgar informações usando as TIC”. Além disso, o NDI contratou um consultor “para fornecer treinamento contínuo aos participantes do programa”.

Após a implementação de seu programa, o NDI discutiu seus resultados no seu próprio site – onde eles consideraram este programa um estudo de caso de sucesso.

Com financiamento e treinamento do NDI, o MUD “mobilizou um banco de dados de eleitores que identificou e direcionou os eleitores através das redes sociais” e, de fato, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional venezuelana pela primeira vez desde que Chávez chegou ao poder em 1999. O NDI descreve como o MUD criou um banco de dados de eleitores, permitindo “extrapolar conclusões sobre tendências partidárias para grande parte do eleitorado... calculando a probabilidade de um eleitor ser um apoiador do PSUV, um apoiador do MUD ou um eleitor indeciso”.

O MUD criou então dois grupos: os que apoiam o MUD (Grupo A) e os que apoiam o PSUV (Grupo B). A partir daí, o NDI descreve a maneira como o MUD usou o Facebook para alcançar esses grupos:

o MUD realizou sua campanha de rede social no Facebook, que visava os eleitores com mensagens diferentes, levando em consideração suas inclinações políticas. O MUD tinha como alvo os eleitores do Grupo A com mensagens de voto de última hora, enquanto visava o Grupo B com informações sobre os candidatos do PSUV destinados a atraí-los para o outro lado eleitoral. Usando seu banco de dados, a campanha também identificou 8,5 milhões de eleitores no Facebook e os direcionou com mensagens igualmente específicas. As métricas do Facebook indicaram que as mensagens direcionadas estavam alcançando mais pessoas do que as campanhas anteriores. No dia da eleição, a campanha atingiu 6,3 milhões de eleitores e 2,9 milhões de eleitores interagiram com o conteúdo da campanha no Facebook pelo menos onze vezes.

No final, o NDI reivindica o crédito pelo sucesso da oposição, escrevendo que esta estratégia “teve em última análise um papel importante na sua retumbante vitória nas eleições de 2015” e que um “fator determinante para o sucesso da coligação nas eleições parlamentares de 2015 e foi um esforço de dois anos antes das eleições para conscientizar, treinar e alinhar as estruturas nacionais e regionais de comunicação de todos os partidos que conformam o MUD” (grifo nosso). Ou seja, o NDI organizou esse “esforço de dois anos” para treinar membros do MUD para usar as redes sociais em sua campanha contra o PSUV, conforme detalhado na doação que receberam do NED.

Nem a equipe do NED nem a equipe do NDI retornaram nossas mensagens para responder.

Uma longa história de intervenção dos EUA

Não surpresa para ninguém que o governo dos EUA financie esse programa. Os EUA têm uma longa – e sangrenta – história de intervenção em todo o mundo, particularmente na América Latina. Chegou até a tentar criar uma nova plataforma de rede social em Cuba para depor o governo. E, na Venezuela, nas últimas duas décadas, o governo dos EUA procurou continuamente depor Chávez e agora Maduro do poder. No entanto, essas estratégias acabaram falhando, ilustrando alguns dos limites do imperialismo dos EUA.

O governo venezuelano, sem dúvida, tornou-se mais autoritário sob Maduro. A questão que esses documentos recém-obtidos levantam, no entanto, não é se Maduro é “bom” ou “ruim”, mas se os contribuintes dos EUA devem ou não financiar e treinar membros da oposição venezuelana para usar o Facebook em suas campanhas políticas de direita.

Além disso, a indignação pela suposta intervenção russa nas campanhas eleitorais dos EUA não cessou até hoje. Por que, então, é permitido que o governo dos EUA se envolva em comportamento explicitamente partidário no exterior? Por que o governo dos EUA recebe um passe livre – apesar de sua longa história de violência – para intervir nos processos políticos de outros países?

Sobre os autores

Tim Gill é professor de sociologia na Universidade da Carolina do Norte.

Christian Lewelling é doutorando no Departamento de Sociologia da Universidade do Tennessee, Knoxville.

29 de outubro de 2021

Duna socialista?

Desde a sua publicação em 1965, Duna tem sido reivindicado tanto pela direita quanto pela esquerda - mas as suas críticas políticas e ecológicas tornam o seu retorno à telona propício para uma era de crise capitalista.

Joshua Pearson


Duna, de Frank Herbert, foi empurrado para a vanguarda do discurso popular graças à adaptação cinematográfica de Denis Villeneuve. (Chia Bella James / Warner Bros. Pictures)

Tradução / Duna, de Frank Herbert, foi empurrado para a vanguarda do discurso popular graças à adaptação de grande sucesso de Denis Villeneuve (e ao impulso de marketing associado). Apesar de seu status de clássico da ficção científica americana, Duna e a série que ele iniciou receberam menos atenção acadêmica do que contemporâneos como O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien ou as obras de Kurt Vonnegut, o que significa que há menos consenso de especialistas para orientar comentaristas, especialistas e pessoas comuns que tentam decifrar o significado e a política do romance, em sua época e na nossa.

A única coisa com a qual a maioria dos estudiosos e comentaristas parecem concordar é que "Duna é mais relevante do que nunca". Poucos concordam, contudo, sobre quais aspectos do texto são relevantes hoje, para quem ou por quê. Alguns criticaram Duna como um exemplo dos tropos mais tóxicos que espreitam na ficção científica, chamando o romance de um sonho febril orientalista, um hino à eugenia e um monumento sedutor à estética fascista; outros olham para o mesmo texto e veem uma crítica à adoração de heróis, uma história de advertência sobre sonhos revolucionários traídos e uma advertência sobre a soberania indígena subvertida por um charlatão carismático.

Ambas as interpretações são baseadas em evidências textuais claras, e parte do apelo duradouro do romance é a sua capacidade de inspirar abordagens aparentemente contraditórias. Na verdade, não é apesar, mas por causa destas contradições, que o romance exerceu tamanha influência sobre a imaginação da esquerda ao longo dos anos – e mantém hoje os seus usos para a política de esquerda.

É uma armadilha

Herbert disse muitas vezes que o tema central de Duna são os "perigos do super-herói". Em um trecho com esse nome, republicado em The Maker of Dune, de Tim O’Reilly, Herbert afirma que "a centelha original" do romance foi sua convicção de que "os super-heróis são desastrosos para a humanidade" e um desejo de dramatizar como o impulso de criação de mitos que coroa um herói evoca inevitavelmente um sistema social tóxico e totalitário de "demagogos, fanáticos, vigaristas... [e] espectadores inocentes e não tão inocentes."

Duna, então, explora o que torna o herói sedutor o suficiente para que as pessoas voluntariamente, até mesmo com entusiasmo, "entreguem suas faculdades de julgamento e tomada de decisão". Este enquadramento situa Duna ao lado de projetos como "Escala F", de Theodor Adorno, na grande tradição da teorização do pós-guerra sobre a subjetividade fascista. Em vez de teorizar a sedução da imaginação fascista, o romance de Herbert pretende funcionar como uma armadilha, um mecanismo destinado tanto a executar o canto da sereia da adoração do herói quanto, simultaneamente, a afastar os leitores dessa experiência, expondo os seus próprios desejos cúmplices por ela.

O resultado é um texto em que a narrativa superficial da fantasia do poder imperial é transmitida através de múltiplos pontos de vista, cada um dos quais enfraquece e complica os outros. O romance fornece muitas pistas sobre como os leitores pretendem abordar essa barreira de perspectivas. Um exemplo é o conselho de Leto ao jovem Paul:

Saber onde está a armadilha é o primeiro passo para evitá-la. Isto é como um combate individual, filho, só que em uma escala maior - uma finta dentro de uma finta dentro de uma finta... aparentemente sem fim. A tarefa é desvendar isso.

Leto fala da política dentro do romance, mas seu conselho também se aplica à política do romance. Pouco deve ser considerado pelo valor nominal. Cada elemento da narrativa pretende provocar reações no leitor, desviar sua atenção e prepará-lo para o próximo choque confuso ou estranho.

Os elementos críticos do romance são encontrados no enquadramento e no subtexto, na interação de perspectivas e, especialmente, no tom sardônico que permeia o texto. Aqui, novamente, o texto oferece ao leitor cuidadoso instruções claras. Em uma das epígrafes que enquadram a narrativa, Paulo fala de sua própria atuação como "herói":

A pessoa que experimenta a grandeza... deve ter um forte senso de sarcasmo. É isso que a separa da crença nas suas próprias pretensões. O sarcástico é tudo o que lhe permite mover-se dentro de si mesma.

O tom severo e autodilacerante de Duna é o que permite ao romance "se mover dentro" de si mesmo e de suas próprias pretensões heroicas. Diálogos afetados, apartes cáusticos e outras notas amargas amortecem elementos ostensivamente épicos e emocionantes da trama, reformulando a "jornada do herói" de Paul como uma descida à autodestruição cínica, como quando Paulo se volta para seu companheiro Stilgar, em um momento de triunfo, para descobrir que seu amigo "tornou-se um adorador", uma mera "criatura" arruinada pela própria ambição de Paul. Ao envenenar seu banquete de estética fascista, o romance se esforça para nos afastar definitivamente do ato de saborear.

O primeiro e, de certa forma, o mais importante leitor a cair nessa armadilha foi John W. Campbell, editor da revista Analog Science Fiction and Fact, onde a primeira versão de Duna foi publicada em série. Notório aficionado do übermenschen psíquico, Campbell ficou entusiasmado com esta "grande história", e a sua correspondência com Herbert sobre o manuscrito mostra pouca consciência inicial do tratamento crítico dado aos seus temas favoritos.

O abraço de Campbell permitiu que a narrativa ambiciosa visse a luz do dia: sem a publicação pela Analog, Herbert teria tido ainda mais dificuldade em vender o texto como um romance. Mas a sua reação também mostrou a fraqueza da abordagem do livro. Embora a sedutora estética fascista esteja bem na superfície, inescapável, os elementos críticos e estranhos provaram ser muito fáceis de ignorar, por Campbell e gerações de leitores que o seguiram. Pior ainda, é mais provável que esse mecanismo narrativo falhe com aqueles que já são alvo de recrutamento fascista: os jovens e aqueles que são mal servidos pelos nossos sistemas educativos devastados.

Para todos os leitores, dar sentido a uma narrativa composta de fintas dentro de fintas, "aparentemente sem fim", significa que sua interpretação final é principalmente uma função do nível em que você escolhe parar de cavar. Estudiosos como David Higgins e Jordan Scott Carroll mostraram recentemente que tanto leituras ingénuas como mais motivadas centradas no espetáculo fascista em Duna fizeram do romance uma pedra de toque da direita moderna; na verdade, como argumentaram Daniel Immerwahr e Chris Dite, algumas dessas leituras "ruins" podem estar mais próximas das opiniões do próprio Herbert do que muitos fãs gostam de admitir.

Então, o que é útil?

A chave para a esquerda, então, é prestar mais atenção às questões que o texto levanta, em vez das respostas contaminadas que oferece. Por exemplo, como mencionado, Duna nos dá uma crítica extensa da mística do herói. Pergunta como reavaliamos o papel de figuras políticas icónicas à luz do “mau heroísmo” de Paulo e como construímos a sua visão e carisma, evitando ao mesmo tempo o destino de Stilgar; como, em última análise, permanecemos camaradas na luta, em vez de ídolos e adoradores. (O segundo romance da série, O Messias de Duna, é útil aqui, à medida que as tendências autocráticas no “heroísmo” de Paul e suas consequências sombrias vêm à tona.)

Enquanto isso, como Immerwahr mostrou, a representação da indigeneidade de Herbert é, na melhor das hipóteses, vexatória. O retrato do romance do “poder do deserto” dos Fremen e da alfabetização ecológica subjacente a ele está impregnado do modo contracultural distintamente libertário do norte da Califórnia em meados da década de 1960, melhor expresso no ethos eclético DIY do Whole Earth Catalog de Stewart Brand – que apresentou materiais variando de suprimentos para apropriação original a livros sobre filosofia não-ocidental como “ferramentas” com as quais o moderno colonizador-colonial pode ser pioneiro em sua própria comunidade intencional.

A celebração da sabedoria ecológica no romance é sempre, ao mesmo tempo, a expansão do poder do sujeito imperial sobre si mesmo e sobre o seu ambiente - o que Higgins chamou de fantasias de “decolonização psíquica” - mesmo que o romance enfraqueça tais fantasias ao sustentar que essas tentativas de controle falham inevitavelmente.

À medida que procuramos caminhos para evitar a catástrofe ambiental, agir em solidariedade com as comunidades indígenas e honrar e aprender com os seus conhecimentos tradicionais será fundamental para a nossa sobrevivência. Como, então, podemos evitar as abordagens que o romance dramatiza, que se apropriam e instrumentalizam tal sabedoria, transformando-a em arma como meio de poder?

Questões semelhantes se aplicam à representação das mulheres no romance, que, como argumentou Kara Kennedy, é complexa e por vezes contraditória. Lady Jessica é, para efeitos mais práticos, a coprotagonista da primeira metade do romance, mas ela e o resto da misteriosa e potente ordem Bene Gesserit são, em última análise, considerados antagonistas de Paul, e sua cooptação de suas habilidades codificadas femininamente para seus próprios propósitos masculinos é fundamental para sua ascensão ao super-heroísmo.

Tornar essas mulheres as perpetradoras do programa de reprodução que produziu os poderes sobre-humanos de Paul (e os dos restantes personagens extraordinariamente habilidosos dos romances) significa que, em última análise, assumem a responsabilidade pelas próprias predileções eugenistas de Herbert.

As Bene Gesserit e os seus poderes são patologizados na narrativa de uma forma que faz com que envergonhá-los e repudiá-los sejam fundamentais para a “jornada heroica” do próprio Paulo – mas a sua apropriação do “Caminho Bene Gesserit” também nos ajuda a pensar sobre as formas como o capitalismo neoliberal e a gig economy explora e mercantiliza o trabalho de manutenção e cuidado de parentes, mais frequentemente realizado por mulheres.

O meu próprio trabalho se concentrou na forma como a fetichização da formação e do potencial humano de Duna antecipa a transformação dos seres humanos em capital humano, a ser gerido e desenvolvido pelo neoliberalismo para maximizar o retorno do investimento. Paul é um dos primeiros super-heróis cujos poderes se baseiam na especulação e na preempção: em vez de ser fantasticamente forte e poderoso como o Superman, ele usa a sua presciência e sentidos minuciosamente treinados para investir a força mínima nos pontos precisos onde terá o efeito máximo. Ele é o herói como arbitrador, um guerreiro ao estilo da “Revolução em Assuntos Militares” de Donald Rumsfeld.

A transformação de Paul num super-herói especulativo é ao mesmo tempo triunfo e autodestruição, estimulando a consideração da forma como a linguagem neoliberal infesta as nossas experiências e o nosso ativismo: “investimos o nosso tempo” e examinamos minuciosamente o “impacto desses investimentos”. Como, à luz de Duna, podemos reimaginar a nossa agência e os nossos objetivos fora da linguagem do desenvolvimento do capital humano que Paul dramatiza?

Lido com atenção para estas questões, Duna pode oferecer imagens poderosas e histórias de advertência para a organização e luta esquerdista. Isso nos ajuda a entender melhor aqueles que sucumbiram às delícias contaminadas que Duna oferece e aos paralelos - especialmente importante à luz das maneiras como a adaptação de Villeneuve suaviza as arestas sarcásticas do romance. Na melhor das hipóteses, Duna pode até nos dar algumas ferramentas para libertar outras pessoas da armadilha da narrativa,

Colaborador

Joshua Pearson ministra cursos de ficção científica na California State University, em Los Angeles.

A teoria da dependência do ponto de vista de Galeano

Considerações a partir do livro clássico de Eduardo Galeano.

Claudio Katz


Eduardo Galeano desenvolveu uma história sintética da região focada nos componentes do marxismo latino-americano de seu tempo.

Tradução / As Veias Abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência. “A divisão internacional do trabalho consiste em que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os tempos remotos”[i]. Esta breve oração oferece uma imagem concentrada e altamente ilustrativa da dinâmica da dependência. Por essa razão, foi citada em inúmeras ocasiões para retratar o status histórico de nossa região.

O livro de Galeano é um texto chave no pensamento social latino-americano, que convergiu com a formação da Teoria da Dependência e contribuiu para popularizar essa concepção. A primeira edição desse trabalho coincidiu com o auge da abordagem dependentista. Mas, em todas as suas páginas, demonstrou uma afinidade especial com a vertente marxista dessa teoria, que foi desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos e Vania Bambirra. Essa visão postulou que o subdesenvolvimento latino-americano corresponde à perda de recursos gerada pela inserção internacional subordinada da região.

Galeano difundiu precocemente essa abordagem no Uruguai, e seu livro repassa a história latino-americana em chave dependentista. Ele ilustra de forma muito acabada como “o modo de produção e a estrutura de classes foram sucessivamente determinados de fora… através de uma cadeia infinita de dependências sucessivas… que nos levaram a perder até mesmo o direito de nos chamarmos americanos”. Ele lembra que “como parte do vasto universo do capitalismo periférico”, a região “foi submetida à pilhagem e aos mecanismos de espoliação”[ii].

Essa caracterização do desenvolvimento frustrado da América Latina ligava os anos 70 a uma ampla produção historiográfica de mesmo signo. Esses estudos relacionavam os impedimentos impostos pela dependência com a repetição da expansão alcançada pela economia estadunidense. Galeano retomou uma ótica muito semelhante àquela exposta pelas pesquisas de Agustín Cueva e Luis Vitale[iii].

O pensador uruguaio desenvolveu uma história sintética da região, centrada nos quatro componentes do marxismo latino-americano da época. Denunciou a espoliação dos recursos naturais, criticou a exploração da força de trabalho, enfatizou a resistência dos povos e aderiu a um projeto socialista de emancipação.

Galeano desenvolveu seu texto combinando várias disciplinas e deu luz a um relato que impacta por sua beleza literária. Seu entusiasmo comove o leitor e gera um efeito explicitamente pretendido pelo livro.

O escritor uruguaio decidiu difundir um “manual de divulgação que fale de economia política no estilo de um romance de amor”. E alcançou um sucesso avassalador para este empreendimento surpreendente. Galeano comentou que seguiu o caminho de “um autor não especializado”, que embarcou na aventura de desvendar os “fatos que a história oficial esconde”[iv].Abordou este objetivo com uma linguagem afastada das “frases feitas” e distante das “fórmulas declamatórias”. Conseguiu consumar esse ambicioso propósito num trabalho impactante.

Galeano deixou para trás o enrijecimento, o academicismo e o discurso frio. Usou uma linguagem que sacudiu milhões de leitores e inaugurou um novo código para visibilizar a dramática realidade latino-americana. Veias abertas inspirou uma legião de escritores que adotaram, desenvolveram e enriqueceram essa forma de retratar a espoliação e a opressão sofridas por nossa região.

Afinidades conceituais e políticas

Galeano alinhou-se com a corrente radical da dependência liderada por Marini e Dos Santos, em franca contraposição com a vertente eclética e descritiva liderada por Fernando Henrique Cardoso. A afinidade de Veias Abertas com a primeira concepção é verificada em todos os enunciados do livro.

Neste trabalho, não se limitou a descrever o atraso econômico resultante de modelos políticos equivocados, nem observou a dependência como um traço ocasional ou meramente negativo. Também não endossou as associações com o capital estrangeiro que Cardoso promovia como solução para o atraso da região. Quando esse intelectual assumiu a presidência do Brasil, desdisse seus textos antigos, repudiou seu passado e objetou seus próprios escritos. Mas a semente de sua involução neoliberal estava presente na abordagem da dependência que postulou polemizando com Marini e Dos Santos.

A visão de Galeano também estava distante da CEPAL. Em nenhuma parte do livro esboçam-se ilusões heterodoxas sobre a superação do subdesenvolvimento regional através de uma industrialização capitalista liderada pela burguesia nacional. O protecionismo e a regulação estatal não são considerados como os caminhos a seguir para erradicar os males econômicos da América Latina.

A oposição a esse percurso verifica-se também nas inúmeras críticas à impotência das classes dominantes locais para colocar em marcha alguma modalidade efetiva de desenvolvimento regional. Destaca-se essa incapacidade para comandar um crescimento industrial semelhante ao alcançado pelas poderosas economias centrais.

Tal questionamento era o eixo do programa político inaugurado pela Revolução Cubana e conceitualizado pela teoria marxista da dependência. Esta abordagem propiciava uma transição direta e sem interrupções para o socialismo, afastando qualquer etapa intermediária de capitalismo nacional.

Veias Abertas inscreve-se nessa corrente de pensamento e compartilha o entusiasmo gerado pelo sucesso inicial da Revolução Cubana. Em numerosos parágrafos, irrompe o espírito de Che, o tom romântico e a esperança no triunfo dos projetos radicalizados. Também enfatiza as raízes históricas das lutas populares em toda a região.

Em nenhum momento Galeano esquece a base econômica estrutural da dependência que os estudos da Gunder Frank enfatizavam. Mas, ao contrário desses estudos, enfatiza a centralidade das resistências populares. Não fala apenas de estanho, mineração, latifúndio e plantações. Destaca as façanhas de Louverture no Haiti, a rebelião de Tupac Amaru no Peru e a ação de Hidalgo no México.

O livro resgata essas tradições de luta popular, destacando como a história oficial dilui a visibilidade destas resistências. Lembra que essa operação de ocultação muitas vezes leva o próprio oprimido a assumir como sua “uma memória fabricada pelo opressor”.

Galeano não apenas detalha como a América Latina foi estruturada durante séculos pela exploração dos índios e a escravidão dos negros. Ressalta também que os sujeitos afetados por esta espoliação reagiram com revoluções e revoltas. Essas sublevações abriram um horizonte alternativo de libertação.

Veias Abertas recorda também o nexo entre essas rebeliões e o assunto pendente da integração regional, legado pelo projeto inacabado de Bolívar. Essa ênfase no papel insurgente dos povos ilustra a afinidade de Galeano com o projeto político revolucionário da Teoria da Dependência.

Primarização e extrativismo

A sintonia de um livro escrito há cinquenta anos com uma concepção marxista em voga naquela época não constitui nenhuma surpresa. Mais problemático, contudo, é desvendar a atualidade de ambas visões. Em que terrenos se verifica a vigência de Veias Abertas e do dependentismo?

Há muitos fragmentos de um livro escrito em 1971 que parecem aludir a situações de 2021. Estes aspectos duradouros do texto (e da teoria que o inspirou) correspondem à condição dependente da América Latina e são corroborados sobretudo pelo extrativismo.

A especialização exportadora da região em produtos primários – que bloqueou seu desenvolvimento no passado – continua obstruindo a decolagem da região. Esse impedimento combina-se, ademais, com um agravamento inédito da deterioração do meio ambiente. A mineração a céu aberto concentra grande parte dessas calamidades e tornou-se o epicentro de numerosos conflitos em todos os países.

Primarização e extrativismo são os dois termos usados atualmente para denunciar a obstrução ao crescimento produtivo e inclusivo, que Galeano destacava há cinco décadas. Veias Abertas descreve como a submissão da região ao mandato externo dos preços das commodities gera essa asfixia.

Mas essa vulnerabilidade já não é mais vista como um simples efeito de processos inexoráveis de desvalorização das exportações de produtos primários. Muitos economistas desvendaram a dinâmica cíclica desses preços no mercado mundial e estudaram o complexo processo de sucessivos encarecimentos e barateamentos das matérias-primas. O grande problema é que essas flutuações sempre obstruem o desenvolvimento devido à condição dependente de toda a região.

A América Latina nunca aproveita os momentos de valorização das exportações e sofre invariavelmente nos períodos opostos de depreciação. Na conjuntura atual de preços altos, essas adversidades são verificadas, por exemplo, no encarecimento dos alimentos. A exportação de trigo e carne tornou-se uma desgraça para a aquisição cotidiana de pão e o consumo de proteínas.

Galeano descreveu uma desventura econômica resultante do manejo adverso da renda agrária, mineira e energética em toda a região. A centralidade dessa remuneração à propriedade dos recursos naturais acentuou-se nas últimas décadas. As grandes potências disputam – com a mesma intensidade que no passado – o precioso espólio das riquezas latino-americanas. A região continua sofrendo o confisco sistemático desse excedente, numa dinâmica que combina a erosão da renda com sua expropriação.

Atualmente os Estados Unidos disputam com a China (e em menor medida com a Europa) a apropriação dos recursos naturais da região. Os gigantes mundiais já não obtêm apenas excedentes de grão ou carne. Capturam também minerais estratégicos como o lítio e depredam sem nenhuma restrição a fauna marinha.

Ao contrário de outras economias não metropolitanas (como a Austrália ou a Noruega), que se aproveitam da renda para seu desenvolvimento, a América Latina sofre a drenagem desse excedente. É incapaz de transformá-lo em investimento produtivo devido à sua posição subordinada na divisão global do trabalho. Essa sujeição também explica o comércio desfavorável com os grandes compradores das exportações da região.

A América Latina não negocia em bloco suas trocas com a China, e os resultados das negociações país por país são invariavelmente adversos. As desventuras retratadas por Galeano há cinquenta anos são recicladas novamente na atualidade.

Retrações da indústria

Veias Abertas descreve como os processos históricos de industrialização foram obstruídos na América Latina pelas políticas livre-cambistas. Esse “industricídio” aniquilou a produção interna na Argentina e destruiu o desenvolvimento incipiente do Paraguai, que procurava lançar as bases para uma estrutura fabril independente. Posteriormente, as redes ferroviárias construídas em torno dos funis portuários garantiram o estrangulamento industrial. A mão visível do estado não interveio – como nos Estados Unidos – para assegurar o surgimento de um poderoso tecido industrial.

Este estrangulamento industrial foi parcialmente modificado na segunda metade do século XX pelos processos de substituição de importações. Esse modelo deu origem ao surgimento de estruturas industriais frágeis, mas ilustrativas da potencial expansão manufatureira. Galeano escreveu seu livro no ocaso desse esquema, e, cinquenta anos depois, o panorama industrial é novamente desolador na maior parte da América Latina.

A atividade industrial recuou na América do Sul e tende a especializar-se, na América Central, nos elos básicos da cadeia global de valor. Este cenário adverso é frequentemente descrito com retratos de uma “desindustrialização precoce” da região, que é diferente, por sua maior nocividade, das deslocalizações prevalecentes nas economias avançadas. Em todos os cantos da América Latina, aprofundou-se o distanciamento em relação à indústria asiática e muitos empreendimentos fabris desaparecem antes de atingirem a maturidade.

Nos países medianos, essa deterioração afeta o modelo criado para abastecer o mercado local. No Brasil, o aparato industrial perdeu a dimensão dos anos 80, a produtividade estancou, o déficit externo expande-se e os custos aumentam no compasso de uma obsolescência crescente da infraestrutura. Na Argentina, o declínio é muito maior.

O modelo das empresas maquiladoras mexicanas também enfrenta graves problemas. Continua montando peças para as grandes fábricas estadunidenses, mas perdeu centralidade diante dos concorrentes asiáticos. A renegociação do tratado de livre-comércio com os Estados Unidos simplesmente deu lugar a outro acordo (T-MEC), que renova a adaptação das fábricas fronteiriças às necessidades das empresas do Norte.

A maioria dos países da região continua negociando (e aprovando) acordos de livre-comércio que corroem o tecido econômico local. Em todos os casos, garante-se a desproteção interna contra a invasão incontrolável das importações. Essa adversidade não impediu as negociações do Mercosul para assinar um tratado de livre-comércio com a União Europeia, nem as negociações para acordos unilaterais com a China.

A regressão industrial que afeta a região atualiza todos os desequilíbrios do ciclo dependente estudado pelos teóricos da dependência. Nos anos 70, destacavam a drenagem sistemática de recursos que afetava o setor manufatureiro, através da remessa de lucros. A maior predominância do capital estrangeiro acentuou nas últimas décadas essa obstrução ao processo local de acumulação.

Mas, ao contrário dos anos 70, o retrocesso atual da indústria latino-americana coexiste com a grande ascensão de suas congêneres asiáticas. Basta observar o aumento da distância entre a Coréia do Sul e o Brasil ou a Argentina para notar a magnitude dessa mudança. Enquanto a América Latina era funcional ao velho modelo de mercados internos do capitalismo do pós-guerra, o Sudeste Asiático tende a otimizar o salto registrado na internacionalização da produção.

Muitos autores heterodoxos supõem que a divergência entre as duas regiões se deve apenas à implementação de políticas econômicas opostas. Acreditam que os asiáticos optaram pelo caminho adequado, que foi rejeitado por seus pares da América Latina. Mas essa visão ignora todas os condicionamentos estruturais impostos pela maximização do lucro na divisão mundial do trabalho.

As teses dependentistas destacam esse condicionamento, que o livro de Galeano também detalha. Ali são explicadas as adversidades históricas estruturais que a região enfrenta.

Despossessão e exploração

Veias Abertas denuncia o sofrimento da população explorada em todos os cantos da América Latina. Não fala apenas da escravidão e do servilismo do passado. Descreve as condições desumanas de trabalho que prevaleciam há cinco décadas. A atualidade dessas observações é particularmente impactante no contexto dramático de deterioração social do presente.

O neoliberalismo não só agravou o desemprego e a informalidade laboral. Além disso, consolidou uma terrível ampliação das diferenças de renda, na região mais desigual do planeta. Essa polarização explica a escala aterradora da violência que impera nas grandes cidades. Das 50 cidades mais perigosas do mundo, 43 localizam-se na América Latina.

A degradação social que afeta a região deve-se, em grande medida, à renovada expulsão de camponeses imposta pela transformação capitalista do agro. Essa mutação potencializou a expansão descontrolada de uma massa de excluídos que chega às cidades para ampliar o exército de desempregados. A falta de trabalho nas grandes cidades e a baixíssima remuneração dos empregos existentes explicam o enorme aumento da informalidade. Neste contexto, a narco economia generalizou-se como um refúgio para a sobrevivência.

A especialização latino-americana em exportações de produtos primários é complementada, em algumas economias da América Central, pelo crescimento desarticulado do turismo. É a única atividade criadora de empregos em muitas localidades dessa região. Em todos os casos, a ausência de postos de trabalho multiplica a emigração e a consequente dependência familiar das remessas. Enormes contingentes de jovens desempregados são simultaneamente impedidos de criar raízes e de emigrar. Não encontram trabalho em suas localidades de origem e são perseguidos ao ingressar nos Estados Unidos.

As médias regionais de pobreza continuam transbordando na América Latina para o segmento precarizado e afetam uma enorme parcela dos trabalhadores estáveis. Estes dados não mudaram desde o aparecimento do livro de Galeano.

A fragilidade da classe média também persiste, numa região com uma presença reduzida desse estrato. Em comparação com os países avançados, os setores médios proporcionam um colchão muito exíguo ao abismo que separa os abastados dos empobrecidos. Esse segmento é formado principalmente por pequenos comerciantes (ou autônomos) em vez de profissionais ou técnicos qualificados.

Este cenário adverso piorou de forma dramática durante a pandemia do último biênio. Em termos percentuais, a América Latina foi a região com o maior número de contágios e mortes do planeta e também sofreu o maior impacto econômico e social da doença.

A queda do PIB na região foi o dobro das médias internacionais e essa deterioração aprofundou a desigualdade. Metade da força de trabalho (que sobrevive na informalidade) foi severamente afetada pela retração econômica imposta pelo coronavírus. Estes setores tiveram que aumentar suas dívidas familiares para compensar a queda brutal da renda.

A desigualdade digital também aumentou em toda a região e impactou severamente as crianças empobrecidas que perderam um ano de escolaridade. Essa deterioração na educação tem efeitos explosivos em virtude de seu entrelaçamento com a crescente precarização do trabalho. As grandes empresas aproveitam o novo cenário para reduzir os custos laborais, com novas formas de teletrabalho que multiplicam a exploração dos assalariados.

Nas últimas cinco décadas, os capitalistas recorreram a inúmeros mecanismos para compensar sua debilidade internacional, explorando ainda mais a força de trabalho. Por essa razão, a diferença salarial entre a região e as economias centrais aumentou significativamente. A tendência mundial de segmentação do trabalho – entre um setor formal-estável e um informal-precarizado – apresenta uma escala assustadora na América Latina.

Essa disparidade ratifica a vigência do diagnóstico dependentista e confirma a continuidade dos mesmos problemas que Galeano observou no mundo do trabalho. Cinquenta anos depois, todas as suas observações são corroboradas em outra escala.

O velho pesadelo do endividamento

Em Veias Abertas, denunciava-se a triplicação da dívida externa entre 1969 e 1975 e a consequente consolidação de um círculo vicioso que asfixia a economia da região. Esse encadeamento obriga a América Latina a seguir um roteiro de aumento das exportações, estrangeirização industrial e auditoria dos banqueiros imposta pelo FMI. Galeano destacava que essas exigências consolidam, por sua vez, a ação dos capitalistas estadunidenses, que controlam grande parte da região através da gestão das finanças.

Nos últimos cinquenta anos, esse pesadelo foi mantido sem mudanças estruturais, e acentuou os desequilíbrios fiscais e os déficits externos, que aumentam os passivos e precipitam novas crises.

Durante a era neoliberal, houve períodos de gravidade variável dessa vassalagem financeira. Na última década, a apreciação das matérias-primas e o ingresso de dólares permitiram certo alívio, mas quando o fôlego comercial desapareceu, o endividamento ressurgiu com grande intensidade. Atualmente, o FMI e os fundos de investimento intervêm novamente de modo protagonista na administração de uma dívida impraticável.

Nos momentos mais dramáticos da pandemia, o FMI emitiu mensagens hipócritas de colaboração. Mas, na prática, limitou-se a convalidar um alívio irrisório do passivo entre um pequeno grupo de nações ultra empobrecidas. Repetiu a atitude assumida em relação à crise de 2008-2009, quando combinou apelos formais para a regulamentação internacional das finanças com exigências crescentes de ajuste para todos os devedores.

A tradição dependentista tem evitado a análise do endividamento em termos de simples especulação financeira. Destaca que o crescente peso dos passivos expressa a fragilidade produtiva e comercial do capitalismo dependente. A vulnerabilidade financeira da América Latina só complementa essas inconsistências.

Há uma sobrecarga com o pagamento de juros, com refinanciamentos compulsivos e com inadimplência sem razão do perfil subdesenvolvido das economias primárias, marcadas pela fraqueza industrial e pela alta especialização em serviços básicos. O endividamento não é desencadeado apenas pela “pilhagem dos financistas”. Reflete a crescente debilidade estrutural dos processos de acumulação.

A região não está isenta do processo de financeirização que caracteriza todas as classes dominantes do planeta. Mas a mutação central que se verificou na América Latina foi a transformação das antigas burguesias nacionais em novas burguesias locais.

O texto de Galeano ainda estava inscrito no primeiro período. Desde então, os grupos capitalistas que priorizam a expansão da demanda com uma produção orientada para o mercado interno perderam sua centralidade. Ganharam peso os setores que priorizam as exportações e preferem reduzir os custos em vez de ampliar o consumo.

 Esse giro também confirmou todos os diagnósticos dependentistas do entrelaçamento do grande capital latino-americano com seus pares do exterior. A localização de grandes fortunas locais em paraísos fiscais e a estreita associação criada pelas principais companhias da região com empresas transnacionais ilustram esta simbiose. O endividamento denunciado por Galeano sustentou essa mutação das classes dominantes.

Crises tempestuosas

O livro do escritor uruguaio comove pelo retrato desolador que apresenta da realidade cotidiana da América Latina. Este cenário é condicionado pela irrupção sistemática de crises sufocantes que o capitalismo dependente impõe. Estas convulsões derivam, por sua vez, do estrangulamento externo e da periódica redução interna do poder aquisitivo.

A era neoliberal que sucedeu a publicação de Veias Abertas foi marcada por crises econômicas mais frequentes e intensas, que precipitaram recessões mais profundas e induziram socorros gigantescos dos bancos. Essas turbulências foram invariavelmente desencadeadas pelos estrangulamentos do setor externo, levando a desequilíbrios comerciais e perda de recursos financeiros.

Como as economias latino-americanas dependem da flutuação dos preços das matérias-primas, nos períodos de valorização das exportações, as divisas afluem,  apreciam-se as moedas e os gastos expandem-se. Nas fases opostas, os capitais migram, o consumo decresce e as contas fiscais deterioram-se. No auge dessa adversidade, irrompem as crises.

Essas flutuações, por sua vez, aumentam o endividamento. Nos momentos de valorização financeira, os capitais ingressam para lucrar com operações de alto rendimento, e nos períodos opostos, a saída de capitais generaliza-se. Tais operações são consumadas pelo aumento do passivo dos setores público e privado.

Outro fator determinante das crises regionais são as reduções periódicos do poder aquisitivo. Essas amputações agravam a ausência estrutural de uma norma de consumo de massa. A debilidade do mercado interno e o baixo nível de renda da população explicam essa carência. A expansão da informalidade laboral, os baixos salários e a estreiteza da classe média acentuam a fragilidade do poder de compra.

As duas modalidades de crise – pelo desequilíbrio externo e pela retração do consumo – foram verificadas em todos os modelos das últimas décadas. Despontaram inicialmente durante a substituição de importações (1935-1970) e reapareceram com maior virulência na “década perdida” de estagnação e inflação (anos 80). Tornaram-se mais intensos no início posterior do neoliberalismo, como consequência da desregulamentação financeira, da abertura comercial e da flexibilidade laboral.

A teoria da dependência sempre estudou essas tensões com critérios multicausais e sublinhou a ausência de um único determinante da crise. As convulsões na região são desencadeadas por forças diversas, que combinam os desequilíbrios externos com as restrições do poder de compra.

Essa combinação de determinantes externos e internos teve um impacto devastador nos últimos dois anos da pandemia. A América Latina sofreu a maior contração planetária de horas de trabalho, em consonância com declínios semelhantes na renda popular. Após cinco anos de estagnação, a Covid acentuou uma enorme deterioração da estrutura produtiva. Para piorar a situação, os sinais de recuperação são tênues e as previsões de crescimento são inferiores à média mundial. Outro capítulo de Veias Abertas ocorreu na região durante o “Grande Confinamento” do último biênio.

O cenário político

A afinidade de Veias Abertas com a Teoria da Dependência não se limita ao estreito domínio da economia. Na tradição expositiva desta última concepção, o livro evita sobrecarregar o leitor com meros números e estatísticas intrincadas. Destaca com exemplos o impacto da dominação imperialista no subdesenvolvimento regional. Denuncia especialmente os golpes de estado, que sempre utilizaram as embaixadas estadunidenses para instalar governos favoráveis às grandes empresas do Norte.

Cinquenta anos depois, essa intromissão de Washington persiste com maiores disfarces, mas com o mesmo descaramento do passado. Os Estados Unidos buscam atualmente restaurar sua hegemonia mundial deteriorada, reforçando seu controle da América Latina, a fim de conter a centralidade crescente da China. A primeira potência está disposta a utilizar seu enorme poder geopolítico-militar para recuperar as posições econômicas perdidas. Por essa razão, a região é mais uma vez tratada como “quintal”, sujeita às normas de submissão estabelecidas pela Doutrina Monroe.

Os Estados Unidos procuram reduzir a margem de autonomia dos três países medianos da região. Exige que o Brasil entregue a supervisão da Amazônia, que o México reforce a infiltração da DEA e que a Argentina aceite as ordens do FMI. Como as invasões diretas (como Granada ou Panamá) já não são viáveis, o Pentágono reforça suas bases na Colômbia e patrocina inúmeras conspirações contra a Venezuela.

Trump implementou esse roteiro com brutalidade e Biden apressa-se para continuá-lo com bons modos. Ele precisa recompor a deteriorada dominação do Norte e reduz os excessos verbais de seu antecessor, a fim de reconstruir alianças com o establishment latino-americano. Mas, da mesma maneira que Trump, prioriza a diminuição da presença da China na região. Todas as iniciativas da Casa Branca desmentem a percepção ingênua “de que os Estados Unidos já não estão interessados na América Latina”. Recuperar a dominação plena do hemisfério é a prioridade principal de Washington.

É por isso que apoia os governos de direita que atuam como herdeiros das ditaduras denunciadas por Galeano. Tal como os teóricos da dependência, o pensador uruguaio indagava nos anos 70o pilar coercivo de todos os sistemas políticos latino-americanos. Retratava como as tiranias implementavam diferentes modelos de totalitarismo e destacava a primazia exercida pelas burocracias militares na gestão do estado.

No período pós-ditatorial das décadas seguintes, esse esquema foi substituído por diversas modalidades de constitucionalismo, que combinaram políticas econômicas neoliberais com a aceitação forçada das conquistas democráticas.

Mas após várias décadas, os regimes de direita tentam recuperar novamente o predomínio no compasso de uma restauração conservadora. Atuam através da continuação de governos reacionários, de novas capturas eleitorais e de golpes institucionais reiterados. No último biênio de pandemia, militarizaram suas administrações e instauraram estados de exceção, com o crescente protagonismo das forças armadas.

A direita regional opera agora de forma coordenada para estabelecer regimes autoritários. Não promove as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas formas disfarçadas de ditadura civil. Entre seus expoentes, persiste uma divisão visível entre personagens extremistas e moderados, mas todos unem forças nos momentos decisivos.

A direita implementa uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo. Recorrem a mecanismos criativos para inabilitar opositores e orquestrar golpes parlamentares, judiciais e midiáticos. Aspiram a alcançar o controle brutal dos governos retratados no texto de Galeano. Recriaram, além do mais, os discursos primitivos da Guerra Fria e as campanhas delirantes contra o comunismo que propagavam quando a primeira edição de Veias Abertas foi publicada.

Mas todas as figuras da direita regional enfrentam uma grande erosão política por sua responsabilidade na gestão desastrosa do estado. Devem lidar, ademais, com o grande ressurgimento da mobilização popular.

Em três bastiões do neoliberalismo (Colômbia, Peru e Chile) verificaram-se enormes revoltas nas ruas, e, em outros casos, os protestos permitiram a reintegração do governo progressista substituído por um golpe militar (Bolívia). Em diferentes cantos do hemisfério, desponta uma tendência convergente para o reinício das rebeliões que convulsionaram a América Latina no início do milênio.

Um símbolo de nossas lutas

Em Veias Abertas, há um apelo repetido à construção de uma sociedade não capitalista de igualdade, justiça e democracia. Essa mensagem está presente em várias passagens do texto. Galeano compartilhava com os teóricos da dependência o objetivo de reforçar um projeto socialista para a região.

Nos anos 1960-70, esperava-se avançar em direção a esta meta ao cabo de revoluções populares vitoriosas. Essa expectativa foi confirmada pelas rebeliões anticoloniais, pelo protagonismo do Terceiro Mundo e pelos triunfos do Vietnã e de Cuba.

Posteriormente, prevaleceu uma etapa inversa de expansão do neoliberalismo, o desaparecimento do chamado “campo socialista” e a reconfiguração da dominação global. Na América Latina, contudo, ressurgiram as esperanças com as rebeliões que marcaram o início do novo século, facilitando a emergência do ciclo progressista e o aparecimento de vários governos radicais. O contexto atual é marcado por uma disputa não resolvida e pela confrontação persistente entre os despossuídos e os privilegiados.

Esse choque inclui revoltas populares e reações dos opressores. Num polo, aflora a esperança coletiva, e no outro o conservadorismo das elites. As vitórias significativas coexistem com retrocessos preocupantes, num quadro marcado pela indefinição dos resultados. Está pendente o resultado da batalha entre os desejos do povo e os privilégios das minorias.

Veias Abertas é um texto representativo dessa luta e por essa razão é periodicamente redescoberto pela juventude latino-americana. O mesmo ocorre com a Teoria Marxista da Dependência. Esse instrumento teórico recupera seu público devido à explicação que proporciona para a compreensão da dinâmica contemporânea da região. Desperta o interesse de todos aqueles interessados em mudar a realidade opressora da região.

O livro de Galeano e o dependentismo compartilham da mesma recepção entre as novas gerações que recuperam os ideais da esquerda. Veias abertas é um verdadeiro emblema dos ideais transformadores. É por isso que em abril de 2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente Chávez presenteou publicamente Barack Obama com um exemplar do livro. Com esse gesto, destacou qual é o texto que sintetiza os sofrimentos, projetos e esperanças de toda a região.

Galeano personificava estes ideais e também gerava um fascínio inigualável no público. Transmitia entusiasmo, sinceridade e convicção. Suas palavras convocavam para a construção de um futuro de fraternidade e igualdade e a renovação desse compromisso é a melhor homenagem a sua obra.

Sobre o autor

Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

28 de outubro de 2021

O Facebook agora é meta. E quer monetizar toda a sua existência.

A guinada de Mark Zuckerberg em direção ao "metaverso" afirma colocar uma camada digital extra no topo do mundo real. Mas a nova marca do Facebook não está aumentando sua realidade - ela apenas quer sugar mais dinheiro com isso.

James Muldoon


Mark Zuckerberg, CEO da Facebook Inc., fala durante o evento virtual Facebook Connect, onde a empresa anunciou sua mudança de marca para Meta em 28 de outubro de 2021. (Michael Nagle / Bloomberg via Getty Images)

Tradução / Você faz login e é arrebanhado para um bar virtual para ouvir seu chefe contando piadas. Enquanto isso, a primeira companhia mobiliária do metaverso está vendendo propriedades super valorizadas de uma Londres virtual e gamers estão competindo por tokens não replicáveis. Bem vindo ao Zuckerverso — um lugar que ninguém pediu que fosse criado, mas no qual, em breve, nós gastaremos muito do nosso tempo.

No fim de outubro, Facebook mudou seu nome para Meta, o que faz parte de uma mudança de direção rumo ao chamado metaverso — uma rede de experiências interconectadas parcialmente acessadas através de headsets de realidade virtual (RV) e dispositivos de realidade aumentada (RA). Nas palavras do próprio Zuckerberg, “você pode pensar no metaverso como uma internet incorporada, onde ao invés de apenas ver o conteúdo — você está nele”. Os exemplos mais facilmente reconhecíveis disso em ação são as reuniões de escritório virtuais com óculos de RV, jogos em universos online expansíveis e o acesso a camadas digitais sobre o mundo real através de RA.

Como dono do Facebook, Instangram, WhatsApp e da companhia de realidade virtual Oculus, a companhia agora conhecida por Meta planeja criar um mundo integrado no qual nosso trabalho, nossa vida e nosso lazer irão acontecer no interior de sua infraestrutura — monetizando todos os aspectos de nossas vidas. Por hora, isso pertence ao mundo da fantasia. Ainda assim, é a fantasia de um dos homem mais poderosos do mundo — e justamente por isso merece nossa atenção.

Em um artigo, o investidor de risco Matthe Ball escreve: “o Metaverso será um lugar no qual impérios proprietários receberão investimento e serão construídos e onde tais negócios ricamente capitalizados podem ter a posse completa dos clientes, controlar APIs/dados, economia das unidades e etc”. O que soa bastante esquisito...

a Meta espera que, ao construir uma sensação hype em torno de si, outros serão encorajados a seguir desenvolvendo o projeto. É como construir uma agência de correio e uma loja e chamar isso de cidade. A expectativa é conseguir que um número suficiente de companhias participe do projeto e que, em breve, todos nós a usemos — quer nós gostemos ou não.

Headsets para todos

Ometaverso não é um blefe. Seria errado enxergá-lo como uma mera manobra arquitetada para atrair a atenção para longe da crise que a companhia enfrenta. Nem é apenas uma simples reformulação da marca para revestir a empresa com uma mão de verniz fresco, algo que Philip Morris fez com o Grupo Altria em 2003.

A companhia de Zuckerberg investiu pesado em hardware de RV e quer tornar-se o principal agente no mercado de headset. É uma aposta que sua linha de headset de RV e óculos de RA irão eventualmente se tornar tão onipresentes quanto os smartphones. Existem estimativas de que a companhia já tenha vendido cinco ou seis milhões de headsets de RV por um preço de U$ 300, algo em torno de U$ 2 bilhões. Mas esse ramo do negócio ainda não está gerando dinheiro; foi dito que, com aproximadamente 10 milhões de pessoas trabalhando com dispositivos de RV, a companhia está perdendo entre U$ 4,5 bilhões e U$6,4 bilhões em custos de operação.

Há um risco genuíno de que tudo fracasse. Os consumidores têm sido lentos na adoção da tecnologia RV e, daqui alguns anos, pode ser que Zuckerberg, o chefe de comunicações do Facebook, Nick Clegg e o diretor de operações, Sheryl Sandberg, realizem reuniões em um metaverso vazio. Contudo, a Goldman Sachs prevê que a indústria de RV e RA poderão atingir um valor de U$ 80 bilhões por ano, por volta de 2025, com uma taxa de crescimento cumulativo anual entre 40% e 80%. A partir de tais predições, pelo menos, o metaverso será mais do que apenas um movimento de relações públicas sem sentido para ajudar a Meta a vender mais óculos VR.

Sua vida como um serviço

As plataformas digitais criaram um ambiente no qual nosso trabalho, nossa vida social e nosso entretenimento cada vez mais se realizam em contextos digitais construídos justamente para a monetização. A ideia por trás do metaverso é expandir o horizonte da apropriação da vida humana para todos os aspectos da nossa existência.

A Meta quer expandir seu alcance de uma mera rede social global para se tornar a infraestrutura digital das nossas vidas cotidianas.

Em 2005, Zuckerberg imaginou o Facebook como um “diretório online” que poderia ser usado para “procurar pessoas e encontrar informações sobre pessoas”. O Facebook era essencialmente uma base de dados de pessoas que podia ser consultada para obter informações. Mas a companhia também declarou possuir uma missão social, supostamente centrada na completa transparência: Zuckerberg descreveu como “todo o incremento ao acesso de informação e ao compartilhamento iria, inevitavelmente, mudar as grandes coisas do mundo”.

Ao longo dos anos seguintes, o Facebook não era mais apresentado como uma ferramenta digital, mas como uma forma das pessoas conectarem-se, compartilharem experiência e tornarem-se próximas. Após as convulsões políticas de 2016, Zuckerberg começou a falar do Facebook em termos históricos, como o provedor de uma infraestrutura de comunicação para um processo global: “esse é o grande esforço de nossos tempos. As forças da liberdade, da honestidade e da comunidade global contra as forças do autoritarismo, do isolacionismo e do nacionalismo.”

Em 22 de junho de 2017, na primeira Cúpula de Comunidades do Facebook, Zuckerberg anunciou uma mudança na declaração da missão do Facebook: passou para conectar pessoas para construir uma comunidade global. O pivô para o metaverso é o próximo passo lógico desse projeto. Naquela época, Zuckerberg falou sobre fornecer a infraestrutura digital da vida comunitária do século XXI por meio dos grupos do Facebook. Agora, a Meta quer disparar na frente dos seus rivais no controle da próxima geração de internet corporificada.

O objetivo final da Meta é ser mais do que apenas um serviço que você usa, mas a infraestrutura sobre a qual você vive.

Construir mundos é o negócio da Meta

Assim como a água está para os peixes, a Meta quer se tornar o meio imperceptível que permeia toda nossa existência. Não será mais a escolha que você faz, mas o ambiente no qual as escolhas estarão disponíveis para você. Em outras palavras, não é uma companhia patrocinando um evento, é o estádio no qual ele acontece. A ideia é que a Meta será uma holding responsável por um próspero ecossistema de produtos e serviços perfeitamente integrados em um mundo híbrido, capaz de extrair, facilmente, lucro em todos os pontos do sistema.

Você poderia jogar jogos, baixar conteúdo ou se cadastrar em serviços e tudo seria automaticamente deduzido de sua conta. Serviços e produtos bancários e de investimento seriam integrados no mundo do metaverso, logo uma porção do seu salário seria automaticamente transferida para a moeda desse mundo.

Múltiplas companhias competiriam por fatias desse mundo, mas haveria um incentivo ainda maior para o estabelecimento de monopólios horizontais e verticais. Empresas colocariam barreiras contra serviços interoperacionais — e seria mais conveniente para os clientes permanecerem em um jardim murado onde tudo seja transferível e conectado.

A ideia de que a plataforma é uma intermediária neutra, facilitadora de transações, sempre foi mistificadora. Agora, contudo, mesmo essa pretensão seria algo do passado, na medida em que as empresas do metaverso possuiriam um papel bem mais ativo na elaboração da arquitetura dos mundos virtuais. Mesmo as atuais plataformas digitais são ambientes sociais complexos e econômicos que foram desenvolvidos ao longo de décadas de pesquisas em psicologia social. Nesses novos mundos, porém, os barões tecnológicos irão estabelecer as regras e criar amplos sistemas para encorajar comportamentos dos usuários que sejam lucrativos para a empresa.

Capitalismo do metaverso

Os empreendimentos mais lucrativos nos domínios do capitalismo digital foram essencialmente as empresas de anúncio. A Apple ainda se saiu bem vendendo produtos de consumo sofisticados. Entretanto, diferente disso, o modelo capitalismo-de-vigilância que rege os negócios do Google e do Facebook tem como objetivo oferecer serviços grátis para as pessoas em troca dos dados delas, os quais seriam analisados e vendidos.

O capitalismo do metaverso verá grandes firmas de tecnologia mudando o foco em direção ao ramo de hardware e de infraestrutura, visto que possuir a estrutura na qual outros serviços podem ser ofertados se torna bem mais valioso. Isso não significa apenas coletar dados, é possuir os servidores e o mundo digital. Já temos visto as Big Tech começando a gastar imensas quantias em cabos de internet submarinos e centros de dados que reduzem os custos do transporte de dados. Alphabet e Amazon gastaram, cada uma, em torno de U$ 100 bilhões investindo em infraestrutura e outros ativos fixos. Cada vez mais, a ideia das companhias de tecnologia com modelos de negócios enxutos, seguindo os passos da Nike e de outras grandes empresas de terceirização, está se tornando obsoleta.

Uma segunda mudança essencial é a diversificação de fontes de receita e uma descentralização do papel dos dados e dos anúncios. No primeiro trimestre de 2021, 92,2% da receita total do Facebook foi fruto de anúncios. O metaverso apresenta um leque maior de fluxos de receita, de hardware nos quais opera os jogos, serviços e conteúdos em seu interior. A Meta pode começar a oferecer conteúdo por assinatura; pode vender propriedades e experiências virtuais; e pode cobrar o acesso de outras empresas para esse mundo. O eixo de dados-para-anúncios ainda vai existir, mas vai ser parte de um portfólio mais variado de ativos.

Provavelmente, empresas de plataformas que ofereciam um único serviço agora irão ramificar seus espectros de serviços em um mundo conectado. Ainda é difícil prever como o metaverso será repartido entre empresas de tecnologias competidoras. É complicado imaginar como a Meta está disposta a deixar seus competidores montarem lojas dentro do metaverso ou competir com eles em termos equivalentes. Mas a probabilidade de que outros se interessem em investir aumentará se houver sinais de que o hardware é rentável.

Grandes investimentos em tecnologia de RV e RA também criarão uma maior necessidade de “microtrabalhadores” precários e mal pagos para treinar os algoritmos. O motor do metaverso será o mundo físico e extremamente real da exploração do trabalho — predominantemente de trabalhadores do Sul Global. Conforme Phil Jones recentemente argumentou em Work Without the Worker, o “lar secreto da automação” é, na verdade, “um complexo globalmente disperso de refugiados, moradores de favelas e vítimas de ocupações, obrigados por meio da miséria, ou então da lei, a impulsionar o aprendizado das máquinas de companhias como o Google, Facebook e Amazon”.

Excesso corporativo

Ometaverso será construído de forma responsável? Óbvio que não. Longe disso, será construído da forma que seja mais rentável para a Meta. Quaisquer problemas que apareçam serão encarados como questões de relações públicas enquanto as empresas imprimem dinheiro num ritmo recorde. Quem se importa com a pressão de alguns parlamentares quando você detém não apenas a infraestrutura digital deste mundo, mas de todo o metaverso?

O “metaverso” de Zuckerberg é um mundo no qual os usuários se movem tranquilamente de um ambiente controlado por uma corporação para outro. O fundador do Facebook garantiu ao público que sua mais recente novidade será construída de forma responsável e em parceria com os outros. Contudo, face à avalanche de evidência de transgressões trazidas à tona pelas delações de Frances Haugen, é difícil crer que até mesmo os aliados mais próximos de Zuckerberg acreditam nessa mudança.

Sobre o autor

James Muldoon é professor de ciência política na Universidade de Exeter. Ele é o editor de Council Democracy: Towards a Democratic Socialist Politics (“Democracia de Conselhos: Por uma Política Socialista Democrática”), Trumping the Mainstream: The Conquest of Democratic Politics by the Radical Right (algo como “Trumpeando o Sistema: A Conquista da Política Democrática pela Direita Radical”) e The German Revolution and Political Theory (“A Revolução Alemã e a Teoria Política”, a ser publicado em breve).

26 de outubro de 2021

Retrato de uma extrema direita vernácula

A exemplo de Jair Bolsonaro em 2018, a candidatura do direitista chileno José Antonio Kast se alimenta da frustração das classes médias e faz uma defesa aberta da ditadura militar.

Fernando de la Cuadra




Tradução / A comparação entre Jair Bolsonaro e José Antonio Kast como dois fiéis representantes da extrema direita na América Latina é bastante recorrente, equiparando-se tanto a uma espécie de atualização da matriz ideológica e sociopolítica fascista quanto a uma derivação contemporânea do que o escritor e o semiólogo italiano Umberto Eco teria denominado de “fascismo eterno” ou “ur-fascismo”.

A rigor, o fascismo de Bolsonaro é um tanto sui generis e, em uma parte importante, inclui os aspectos apontados por Eco e não os traços do fascismo tradicional instalado na Itália a partir dos anos 1920 (especificamente em 1922, após a Marcha sobre Roma). O fascismo de Mussolini e seus seguidores teve forte cunho nacionalista, alimentado pela narrativa de reconstruir o “Império” e retomar o poder das colônias ultramarinas, como era o projeto expansionista da invasão da Etiópia em 1935.

Pelo contrário, o programa bolsonarista é caracterizado por um nacionalismo orgulhoso e por sua submissão quase absoluta aos interesses de grandes corporações multinacionais – especificamente, aos desmandos dos Estados Unidos, que foi ainda mais acentuado durante o governo de Donald Trump, o verdadeiro herói para o ex-capitão.

Ainda hoje, com Trump já fora da Casa Branca, continuam a ser observadas manifestações de evidente submissão aos desígnios do norte, facilitando a penetração do capital empresarial no espaço brasileiro, principalmente na exploração de recursos naturais em vastos territórios da nação.

O nacionalismo do Bolsonaro é apenas uma fachada: foi criado intencionalmente para vender a imagem de fiador dos interesses nacionais, quando na realidade promove a mais abjeta rendição da soberania nacional aos interesses dos conglomerados estrangeiros. Parte de seu projeto, rejeitado pelas próprias Forças Armadas, consistia em instalar uma série de bases militares dos Estados Unidos em território brasileiro, tornando-se mais uma barreira para conter os possíveis inimigos do “Império Americano” no estilo da Colômbia.

Quanto ao vínculo entre o Estado, a classe trabalhadora e os sindicatos, sabe-se que o regime de Mussolini suprimiu a capacidade de mobilização dos trabalhadores por meio da cooptação dos sindicatos, onde as direções sindicais eram submetidas aos desígnios de uma autoridade central, promovendo a verticalização, o controle e a disciplina dos operários. Havia, portanto, uma ligação orgânica e estreita entre o Estado fascista e o proletariado.

Nada disso ocorreu – ou mesmo foi tentado – durante o governo Bolsonaro. Apesar de sua intenção de restringir os direitos sindicais, o bolsonarismo se relaciona de forma desarticulada com os trabalhadores, seduzindo um pequeno número de lideranças sem nenhum impacto para a classe como um todo. A destruição das bases sindicalizadas tem ocorrido pelos processos de flexibilização, precarização e pelo chamado “empreendedorismo” de agentes individuais que buscam – fragmentados e por conta própria – sua inserção em uma estrutura de trabalho que poderia ser definida, segundo Zygmunt Bauman, quanto mais gelatinoso, mais líquido.

Este fenômeno foi estudado em profundidade por Ricardo Antunes, María Moraes Silva, Rui Braga, Giovanni Alves e outros autores, como já destacamos em outro artigo. No cenário atual, o que existe é um trabalhador “independente”, individualizado, precário e autônomo que não mantém vínculo contratual com nenhuma indústria, que atua principalmente na informalidade e que, portanto, não configura nenhuma associação ou entidade que represente os seus interesses. Esta situação não é nova, mas reflete uma tendência que marca uma clara diferença entre a condição da classe trabalhadora em tempos de fascismo italiano e a situação atual, que pode ser resumida em seu caráter frágil, disperso e atomizado.

Nem o bolsonarismo representa um projeto político consistente, ao contrário, parece um amontoado amorfo de preconceito, fundamentalismo pentecostal e fúria irracional contra sistemas de representação política. Expressa-se através de formas autoritárias e usa a ameaça para instilar medo na população, embora não tenha a contundência nem a dimensão totalizante do fascismo clássico ou outras expressões mais contemporâneas dele, como as ditaduras latino-americanas do século passado.

Se, como nos adverte Umberto Eco, o totalitarismo é “um regime que subordina todo ato do indivíduo ao Estado e sua ideologia”, certamente nem Bolsonaro nem o candidato da extrema direita chilena, José Antonio Kast, podem representar um modelo de sociedade totalitária, em parte porque o primeiro é demasiadamente tosco para conceber uma ideologia com pretensões de realizar a noção hegeliana de Estado absoluto e o segundo porque, reconhecendo os constrangimentos, quase sempre pretende se passar por expoente de valores pluralistas e democráticos.

O ultradireitismo de Kast não se assemelha à forma clássica de fascismo quando se trata de nacionalismo exacerbado ou de um Estado corporativo e intervencionista. Pelo contrário: Kast segue estritamente os preceitos do neoliberalismo e da defesa do Estado mínimo, como afirma um de seus principais assessores em matéria econômica, José Piñera, tristemente reconhecido como o mentor e promotor de sistemas de aposentadorias baseadas na capitalização individual. Coerente com isso, não concebe a formação de corpos sociais intermediários que funcionem como o eixo articulador entre o Estado autoritário e uma sociedade civil subordinada.

Em vez disso, o projeto de Kast consiste em construir um governo forte, impondo a ordem de cima, usando as prerrogativas que o mandato constitucional pode lhe conferir para reivindicar o monopólio do uso da força para combater as expressões de “caos” e “anarquia” da sociedade chilena. Ele também deve incluir, no mesmo pacote, as mobilizações populares, lutas dos povos indígenas, crime urbano, imigração ilegal, subversão, libertinagem, vandalismo e etc..

Defensor da ditadura militar por suas conquistas na esfera econômica, ele se opõe verbalmente às violações dos direitos humanos, embora existam evidências confiáveis ​​- e não apenas indícios – de que seu pai (ex-soldado nazista) participou do assassinato de camponeses em Paine, uma cidade cerca de cinquenta quilômetros ao sul de Santiago.

Em termos de discurso, Kast é um defensor da democracia. Mas seu desprezo pela diversidade e sua incapacidade de compreender, por exemplo, o conflito entre o Estado chileno e o povo mapuche, impede qualquer possibilidade de que um eventual mandato seu seja regido por procedimentos democráticos, enquanto ele não dá nenhuma garantia – pelo contrário – de ter a capacidade de negociar com quem se opõe à sua visão vertical, hierárquica e elitista da política e da ação do Estado.

Kast sendo uma figura quase imperturbável, comedida e fria, muito menos rude e desenfreada que o presidente brasileiro, não foge dos preceitos morais do ex-capitão: com seu catolicismo cínico, sua fobia de estrangeiros, homossexuais, povos indígenas e o mundo popular em geral. Sob um manto de cordialidade civilizada, Kast é um ultradireitista que não se intimidaria em emitir uma ordem para reprimir violentamente manifestantes ou dissidentes de seu governo, incluindo trabalhadores que fazem uso da greve legal estabelecida pela Justiça do Trabalho.

No eterno caminho fascista

Tanto o ultradireitismo de Bolsonaro quanto o de Kast estão mais próximos do que Umberto Eco definiu como “fascismo eterno” ou “ur-fascismo”. Ou seja, são expressões fascistas de caráter mais ideológico, cultural do que político e econômico. Ambos são “ur-fascistas” no sentido de Eco, uma vez que neles não há nenhum tipo de empatia pelos mais fracos e desamparados; para eles, o mundo pertence aos fortes, aos vencedores, aos dominadores – independentemente dos meios para alcançar o sucesso. Neste tipo de fascismo converge também com o gosto pela tradição, pelos valores nacionais e pela identidade nacional. Kast responde a qualquer pessoa que questione sua origem e estilo alemão dizendo que ele é “um chileno nato”.

Bolsonaro é um tradicionalista que detesta os valores da modernidade e seus processos de individualização. Suas tendências irracional e o desprezo pela ciência se destacam. Sua postura negacionista contra a COVID-19 o afasta de todos os padrões conhecidos até agora: ele não acredita na periculosidade do vírus, é irônico sobre a vacina, não usa máscara e boicota o distanciamento social e recomenda o uso de medicamentos sem comprovação científica para combater o vírus.

O ex-militar faz o oposto das recomendações de especialistas, epidemiologistas, infectologistas e cientistas em geral, inclusive as sugestões da Organização Mundial de Saúde (OMS). Embora Kast aceite alguns parâmetros científicos, sua estrutura mental descarta pensamentos discordantes e diferentes, defendendo uma moralidade retrógrada que se expressa como antimoderna e irracional.

Em certo sentido, as diferenças que existem entre Bolsonaro e Kast são mais na forma do que no conteúdo, já que este tenta convencer os seus seguidores mantendo um perfil mais moderado e limpo, refletindo cuidadosamente sobre o que vai dizer. Já Bolsonaro parece desequilibrado e um cafetão, com suas freqüentes alusões à escatologia e à excrescência humana. Mas, no fundo, ambos desprezam todas as formas de organização cívica e os ganhos obtidos pelos trabalhadores ao longo de décadas de lutas e reivindicações pelo cumprimento de seus direitos trabalhistas. Com maior ou menor efusividade, Bolsonaro e Kast sentem saudades das ditaduras cívico-militares que foram impostas em seus respectivos países, embora o presidente brasileiro o reivindique mais descaradamente o regime ditatorial instaurado após o golpe de 1964.

Ambos se apóiam no fenômeno de fascismo cultural que despreza as expressões da diversidade, a consolidação dos direitos e a emergência da cultura popular de seus países. No caso do fascismo cultural dos brasileiros, percebe-se como para esse segmento que se atribui uma perspectiva elitista da política e da vida: é insuportável para eles que o voto de um operário ou de um camponês valha o mesmo que o voto de um cidadão “esclarecido e informado”.

Com todas as suas peculiaridades e diferenças de estilo, tanto Kast quanto Bolsonaro se alimentam da frustração das classes médias que vêm experimentando uma queda no padrão de vida, visto que, comparativamente, houve uma melhora nas condições das classes subalternas, notando como uma empregada doméstica poderia pagar um voo para o exterior ou como o filho de um trabalhador pode obter um diploma universitário para uma carreira tradicional.

De mãos dadas com uma visão elitista da sociedade, esse fascismo conta com o militarismo e a ameaça permanente às instituições democráticas como forma de chantagem política para impor suas idéias. Apesar da sua perseguição permanente, cabe às maiorias democráticas estarem atentas para se empenharem constantemente no resgate da memória histórica das lutas para bloquear as explosões e perversidades deste paradigma que só traz miséria, destruição e morte para toda a humanidade.

Sobre o autor

Fernando de la Cuadra é sociólogo pela Universidade do Chile, magistrado e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de Intelectuais e pensamento social e ambiental na América Latina (RIL, 2020) e De Dilma a Bolsonaro. Itinerário da tragédia sociopolítica brasileira (RIL, 2021). Editor do blog Socialismo y Democracia (http://fmdelacuadra.blogspot.com/).

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