Celia Kerstenetzky
Professora do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Professora do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Autora defende que reivindicações particulares podem e devem buscar articulação com demandas políticas universalistas, superando a ênfase no debate entre extremos, a erosão do solo comum que funda a democracia social e a ideia de solução única para compensar déficits sociais históricos. Parece perfeitamente possível que reivindicações específicas de grupos sociais sejam o estopim de transformações sociais genéricas, afirma.
[RESUMO] Autora defende que reivindicações particulares podem e devem buscar articulação com demandas políticas universalistas, superando a ênfase no debate entre extremos, a erosão do solo comum que funda a democracia social e a ideia de solução única para compensar déficits sociais históricos. Parece perfeitamente possível que reivindicações específicas de grupos sociais sejam o estopim de transformações sociais genéricas, afirma.
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Nem sempre acolhidas com simpatia, as pautas identitárias —reivindicações, por grupos politicamente minoritários, do reconhecimento de suas desvantagens sociais e do acesso a oportunidades e recursos para compensá-las— têm por vezes despertado reações intensas.
No campo progressista, mobilizado por questões de justiça social, duas atitudes sobressaem: em um extremo, há os que veem nas pautas identitárias uma ameaça à democracia social e suas políticas universais; no outro, há os que defendem a chamada política identitária como o único ou o principal meio para compensar déficits sociais e democráticos históricos.
Segundo a primeira posição —a tese da ameaça à democracia—, a política identitária é um modo de configurar o debate político como disputa entre grupos politicamente minoritários e politicamente majoritários e, dessa forma, promover dois efeitos indesejados.
O primeiro é desviar a atenção da agenda social-democrata de redistribuição. Desse ponto de vista, o alvo da contestação política deveriam ser as instituições e as práticas que patrocinam as desigualdades econômicas contemporâneas —a origem de várias patologias e abusos sociais.
A política identitária, ao desviar a energia política de movimentos sociais contestatórios para a disputa por recursos entre grupos categóricos (por exemplo, raciais ou de gênero), acabaria por negligenciar a pauta redistributiva, centrada na garantia de direitos sociais, e enfraquecer sua promoção.
O segundo efeito seria ainda mais básico: ameaçar a própria democracia política. Ao se expressar como embate entre grupos categóricos exclusivos, que, por definição, incluem os iguais e excluem os diferentes, a política identitária converteria o debate político em divisão e confronto irreconciliáveis.
O resultado seria a erosão do solo comum do qual a democracia se nutre, em que os valores públicos são cultivados e as alianças e as coalizões podem brotar.
Em oposição à tese da ameaça, a segunda posição —a defesa da política identitária— insiste na necessidade de reivindicação de direitos coletivos exclusivos, como cotas, para compensar os déficits democráticos históricos que persistentemente prejudicam alguns grupos.
Como a democracia política não dá o devido peso aos legítimos interesses e às aspirações dos grupos minoritários, que são politicamente sub-representados, os direitos sociais normalmente garantidos pela social-democracia acabariam não os contemplando adequadamente. O acesso desigual a recursos, oportunidades, proteção e segurança, sempre em prejuízo dos grupos minoritários, são uma prova irrefutável disso.
Um cenário mais assustador, mas não de todo improvável, resultaria da combinação das previsões sombrias contidas nas duas teses descritas. O cenário de a democracia se metamorfosear em guerra de trincheira —luta entre grupos, como esperado na tese da ameaça— e, ao mesmo tempo, os interesses e as aspirações das minorias políticas serem de fato apenas marginalmente atendidos —como antecipado na linha de defesa da política identitária.
A política de trincheira levaria a um resultado menos vantajoso aos grupos minoritários, porque a disputa aberta pelos recursos existentes poderia resultar na estagnação ou mesmo na redução dos recursos totais disponíveis para a redistribuição. Uma ilustração ajuda a iluminar esse dilema.
Pense na inclusão racial nas universidades em um cenário em que apenas cotas fossem a política inclusiva. A disputa por uma divisão racialmente equilibrada entre brancos e não brancos de um número muito limitado de vagas alcançaria apenas uma pequena fração da população em idade universitária.
A política que visa exclusivamente ao efeito "marginal" —uma vaga garantida a cada duas, por exemplo— seria menos antirracista por contemplar menos não brancos que a política que visa ao efeito "médio" —a distribuição equitativa, mas do maior número possível de vagas.
A expansão de vagas é essencial para a produção do maior efeito numérico, assim como o investimento em educação básica de qualidade, que permite a ampliação do universo de estudantes elegíveis. Além disso, cotas sem expansão de vagas podem estimular a migração de estudantes brancos e não pobres para universidades privadas, criando mais um estrato de prestígio, de acesso proibitivo.
Uma política com o objetivo de limitar essa fonte adicional de desigualdades teria que insistir na expansão substancial da política universal. Ao fim e ao cabo, o foco exclusivo na disputa entre grupos é perfeitamente compatível com a perspectiva de um neoliberalismo progressista, termo cunhado por Nancy Fraser para o contexto norte-americano, que concilia o recuo do Estado provedor com a partilha dos recursos remanescentes conforme o poder relativo de movimentos sociais e forças políticas.
A posição intermediária entre os extremos da rejeição e da adoção incondicional da política identitária é mais promissora. Essa perspectiva concilia equidade, isto é, equilíbrio na distribuição de recursos, com altos resultados, rompendo a barreira de políticas universais insuficientes e Estado diminuto. Contudo, ela impõe uma torção na política identitária: conceber a política identitária como política universal.
A perspectiva da política identitária como política universal implica grupos minoritários se tornando os campeões da agenda universalista, ainda que não exclusivamente.
Entre as razões para isso, há o fato de grupos minoritários estarem entre os mais organizados politicamente e a maior aptidão da agenda universalista para atender os interesses e aspirações distributivos desses grupos, já que abrange grandes números; respeitar seus valores mais abrangentes como cidadãos, porque neutraliza mecanismos de dominação e subalternização, responsáveis pelo sentimento de subcidadania que assola seus membros; e, em contextos democráticos, viabilizar a formação de coalizões majoritárias, já que abrange interesses amplos, para além dos que se expressam em linguagem identitária.
Como pensar a aproximação entre identidade e universalidade?
Em princípio, parece perfeitamente possível que reivindicações específicas de grupos sociais sejam o estopim de transformações sociais genéricas. Isso ocorre quando reivindicações específicas traduzem e expressam, nos termos de experiências compartilhadas de privação, destituição, discriminação, dominação, opressão e exploração, as dificuldades, barreiras e interdições enfrentadas por grupos minoritários. Nesse caso, o específico seria a forma de manifestação do genérico.
Desigualdades se manifestam em relações assimétricas entre indivíduos e grupos realmente existentes e só podem ser pensadas a partir da experiência particular. É igualmente certo, contudo, que a experiência contenha a metafísica do mundo social, um mundo eivado de relações de dominação e exploração em suas instituições e práticas. Consequentemente, reivindicações específicas de igualdade vocalizadas por diferentes grupos colocam essas relações no banco dos réus e, ao fazê-lo, universalizam a exigência de igualdade.
Algo desse tipo parece ter ocorrido com a reivindicação do reconhecimento de direitos naturais e inalienáveis do homem, os direitos fundamentais à vida e à liberdade, gênero filosófico e lema político dos séculos 17 e 18.
Imaginados como um domínio inviolável, interditado a tiranos e teocratas, por homens brancos privilegiados em metrópoles europeias, os direitos naturais inauguraram a linguagem que os tornaria reivindicáveis também por mulheres, escravizados revolucionários do Haiti e habitantes das colônias do Novo Mundo ao longo dos séculos 18, 19 e 20.
Os falantes pioneiros, mesmo falando de seu lugar de privilégio relativo, não puderam controlar os efeitos de sua fala, recebida e traduzida em reivindicação libertária e de igualdade por outros.
Na experiência histórica, há também um número significativo de exemplos que ilustram como a luta por direitos, encetada por um grupo, deliberadamente conduziu à expansão de direitos a outros grupos e conduziu a significados cada vez mais amplos de direitos.
Muitos movimentos abolicionistas ou independentistas na Europa e nas Américas foram protagonizados simultaneamente por mulheres, negros e indígenas, enquanto também lutavam pela emancipação feminina ou igualdade racial.
Movimentos por direitos civis uniram negros, mulheres, judeus, estudantes, pacifistas; movimentos feministas levantaram as bandeiras do sufrágio universal de adultos, união dos proletários do mundo, políticas de bem-estar social para crianças e idosos, direitos sexuais e antirracismo; lutas operárias foram a centelha para o aprofundamento de direitos sociais e do Estado de bem-estar universalista ao longo do século 20. Recentemente, movimentos pelo reconhecimento dos direitos de povos indígenas têm politizado a defesa da natureza e do planeta.
No Brasil, o movimento negro nasceu como resistência à ditadura e abrigo a minorias políticas, como mulheres e gays, além de negros, e apresentou na Constituinte propostas como a introdução de direitos sociais e a extensão de direitos civis e políticos.
Discursos de líderes, intelectuais e ativistas como Frantz Fanon ("Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona"; "minha pele negra não é depositária de valores específicos"; "sou um ser humano e é todo o passado do mundo que tenho a resgatar"), Martin Luther King ("eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele"), Malcolm X ("acredito em uma sociedade em que as pessoas possam viver como seres humanos com base na igualdade"), Nelson Mandela ("a divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro"), Angela Davis e Djamila Ribeiro ("a mulher negra é a que mais sofre o peso do capitalismo. O que está em jogo é um novo modelo de sociedade [...] anticapitalista, antirracista e feminista") e Wesley Teixeira ("o movimento negro garante humanidade para todos") marcam o insulto à humanidade representado por discriminação, opressão e exploração.
Por fim, uma razão pragmática reforça a aproximação entre identidades e políticas universais: o imperativo de formação de consensos para que políticas igualitárias avancem e vinguem.
O universalismo nas políticas sociais em países europeus onde impera nasceu com a marca do pragmatismo. Trabalhadores urbanos atraíram o apoio de agricultores para formar maiorias parlamentares para posições de seu interesse e, juntos, desenharam políticas para a cidade e o campo. Posteriormente, o universalismo deitou raízes, virou um valor e se tornou distintivo de identidades nacionais.
Quanto às consequências políticas, a aproximação entre identidade e universalidade no âmbito da experiência social tem implicações nítidas. Para além de esperar que se manifeste acidentalmente, é possível desejar, articular e ativar essa aproximação. A aposta é que esse desejo ganha tração quando a política identitária se torna política universal.
Em que condições a política identitária se torna universal senão quando deliberadamente se dedica a completar o universalismo, quando ambiciona converter o universalismo nominal em efetivo? Não será justamente das demandas específicas, percebidas e vocalizadas pela agenda identitária, que a política universal se valerá para de fato entregar sua universalidade?
Para tal, a política identitária precisa se elevar à denunciante do universalismo falhado —como foram os escravizados do Haiti no século 18, as sufragistas no século 19 e, no século 20, os movimentos negros e feministas—, com o propósito de levar mais longe a ideia de igualdade. A política identitária precisa não apenas denunciar, mas assumir sua vocação política de portadora da reivindicação radical de universalidade.
Cabe aqui um reparo sobre a posição às vezes assumida por pautas identitárias de negação das políticas universais, como se estas estivessem em necessária oposição aos interesses e aspirações de grupos minoritários. Opor política universal a igualdade racial ou equidade de gênero é, além de equivocado, contraproducente.
Equivocado já que, quando políticas universais não cobrem grupos politicamente minoritários, é porque elas não são universais, não porque são. A ambição da universalidade é justamente abolir a minoridade política de grupos historicamente em desvantagem, não cuidar com exclusividade das aspirações de grupos majoritários. Simetricamente, a ambição da política identitária é abolir a hierarquia, não inverter seu sentido.
A confusão entre realidades presentes e possibilidades é responsável pela demissão prematura e perversa de um instrumento tão potencialmente transformador quanto as políticas universais. No Brasil, vale lembrar, as políticas ditas universais não são, de fato, universais. Criticamos não sua universalidade, mas a universalidade falhada.
A condenação da política universal é também contraproducente, porque alvejar a política universal quando se busca igualdade é abater seu maior aliado: só com a escala envolvida em políticas efetivamente universais é que se alcançam os grandes números dos grupos politicamente minoritários.
Evidentemente, o universalismo efetivo requer também políticas afirmativas que visem grupos específicos, porque contribuem para complementar a universalização de políticas nominalmente universais.
Convocamos intervenções focalizadas como meio para atingir cobertura universal. Isso se faz necessário porque a experiência em política social mostra que a desigualdade sempre escapa, e o tratamento e o acesso iguais precisam ser ativamente perseguidos. De novo, contudo, o resíduo social que faz brotarem desigualdades mesmo na vigência de políticas universais deve ser buscado alhures, não no caráter universal da política social.
A agenda da política identitária como política universal tem pelo menos dois compromissos. O primeiro é politizar a oposição às desigualdades. A oposição ao status quo não deve se limitar ao apelo a convicções morais que se satisfariam com uma simples regra de equidade, como a distribuição proporcional do recurso social segundo critérios demográficos. Por exemplo, vagas no sistema educacional ou postos no mercado de trabalho.
A oposição ao status quo deve se sustentar em concepções políticas em relação a como recursos da sociedade devem ser coletados e distribuídos entre membros iguais de uma comunidade, para garantir a magnitude da provisão pública suficiente para alterar as perspectivas do grande número de indivíduos dos grupos politicamente minoritários, que são, é bom lembrar, demograficamente majoritários.
O segundo compromisso é investir na potência transformadora da política universal, sua capacidade de abolir o jugo da "lei mercantil" sobre as condições materiais de vida dos cidadãos. Essa lei regula a vida social como competição entre indivíduos e grupos, que gera ganhadores e perdedores.
A ambição de mudança deve ousar mais que simplesmente "diversificar" os universos de ganhadores e de perdedores na competição mercantil. Por exemplo, mais negros e mulheres entre os primeiros, mais brancos e homens entre os segundos.
Trata-se de redesenhar o contrato social, com o intuito de ampliar o escopo do Estado social, detentor de recursos suficientes para atender a necessidades sociais, e encolher o raio de ação do mercado e a influência do poder aquisitivo de cada um.
Com isso, o foco deixa de ser as chances de sucesso de indivíduos e grupos para se voltar para a "renda social" e a provisão coletiva. Enquanto a interação mercantil faz o objeto de desejo ser o sucesso mercantil —o salário, os lucros, os dividendos, a herança—, o novo contrato social o desloca para dimensões mais cooperativas da vida em sociedade —a abrangência e a qualidade dos serviços sociais públicos, a extensão do bem-estar social, planetariamente sustentável.
O reforço das políticas universais em combinação com iniciativas como políticas afirmativas —para rastrear barreiras invisíveis e evitar que qualquer grupo seja alienado dos benefícios da cooperação— são os meios para essa transformação.
A liderança e a energia política dos grupos politicamente minoritários são essenciais para levar adiante essa agenda, que há de representar transformação social profunda.
Agradeço à Isabel Lessa, pela assistência de pesquisa especialmente criativa.
Nem sempre acolhidas com simpatia, as pautas identitárias —reivindicações, por grupos politicamente minoritários, do reconhecimento de suas desvantagens sociais e do acesso a oportunidades e recursos para compensá-las— têm por vezes despertado reações intensas.
No campo progressista, mobilizado por questões de justiça social, duas atitudes sobressaem: em um extremo, há os que veem nas pautas identitárias uma ameaça à democracia social e suas políticas universais; no outro, há os que defendem a chamada política identitária como o único ou o principal meio para compensar déficits sociais e democráticos históricos.
Obra da série "Bori" (2008-2011), de Ayrson Heráclito - Divulgação |
Há, também, uma posição intermediária, negligenciada no debate público brasileiro: a política identitária como política universal. Para desenvolvê-la, contudo, é preciso entender os perigos e as oportunidades abrigados nas duas posições mencionadas.
Segundo a primeira posição —a tese da ameaça à democracia—, a política identitária é um modo de configurar o debate político como disputa entre grupos politicamente minoritários e politicamente majoritários e, dessa forma, promover dois efeitos indesejados.
O primeiro é desviar a atenção da agenda social-democrata de redistribuição. Desse ponto de vista, o alvo da contestação política deveriam ser as instituições e as práticas que patrocinam as desigualdades econômicas contemporâneas —a origem de várias patologias e abusos sociais.
A política identitária, ao desviar a energia política de movimentos sociais contestatórios para a disputa por recursos entre grupos categóricos (por exemplo, raciais ou de gênero), acabaria por negligenciar a pauta redistributiva, centrada na garantia de direitos sociais, e enfraquecer sua promoção.
O segundo efeito seria ainda mais básico: ameaçar a própria democracia política. Ao se expressar como embate entre grupos categóricos exclusivos, que, por definição, incluem os iguais e excluem os diferentes, a política identitária converteria o debate político em divisão e confronto irreconciliáveis.
O resultado seria a erosão do solo comum do qual a democracia se nutre, em que os valores públicos são cultivados e as alianças e as coalizões podem brotar.
Em oposição à tese da ameaça, a segunda posição —a defesa da política identitária— insiste na necessidade de reivindicação de direitos coletivos exclusivos, como cotas, para compensar os déficits democráticos históricos que persistentemente prejudicam alguns grupos.
Como a democracia política não dá o devido peso aos legítimos interesses e às aspirações dos grupos minoritários, que são politicamente sub-representados, os direitos sociais normalmente garantidos pela social-democracia acabariam não os contemplando adequadamente. O acesso desigual a recursos, oportunidades, proteção e segurança, sempre em prejuízo dos grupos minoritários, são uma prova irrefutável disso.
Um cenário mais assustador, mas não de todo improvável, resultaria da combinação das previsões sombrias contidas nas duas teses descritas. O cenário de a democracia se metamorfosear em guerra de trincheira —luta entre grupos, como esperado na tese da ameaça— e, ao mesmo tempo, os interesses e as aspirações das minorias políticas serem de fato apenas marginalmente atendidos —como antecipado na linha de defesa da política identitária.
A política de trincheira levaria a um resultado menos vantajoso aos grupos minoritários, porque a disputa aberta pelos recursos existentes poderia resultar na estagnação ou mesmo na redução dos recursos totais disponíveis para a redistribuição. Uma ilustração ajuda a iluminar esse dilema.
Pense na inclusão racial nas universidades em um cenário em que apenas cotas fossem a política inclusiva. A disputa por uma divisão racialmente equilibrada entre brancos e não brancos de um número muito limitado de vagas alcançaria apenas uma pequena fração da população em idade universitária.
A política que visa exclusivamente ao efeito "marginal" —uma vaga garantida a cada duas, por exemplo— seria menos antirracista por contemplar menos não brancos que a política que visa ao efeito "médio" —a distribuição equitativa, mas do maior número possível de vagas.
A expansão de vagas é essencial para a produção do maior efeito numérico, assim como o investimento em educação básica de qualidade, que permite a ampliação do universo de estudantes elegíveis. Além disso, cotas sem expansão de vagas podem estimular a migração de estudantes brancos e não pobres para universidades privadas, criando mais um estrato de prestígio, de acesso proibitivo.
Uma política com o objetivo de limitar essa fonte adicional de desigualdades teria que insistir na expansão substancial da política universal. Ao fim e ao cabo, o foco exclusivo na disputa entre grupos é perfeitamente compatível com a perspectiva de um neoliberalismo progressista, termo cunhado por Nancy Fraser para o contexto norte-americano, que concilia o recuo do Estado provedor com a partilha dos recursos remanescentes conforme o poder relativo de movimentos sociais e forças políticas.
A posição intermediária entre os extremos da rejeição e da adoção incondicional da política identitária é mais promissora. Essa perspectiva concilia equidade, isto é, equilíbrio na distribuição de recursos, com altos resultados, rompendo a barreira de políticas universais insuficientes e Estado diminuto. Contudo, ela impõe uma torção na política identitária: conceber a política identitária como política universal.
A perspectiva da política identitária como política universal implica grupos minoritários se tornando os campeões da agenda universalista, ainda que não exclusivamente.
Entre as razões para isso, há o fato de grupos minoritários estarem entre os mais organizados politicamente e a maior aptidão da agenda universalista para atender os interesses e aspirações distributivos desses grupos, já que abrange grandes números; respeitar seus valores mais abrangentes como cidadãos, porque neutraliza mecanismos de dominação e subalternização, responsáveis pelo sentimento de subcidadania que assola seus membros; e, em contextos democráticos, viabilizar a formação de coalizões majoritárias, já que abrange interesses amplos, para além dos que se expressam em linguagem identitária.
Como pensar a aproximação entre identidade e universalidade?
Em princípio, parece perfeitamente possível que reivindicações específicas de grupos sociais sejam o estopim de transformações sociais genéricas. Isso ocorre quando reivindicações específicas traduzem e expressam, nos termos de experiências compartilhadas de privação, destituição, discriminação, dominação, opressão e exploração, as dificuldades, barreiras e interdições enfrentadas por grupos minoritários. Nesse caso, o específico seria a forma de manifestação do genérico.
Desigualdades se manifestam em relações assimétricas entre indivíduos e grupos realmente existentes e só podem ser pensadas a partir da experiência particular. É igualmente certo, contudo, que a experiência contenha a metafísica do mundo social, um mundo eivado de relações de dominação e exploração em suas instituições e práticas. Consequentemente, reivindicações específicas de igualdade vocalizadas por diferentes grupos colocam essas relações no banco dos réus e, ao fazê-lo, universalizam a exigência de igualdade.
Algo desse tipo parece ter ocorrido com a reivindicação do reconhecimento de direitos naturais e inalienáveis do homem, os direitos fundamentais à vida e à liberdade, gênero filosófico e lema político dos séculos 17 e 18.
Imaginados como um domínio inviolável, interditado a tiranos e teocratas, por homens brancos privilegiados em metrópoles europeias, os direitos naturais inauguraram a linguagem que os tornaria reivindicáveis também por mulheres, escravizados revolucionários do Haiti e habitantes das colônias do Novo Mundo ao longo dos séculos 18, 19 e 20.
Os falantes pioneiros, mesmo falando de seu lugar de privilégio relativo, não puderam controlar os efeitos de sua fala, recebida e traduzida em reivindicação libertária e de igualdade por outros.
Na experiência histórica, há também um número significativo de exemplos que ilustram como a luta por direitos, encetada por um grupo, deliberadamente conduziu à expansão de direitos a outros grupos e conduziu a significados cada vez mais amplos de direitos.
Muitos movimentos abolicionistas ou independentistas na Europa e nas Américas foram protagonizados simultaneamente por mulheres, negros e indígenas, enquanto também lutavam pela emancipação feminina ou igualdade racial.
Movimentos por direitos civis uniram negros, mulheres, judeus, estudantes, pacifistas; movimentos feministas levantaram as bandeiras do sufrágio universal de adultos, união dos proletários do mundo, políticas de bem-estar social para crianças e idosos, direitos sexuais e antirracismo; lutas operárias foram a centelha para o aprofundamento de direitos sociais e do Estado de bem-estar universalista ao longo do século 20. Recentemente, movimentos pelo reconhecimento dos direitos de povos indígenas têm politizado a defesa da natureza e do planeta.
No Brasil, o movimento negro nasceu como resistência à ditadura e abrigo a minorias políticas, como mulheres e gays, além de negros, e apresentou na Constituinte propostas como a introdução de direitos sociais e a extensão de direitos civis e políticos.
Discursos de líderes, intelectuais e ativistas como Frantz Fanon ("Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona"; "minha pele negra não é depositária de valores específicos"; "sou um ser humano e é todo o passado do mundo que tenho a resgatar"), Martin Luther King ("eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele"), Malcolm X ("acredito em uma sociedade em que as pessoas possam viver como seres humanos com base na igualdade"), Nelson Mandela ("a divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro"), Angela Davis e Djamila Ribeiro ("a mulher negra é a que mais sofre o peso do capitalismo. O que está em jogo é um novo modelo de sociedade [...] anticapitalista, antirracista e feminista") e Wesley Teixeira ("o movimento negro garante humanidade para todos") marcam o insulto à humanidade representado por discriminação, opressão e exploração.
Por fim, uma razão pragmática reforça a aproximação entre identidades e políticas universais: o imperativo de formação de consensos para que políticas igualitárias avancem e vinguem.
O universalismo nas políticas sociais em países europeus onde impera nasceu com a marca do pragmatismo. Trabalhadores urbanos atraíram o apoio de agricultores para formar maiorias parlamentares para posições de seu interesse e, juntos, desenharam políticas para a cidade e o campo. Posteriormente, o universalismo deitou raízes, virou um valor e se tornou distintivo de identidades nacionais.
Quanto às consequências políticas, a aproximação entre identidade e universalidade no âmbito da experiência social tem implicações nítidas. Para além de esperar que se manifeste acidentalmente, é possível desejar, articular e ativar essa aproximação. A aposta é que esse desejo ganha tração quando a política identitária se torna política universal.
Em que condições a política identitária se torna universal senão quando deliberadamente se dedica a completar o universalismo, quando ambiciona converter o universalismo nominal em efetivo? Não será justamente das demandas específicas, percebidas e vocalizadas pela agenda identitária, que a política universal se valerá para de fato entregar sua universalidade?
Para tal, a política identitária precisa se elevar à denunciante do universalismo falhado —como foram os escravizados do Haiti no século 18, as sufragistas no século 19 e, no século 20, os movimentos negros e feministas—, com o propósito de levar mais longe a ideia de igualdade. A política identitária precisa não apenas denunciar, mas assumir sua vocação política de portadora da reivindicação radical de universalidade.
Cabe aqui um reparo sobre a posição às vezes assumida por pautas identitárias de negação das políticas universais, como se estas estivessem em necessária oposição aos interesses e aspirações de grupos minoritários. Opor política universal a igualdade racial ou equidade de gênero é, além de equivocado, contraproducente.
Equivocado já que, quando políticas universais não cobrem grupos politicamente minoritários, é porque elas não são universais, não porque são. A ambição da universalidade é justamente abolir a minoridade política de grupos historicamente em desvantagem, não cuidar com exclusividade das aspirações de grupos majoritários. Simetricamente, a ambição da política identitária é abolir a hierarquia, não inverter seu sentido.
A confusão entre realidades presentes e possibilidades é responsável pela demissão prematura e perversa de um instrumento tão potencialmente transformador quanto as políticas universais. No Brasil, vale lembrar, as políticas ditas universais não são, de fato, universais. Criticamos não sua universalidade, mas a universalidade falhada.
A condenação da política universal é também contraproducente, porque alvejar a política universal quando se busca igualdade é abater seu maior aliado: só com a escala envolvida em políticas efetivamente universais é que se alcançam os grandes números dos grupos politicamente minoritários.
Evidentemente, o universalismo efetivo requer também políticas afirmativas que visem grupos específicos, porque contribuem para complementar a universalização de políticas nominalmente universais.
Convocamos intervenções focalizadas como meio para atingir cobertura universal. Isso se faz necessário porque a experiência em política social mostra que a desigualdade sempre escapa, e o tratamento e o acesso iguais precisam ser ativamente perseguidos. De novo, contudo, o resíduo social que faz brotarem desigualdades mesmo na vigência de políticas universais deve ser buscado alhures, não no caráter universal da política social.
A agenda da política identitária como política universal tem pelo menos dois compromissos. O primeiro é politizar a oposição às desigualdades. A oposição ao status quo não deve se limitar ao apelo a convicções morais que se satisfariam com uma simples regra de equidade, como a distribuição proporcional do recurso social segundo critérios demográficos. Por exemplo, vagas no sistema educacional ou postos no mercado de trabalho.
A oposição ao status quo deve se sustentar em concepções políticas em relação a como recursos da sociedade devem ser coletados e distribuídos entre membros iguais de uma comunidade, para garantir a magnitude da provisão pública suficiente para alterar as perspectivas do grande número de indivíduos dos grupos politicamente minoritários, que são, é bom lembrar, demograficamente majoritários.
O segundo compromisso é investir na potência transformadora da política universal, sua capacidade de abolir o jugo da "lei mercantil" sobre as condições materiais de vida dos cidadãos. Essa lei regula a vida social como competição entre indivíduos e grupos, que gera ganhadores e perdedores.
A ambição de mudança deve ousar mais que simplesmente "diversificar" os universos de ganhadores e de perdedores na competição mercantil. Por exemplo, mais negros e mulheres entre os primeiros, mais brancos e homens entre os segundos.
Trata-se de redesenhar o contrato social, com o intuito de ampliar o escopo do Estado social, detentor de recursos suficientes para atender a necessidades sociais, e encolher o raio de ação do mercado e a influência do poder aquisitivo de cada um.
Com isso, o foco deixa de ser as chances de sucesso de indivíduos e grupos para se voltar para a "renda social" e a provisão coletiva. Enquanto a interação mercantil faz o objeto de desejo ser o sucesso mercantil —o salário, os lucros, os dividendos, a herança—, o novo contrato social o desloca para dimensões mais cooperativas da vida em sociedade —a abrangência e a qualidade dos serviços sociais públicos, a extensão do bem-estar social, planetariamente sustentável.
O reforço das políticas universais em combinação com iniciativas como políticas afirmativas —para rastrear barreiras invisíveis e evitar que qualquer grupo seja alienado dos benefícios da cooperação— são os meios para essa transformação.
A liderança e a energia política dos grupos politicamente minoritários são essenciais para levar adiante essa agenda, que há de representar transformação social profunda.
Agradeço à Isabel Lessa, pela assistência de pesquisa especialmente criativa.
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