O vazamento dos "Arquivos Uber" revela o poder do lobby multimilionário da empresa – e como ela trabalhou com governos ao redor do mundo para minar os direitos dos trabalhadores.
Paris Marx
Jacobin
Mais de 124.000 documentos e correspondências vazados de 2013 a 2017 foram apelidados de "Arquivos Uber". (Peter Summers / Getty Images) |
Tradução / "Às vezes a gente enfrenta problemas porque, bem, nós somos ilegais pra caralho." Essas foram as palavras de Nairi Hourdajian, o chefe de comunicação global da Uber, em uma mensagem enviada a um colega em 2014, quando a empresa enfrentava a perspectiva de ser obrigada a encerrar as operações na Tailândia e na Índia.
A revelação foi parte de um vazamento de mais de 124 mil documentos e correspondências dos anos 2013 a 2017, apelidado de “Arquivos Uber”. A confissão atinge o cerne de como a Uber se tornou a empresa de transportes universal que é hoje: descumprindo leis, fugindo das autoridades, cultivando contatos com gente poderosa e, na hora de lidar com as repercussões, colocando os motoristas na linha de frente como escudo. Os documentos oferecem novos detalhes sobre vários aspectos da empresa que haviam vindo à luz ao longo dos últimos anos.
Os arquivos Uber mostram como a empresa reconheceu que precisava se aproximar de políticos para garantir que as regulamentações não ameaçassem sua existência. David Plouffe e Jim Messina se valeram de contatos e da sua imagem do tempo em que estiveram no governo Obama para ajudar a expansão da Uber pela Europa e pelo Oriente Médio, inclusive conseguindo que diplomatas na França e nos Países Baixos interviessem em favor da empresa. A Uber também desenvolveu relacionamentos estreitos com o ex-Ministro das Finanças do Reino Unido George Osborne, o presidente da França Emmanuel Macron (em seus tempos de ministro da economia), a ex-vice-presidente da Comissão Europeia Neelie Kros, e o prefeito de Toronto John Tory, para citar apenas alguns nomes.
A Uber também desenvolveu um sistema para o caso de uma incursão das autoridades nos escritórios da empresa que ativa uma criptografia remota de todos os computadores e dispositivos. O sistema foi usado mais de 20 vezes em jurisdições que incluem o Canadá, a França, os Países Baixos, a Bélgica, a Hungria, a Romênia e Hong Kong. Seus lobbies no governo garantiram empenho para criar legislações que a tratariam como uma empresa de tecnologia e não de transporte. E a empresa nunca hesitou em colocar os motoristas na linha de fogo quando via vantagem na manobra. “Violência é garantia de sucesso”, disse o CEO Travis Kalanick em 2016 quando membros do conselho executivo manifestaram objeções a um plano de enviar motoristas para um protesto em Paris, onde havia a possibilidade de serem atacados.
Essas histórias são apenas a ponta do iceberg, já que os arquivos foram compartilhados com 40 meios de comunicação que devem continuar publicando sobre o assunto nos próximos dias. A Uber já está tentando antecipar a publicidade negativa, a longa repercussão, e as possíveis reações regulatórias: em um comunicado, a empresa indica as várias revelações que já foram feitas sobre como operava sob o comando de Kalanick, e tenta dar a impressão de que as más ações documentadas são do passado. Mas nada poderia estar mais distante da realidade.
A Uber vendeu uma mentira
Nos primeiros anos da década de 2010, a Uber estava na ascendente, e a mídia não cansava de escrever a respeito. Os rios de elogios nos meios de comunicação ignoravam as várias formas já evidentes em que a empresa afetava a vida de trabalhadores e comunidades em benefício próprio. Isso permitiu que Kalanick proferisse uma série de alegações intrépidas que davam a impressão de que a Uber seria não apenas ótima para nós e que a tecnologia proporcionaria um futuro melhor.
Como escrevi em Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Sem Saída: O que o Vale do Silício não entendeu sobre o futuro dos meios de transporte), a ideia era que a Uber diminuiria a quantidade de carros particulares e congestionamentos, melhoraria o acesso a mobilidade em comunidades com poucos recursos, permitiria que seus motoristas ganhassem bem, e viria a complementar os meios de transporte existentes – pelo menos era isso que dizia Kalanick. Levou apenas alguns anos para que essas promessas se revelassem, na melhor das análises, extremamente ambiciosas ou, na pior, mentiras deslavadas.
O verdadeiro impacto da Uber foi piorar a vida de praticamente todos os envolvidos. Uma série de estudos revelou que a empresa piorou o trânsito em grandes metrópoles, mal diminuiu a quantidade de carros particulares, tirou passageiros de serviços públicos, e aumentou as emissões de gases poluentes por viagem. Tudo isso enquanto dizimava as condições de vida dos taxistas e abusava dos próprios trabalhadores (que vinham majoritariamente de comunidades marginalizadas) para servir, desproporcionalmente, jovens nas cidades grandes.
As grandes promessas e cobertura midiática sem sentido crítico serviram para acobertar o verdadeiro projeto da empresa: desregulamentar a indústria dos táxis, erodir os direitos dos trabalhadores e aumentar o controle corporativo sobre meios de locomoção. Em resumo, foram bem-sucedidos onde uma campanha financiada pelos irmãos Koch na década de 1990 havia falhado. Os verdadeiros benefícios se acumulavam não para o público, cujas ruas estavam tomadas por carros não-regulamentados ou trabalhadores cujo meio de sobrevivência evaporara, mas para os primeiros investidores da Uber, que chegaram a conseguir retornos quando a empresa se tornou pública e para outras empresas apelidadas de “Uber para X” que conseguiram espalhar o modelo do “bico” para outros setores.
Os “arquivos Uber” mostram em detalhes como a empresa veio a ser o que é hoje, somando-se a anos de jornalismo que revelaram desde sexismo desenfreado até a criação de ferramentas como a Greyball para despistar autoridades regulatórias e policiais. A história da empresa é descrita em detalhes no livro A Guerra pela Uber, de Mike Isaac. E ainda assim, a empresa gostaria que acreditássemos que tudo mudou assim que Kalanick saiu.
A Uber não mudou
Quando Dara Khosrowshahi virou CEO em agosto de 2017, a empresa colocou o problema como uma má “cultura” corporativa, e prometeu que Khosrowshahi resolveria a questão. Mas enquanto o tratamento dado a mulheres e outros grupos marginalizados era um problema na sede da empresa, a podridão estava no próprio cerne do modelo de negócios – algo que Khosrowshahi não podia (e nem iria) mudar.
A campanha mais importante de Khosrowshahi desde que assumiu o controle do Uber não foi a de resolver a cultura machista da empresa, mas a de reverter os direitos dos trabalhadores da Califórnia. Em setembro de 2019, o estado aprovou a Resolução Estadual 5, que teria forçado empresas de bicos como a Uber a categorizar os trabalhadores como empregados em vez de autônomos. Porém, as empresas se uniram e gastaram centenas de milhões de dólares para induzir o público a votar em uma medida chamada Projeto 22 que, elas asseguravam, ser para melhorar as condições de trabalho, mas que na realidade fez exatamente o oposto ao negar-lhes o estatuto de funcionários.
Os “Arquivos Uber” são menos sobre a cultura corporativa da Uber e mais sobre a maneira como a empresa se consolidou em cidades ao redor do mundo através da busca implacável por contatos políticos e leis favoráveis a praticamente qualquer custo. Apesar das alegações do time de relações públicas da Uber de que a empresa mudou desde o período dos documentos vazados, a perseverança na campanha por leis que mantenham a classificação errônea de seus trabalhadores prova o inverso.
Encorajado pelos resultados do Projeto 22, Khosrowshahi revelou planos para uma veemente campanha por uma classificação de trabalhadores chamada “IC+”, sigla para “independent contractor plus” – um autônomo plus. Nesse projeto, os trabalhadores ainda seriam considerados autônomos, sem nenhum dos direitos e benefícios associados ao vínculo empregatício. Mas a empresa prometeu que eles ganhariam algumas proteções, como um salário mínimo pelo “tempo ativo” e alguns benefícios. No entanto, a experiência do Projeto 22 já revelara que essas promessas eram falsas: poucos trabalhadores conseguiram acessar os parcos benefícios e o salário mínimo prometido era de apenas US$ 5,64 por hora [o salário mínimo na Califórnia é de US$15,00 por hora].
A Uber planejava estender esse sistema pelos Estados Unidos e pelo mundo. O plano de referendar uma nova medida foi bloqueado pela corte suprema de Massachusetts, mas foi bem-sucedido em Washington. No Canadá, a Uber chamou o IC+ de “Flexible Work+”, Trabalho Flexível Plus, e tem feito lobby em províncias por todo o país para mudar as leis trabalhistas. A recente lei de trabalhadores autônomos de Ontário está bem próxima do que a Uber vem lutando para implementar.
Já no Reino Unido, a Suprema Corte determinou no ano passado que motoristas de Uber sejam classificados como empregados e recebam todos os direitos e benefícios associados. A decisão foi comemorada como um avanço para trabalhadores, e a Uber a tem usado como uma peça fundamental em sua campanha de relações públicas para levar o público a acreditar que trata os trabalhadores de forma justa. Mas a Uber nunca chegou de fato a respeitar a decisão, que dizia que os trabalhadores deveriam receber um salário mínimo pela totalidade do tempo de trabalho – de quando abrem a quando fecham o aplicativo. Em vez disso, a Uber só paga pelo “tempo ativo”, ou seja, durante a corrida.
Os “Arquivos Uber” também mostram que a empresa cultivou relacionamentos importantes, independentemente das consequências. Nas eleições do Canadá no ano passado, o partido conservador revelou um plano para autônomos que foi descrito como uma “cópia exata” da proposta Trabalho Flexível Plus. Descobriu-se que um lobista da Uber era o diretor de políticas do partido e exerceu um papel fundamental no desenvolvimento da proposta. Por sorte, o partido perdeu as eleições, mas Khosrowshahi já havia ido até mais longe.
Em 2019, quando já havia provas conclusivas de que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammad bin Salman havia mandado executar e desmembrar o jornalista Jamal Khashoggi do Washington Post, Khosrowshahi ainda assim não estava inclinado a se distanciar do ditador assassino. Em entrevista à Axios, ele descreveu a ordem como um “erro”, e disse que “as pessoas cometem erros, o que não quer dizer que elas nunca possam ser perdoadas”. No dia seguinte, o time de relações públicas teve que dar conta da confusão que ele criou nessa tentativa de não ofender um dos maiores acionistas da empresa.
Hora de parar a Uber
Ao contrário do que a Uber quer que o público acredite, a empresa não mudou. Ela segue em sua campanha agressiva pelo controle dos meios de locomoção, dizimando os direitos dos trabalhadores no processo – tanto para benefício dos acionistas como o de qualquer empresa tentando nos convencer da ficção de que usar um aplicativo deveria permitir que fujam das leis tradicionais que regulamentaram a indústria em que operam. Mas vencer essas batalhas é essencial para o próximo estágio da Uber.
Depois de mais de uma década perdendo dinheiro, inclusive mais de US$ 20 bilhões só no período desde 2015, é possível que a fonte de dinheiro finalmente esteja secando, já que as taxas de juros dispararam pela primeira vez desde a Grande Recessão. Durante a pandemia, a Uber desistiu de grandes apostas como veículos autônomos e carros voadores, que a empresa prometia serem o futuro do transporte. Em vez disso, vai ficando claro o que tornar-se financeiramente sustentável e o que isso significa para o serviço: preços mais altos e esperas mais longas, a ponto de os táxis voltarem a parecer uma boa opção.
Ao que parece, ao mesmo tempo em que o serviço da Uber se deteriora e os subsídios que a ajudaram a dizimar os táxis evaporam, a empresa está tentando dominar sua maior competidora. Em março, a Uber assinou um acordo para incluir táxis da cidade de Nova York no app, e em seguida fechou acordos semelhantes em São Francisco e na Itália. Com isto, a Uber não apenas controla o relacionamento com o cliente, mas toma posse dos dados da viagem e aumenta a oferta de trabalhadores. Também fica ainda mais próxima de sujeitar os taxistas às regras da Uber, agora que a regulamentação de longa data foi efetivamente desmantelada. O resultado será gerenciamento algorítmico para os motoristas e preços altos para os clientes.
Os “Arquivos Uber” ampliam nossa compreensão dos atos maliciosos que tornaram a Uber a empresa que ela é hoje e de como aspectos dessa cartilha continuam a propelir a guerra global contra os trabalhadores. Com a aparente transformação fundamental do modelo de negócios da empresa, temos a oportunidade de corrigir um erro cometido há anos. A campanha inconsequente da Uber para refazer nosso sistema de transporte a serviço de seus imperativos comerciais deve acabar aqui. Nós podemos fazer muito melhor que isso.
Sobre o autor
Paris Marx é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).
A revelação foi parte de um vazamento de mais de 124 mil documentos e correspondências dos anos 2013 a 2017, apelidado de “Arquivos Uber”. A confissão atinge o cerne de como a Uber se tornou a empresa de transportes universal que é hoje: descumprindo leis, fugindo das autoridades, cultivando contatos com gente poderosa e, na hora de lidar com as repercussões, colocando os motoristas na linha de frente como escudo. Os documentos oferecem novos detalhes sobre vários aspectos da empresa que haviam vindo à luz ao longo dos últimos anos.
Os arquivos Uber mostram como a empresa reconheceu que precisava se aproximar de políticos para garantir que as regulamentações não ameaçassem sua existência. David Plouffe e Jim Messina se valeram de contatos e da sua imagem do tempo em que estiveram no governo Obama para ajudar a expansão da Uber pela Europa e pelo Oriente Médio, inclusive conseguindo que diplomatas na França e nos Países Baixos interviessem em favor da empresa. A Uber também desenvolveu relacionamentos estreitos com o ex-Ministro das Finanças do Reino Unido George Osborne, o presidente da França Emmanuel Macron (em seus tempos de ministro da economia), a ex-vice-presidente da Comissão Europeia Neelie Kros, e o prefeito de Toronto John Tory, para citar apenas alguns nomes.
A Uber também desenvolveu um sistema para o caso de uma incursão das autoridades nos escritórios da empresa que ativa uma criptografia remota de todos os computadores e dispositivos. O sistema foi usado mais de 20 vezes em jurisdições que incluem o Canadá, a França, os Países Baixos, a Bélgica, a Hungria, a Romênia e Hong Kong. Seus lobbies no governo garantiram empenho para criar legislações que a tratariam como uma empresa de tecnologia e não de transporte. E a empresa nunca hesitou em colocar os motoristas na linha de fogo quando via vantagem na manobra. “Violência é garantia de sucesso”, disse o CEO Travis Kalanick em 2016 quando membros do conselho executivo manifestaram objeções a um plano de enviar motoristas para um protesto em Paris, onde havia a possibilidade de serem atacados.
Essas histórias são apenas a ponta do iceberg, já que os arquivos foram compartilhados com 40 meios de comunicação que devem continuar publicando sobre o assunto nos próximos dias. A Uber já está tentando antecipar a publicidade negativa, a longa repercussão, e as possíveis reações regulatórias: em um comunicado, a empresa indica as várias revelações que já foram feitas sobre como operava sob o comando de Kalanick, e tenta dar a impressão de que as más ações documentadas são do passado. Mas nada poderia estar mais distante da realidade.
A Uber vendeu uma mentira
Nos primeiros anos da década de 2010, a Uber estava na ascendente, e a mídia não cansava de escrever a respeito. Os rios de elogios nos meios de comunicação ignoravam as várias formas já evidentes em que a empresa afetava a vida de trabalhadores e comunidades em benefício próprio. Isso permitiu que Kalanick proferisse uma série de alegações intrépidas que davam a impressão de que a Uber seria não apenas ótima para nós e que a tecnologia proporcionaria um futuro melhor.
Como escrevi em Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Sem Saída: O que o Vale do Silício não entendeu sobre o futuro dos meios de transporte), a ideia era que a Uber diminuiria a quantidade de carros particulares e congestionamentos, melhoraria o acesso a mobilidade em comunidades com poucos recursos, permitiria que seus motoristas ganhassem bem, e viria a complementar os meios de transporte existentes – pelo menos era isso que dizia Kalanick. Levou apenas alguns anos para que essas promessas se revelassem, na melhor das análises, extremamente ambiciosas ou, na pior, mentiras deslavadas.
O verdadeiro impacto da Uber foi piorar a vida de praticamente todos os envolvidos. Uma série de estudos revelou que a empresa piorou o trânsito em grandes metrópoles, mal diminuiu a quantidade de carros particulares, tirou passageiros de serviços públicos, e aumentou as emissões de gases poluentes por viagem. Tudo isso enquanto dizimava as condições de vida dos taxistas e abusava dos próprios trabalhadores (que vinham majoritariamente de comunidades marginalizadas) para servir, desproporcionalmente, jovens nas cidades grandes.
As grandes promessas e cobertura midiática sem sentido crítico serviram para acobertar o verdadeiro projeto da empresa: desregulamentar a indústria dos táxis, erodir os direitos dos trabalhadores e aumentar o controle corporativo sobre meios de locomoção. Em resumo, foram bem-sucedidos onde uma campanha financiada pelos irmãos Koch na década de 1990 havia falhado. Os verdadeiros benefícios se acumulavam não para o público, cujas ruas estavam tomadas por carros não-regulamentados ou trabalhadores cujo meio de sobrevivência evaporara, mas para os primeiros investidores da Uber, que chegaram a conseguir retornos quando a empresa se tornou pública e para outras empresas apelidadas de “Uber para X” que conseguiram espalhar o modelo do “bico” para outros setores.
Os “arquivos Uber” mostram em detalhes como a empresa veio a ser o que é hoje, somando-se a anos de jornalismo que revelaram desde sexismo desenfreado até a criação de ferramentas como a Greyball para despistar autoridades regulatórias e policiais. A história da empresa é descrita em detalhes no livro A Guerra pela Uber, de Mike Isaac. E ainda assim, a empresa gostaria que acreditássemos que tudo mudou assim que Kalanick saiu.
A Uber não mudou
Quando Dara Khosrowshahi virou CEO em agosto de 2017, a empresa colocou o problema como uma má “cultura” corporativa, e prometeu que Khosrowshahi resolveria a questão. Mas enquanto o tratamento dado a mulheres e outros grupos marginalizados era um problema na sede da empresa, a podridão estava no próprio cerne do modelo de negócios – algo que Khosrowshahi não podia (e nem iria) mudar.
A campanha mais importante de Khosrowshahi desde que assumiu o controle do Uber não foi a de resolver a cultura machista da empresa, mas a de reverter os direitos dos trabalhadores da Califórnia. Em setembro de 2019, o estado aprovou a Resolução Estadual 5, que teria forçado empresas de bicos como a Uber a categorizar os trabalhadores como empregados em vez de autônomos. Porém, as empresas se uniram e gastaram centenas de milhões de dólares para induzir o público a votar em uma medida chamada Projeto 22 que, elas asseguravam, ser para melhorar as condições de trabalho, mas que na realidade fez exatamente o oposto ao negar-lhes o estatuto de funcionários.
Os “Arquivos Uber” são menos sobre a cultura corporativa da Uber e mais sobre a maneira como a empresa se consolidou em cidades ao redor do mundo através da busca implacável por contatos políticos e leis favoráveis a praticamente qualquer custo. Apesar das alegações do time de relações públicas da Uber de que a empresa mudou desde o período dos documentos vazados, a perseverança na campanha por leis que mantenham a classificação errônea de seus trabalhadores prova o inverso.
Encorajado pelos resultados do Projeto 22, Khosrowshahi revelou planos para uma veemente campanha por uma classificação de trabalhadores chamada “IC+”, sigla para “independent contractor plus” – um autônomo plus. Nesse projeto, os trabalhadores ainda seriam considerados autônomos, sem nenhum dos direitos e benefícios associados ao vínculo empregatício. Mas a empresa prometeu que eles ganhariam algumas proteções, como um salário mínimo pelo “tempo ativo” e alguns benefícios. No entanto, a experiência do Projeto 22 já revelara que essas promessas eram falsas: poucos trabalhadores conseguiram acessar os parcos benefícios e o salário mínimo prometido era de apenas US$ 5,64 por hora [o salário mínimo na Califórnia é de US$15,00 por hora].
A Uber planejava estender esse sistema pelos Estados Unidos e pelo mundo. O plano de referendar uma nova medida foi bloqueado pela corte suprema de Massachusetts, mas foi bem-sucedido em Washington. No Canadá, a Uber chamou o IC+ de “Flexible Work+”, Trabalho Flexível Plus, e tem feito lobby em províncias por todo o país para mudar as leis trabalhistas. A recente lei de trabalhadores autônomos de Ontário está bem próxima do que a Uber vem lutando para implementar.
Já no Reino Unido, a Suprema Corte determinou no ano passado que motoristas de Uber sejam classificados como empregados e recebam todos os direitos e benefícios associados. A decisão foi comemorada como um avanço para trabalhadores, e a Uber a tem usado como uma peça fundamental em sua campanha de relações públicas para levar o público a acreditar que trata os trabalhadores de forma justa. Mas a Uber nunca chegou de fato a respeitar a decisão, que dizia que os trabalhadores deveriam receber um salário mínimo pela totalidade do tempo de trabalho – de quando abrem a quando fecham o aplicativo. Em vez disso, a Uber só paga pelo “tempo ativo”, ou seja, durante a corrida.
Os “Arquivos Uber” também mostram que a empresa cultivou relacionamentos importantes, independentemente das consequências. Nas eleições do Canadá no ano passado, o partido conservador revelou um plano para autônomos que foi descrito como uma “cópia exata” da proposta Trabalho Flexível Plus. Descobriu-se que um lobista da Uber era o diretor de políticas do partido e exerceu um papel fundamental no desenvolvimento da proposta. Por sorte, o partido perdeu as eleições, mas Khosrowshahi já havia ido até mais longe.
Em 2019, quando já havia provas conclusivas de que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammad bin Salman havia mandado executar e desmembrar o jornalista Jamal Khashoggi do Washington Post, Khosrowshahi ainda assim não estava inclinado a se distanciar do ditador assassino. Em entrevista à Axios, ele descreveu a ordem como um “erro”, e disse que “as pessoas cometem erros, o que não quer dizer que elas nunca possam ser perdoadas”. No dia seguinte, o time de relações públicas teve que dar conta da confusão que ele criou nessa tentativa de não ofender um dos maiores acionistas da empresa.
Hora de parar a Uber
Ao contrário do que a Uber quer que o público acredite, a empresa não mudou. Ela segue em sua campanha agressiva pelo controle dos meios de locomoção, dizimando os direitos dos trabalhadores no processo – tanto para benefício dos acionistas como o de qualquer empresa tentando nos convencer da ficção de que usar um aplicativo deveria permitir que fujam das leis tradicionais que regulamentaram a indústria em que operam. Mas vencer essas batalhas é essencial para o próximo estágio da Uber.
Depois de mais de uma década perdendo dinheiro, inclusive mais de US$ 20 bilhões só no período desde 2015, é possível que a fonte de dinheiro finalmente esteja secando, já que as taxas de juros dispararam pela primeira vez desde a Grande Recessão. Durante a pandemia, a Uber desistiu de grandes apostas como veículos autônomos e carros voadores, que a empresa prometia serem o futuro do transporte. Em vez disso, vai ficando claro o que tornar-se financeiramente sustentável e o que isso significa para o serviço: preços mais altos e esperas mais longas, a ponto de os táxis voltarem a parecer uma boa opção.
Ao que parece, ao mesmo tempo em que o serviço da Uber se deteriora e os subsídios que a ajudaram a dizimar os táxis evaporam, a empresa está tentando dominar sua maior competidora. Em março, a Uber assinou um acordo para incluir táxis da cidade de Nova York no app, e em seguida fechou acordos semelhantes em São Francisco e na Itália. Com isto, a Uber não apenas controla o relacionamento com o cliente, mas toma posse dos dados da viagem e aumenta a oferta de trabalhadores. Também fica ainda mais próxima de sujeitar os taxistas às regras da Uber, agora que a regulamentação de longa data foi efetivamente desmantelada. O resultado será gerenciamento algorítmico para os motoristas e preços altos para os clientes.
Os “Arquivos Uber” ampliam nossa compreensão dos atos maliciosos que tornaram a Uber a empresa que ela é hoje e de como aspectos dessa cartilha continuam a propelir a guerra global contra os trabalhadores. Com a aparente transformação fundamental do modelo de negócios da empresa, temos a oportunidade de corrigir um erro cometido há anos. A campanha inconsequente da Uber para refazer nosso sistema de transporte a serviço de seus imperativos comerciais deve acabar aqui. Nós podemos fazer muito melhor que isso.
Sobre o autor
Paris Marx é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).
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