30 de julho de 2022

O que os capitalistas chineses devem a Mao Tsé-Tung

A China não desenvolveu o capitalismo durante o século XVIII, apesar de ter uma economia de mercado tão forte quanto a da Grã-Bretanha. A matéria-prima para a decolagem capitalista da China no século 20 veio de uma figura improvável: Mao Tsé-Tung.

Uma entrevista com
Ho-fung Hung



Mao Zedong (1893-1976). (Universal Images Group via Getty Images)

Os capitalistas precisam do Estado. Sem a ajuda do Estado, os ricos muitas vezes não podem acumular os recursos necessários para iniciar a produção capitalista (o que Marx chamou de “acumulação primitiva”) – mesmo dentro das economias de mercado.

Na Inglaterra do século XVI, o processo de acumulação primitiva começou com o cercamento de terras comuns sancionado pelo Estado; continuou por vários séculos, quando os monarcas europeus deram poder aos mercadores em troca de assistência financeira durante a guerra. No século XVIII, uma pequena classe de mercadores ingleses havia acumulado grande parte do capital e das terras do país. Todos nós sabemos o que aconteceu depois.

Segundo o sociólogo Ho-fung Hung, a China do século XVIII também tinha uma próspera economia de mercado, mas suas elites políticas suprimiram a acumulação de capital da classe mercantil: sem acumulação primitiva, sem revolução industrial. Em seus estudos marxistas, Hung explora as implicações dessa história na ascensão da China como superpotência econômica global. Seus livros incluem The China Boom: Why China Will Not Rule the World, City on the Edge: Hong Kong under Chinese Rule e Clash of Empires: From “Chimerica” to the “New Cold War”. O futuro, para Hung, não é o domínio mundial chinês, mas um retorno ao tipo de rivalidade capitalista-imperialista descrita por Vladimir Lenin em Imperialismo, estágio superior do capitalismo.

No início deste ano, Hung sentou-se para uma entrevista em duas partes com The Dig, um podcast da Jacobin. Hung e o apresentador do Dig, Daniel Denvir, cobriu a história político-econômica chinesa desde o período pré-Qing até o presente, abordando o comércio de prata do século XVI, a armadilha do Fundo Monetário Internacional (FMI) para as economias em desenvolvimento do século XX e o impactos da crise financeira de 2008. Nesta primeira parte da entrevista, que foi editada para maior clareza e concisão, Hung mostra como os esforços da era Mao para consolidar a indústria urbana e reestruturar a economia rural provocaram a explosão da China em um gigante exportador. Você pode ouvir a primeira parte da entrevista aqui e a segunda parte aqui.

Daniel Denvir

Um dos principais enigmas do seu livro é “por que o capitalismo não surgiu espontaneamente na China do século XVIII, que era a economia de mercado mais próspera e admirada do mundo moderno”. Vamos começar revisando como o capitalismo surgiu na Europa e as teorias sobre por que isso aconteceu.

Você escreve que uma economia de mercado não é inerentemente capitalista, nem estabelece automaticamente as bases para uma decolagem capitalista. Antes de entrarmos na história, vamos definir algumas noções básicas. Qual é a relação entre uma economia de mercado e o capitalismo?

Ho-fung Hung

Na academia e na concepção de muitas pessoas, mercados e capitalismo são a mesma coisa. Mas, como o historiador francês Fernand Braudel apontou há muito tempo, mercados e capitalismo não são apenas diferentes, mas são, em muitos aspectos, antitéticos um ao outro, porque operam com lógicas diferentes.

Marx formula a economia de mercado, ou troca de mercadorias, como M-D-M: você tem uma mercadoria ou um produto, você o troca por dinheiro e então usa o dinheiro para trocar por outras mercadorias ou produtos. Esta é uma troca de mercado. Você produz um par de sapatos e o troca por dinheiro, e então usa o dinheiro para comprar comida.

Mas o capitalismo é diferente, porque nas atividades capitalistas a motivação é o lucro e a acumulação. Como Marx aponta, é D-M-M’, o que significa que você tem um pote de dinheiro, você o troca por alguns produtos e depois vende os produtos por uma quantia maior de dinheiro. Assim, todo o propósito do capitalismo é acumular mais e mais dinheiro para acumular dinheiro.

Braudel mostrou há muito tempo que esse tipo de atividade lucrativa geralmente requer uma grande corporação – e até mesmo a ajuda do Estado ou de um monopólio – para garantir que sua lucratividade continue aumentando e sua riqueza se acumule.

Podemos pensar sobre a distinção entre mercado e capitalismo usando a analogia de um mercado de agricultores e uma mercearia. No mercado de agricultores tradicional, as pessoas estão trocando coisas umas com as outras por dinheiro e usando dinheiro para comprar coisas. Mas em uma gigantesca corporação de supermercados como Safeway ou Giant, todo o lucro é acumulado e reinvestido pela loja. O lucro é o objetivo central dessas operações monopolistas, que funcionam em uma lógica muito diferente de um mercado. Então essa é a distinção básica entre o mercado e o capitalismo.

Danidel Denvir

O Estado é fundamental aqui, principalmente quando se trata do processo coercitivo de concentração de recursos conhecido como acumulação primitiva. Como o sistema interestatal do início da Europa moderna criou as condições para os estados apoiarem a acumulação primitiva capitalista?

Ho-fung Hung

Em uma situação de mercado, depois que as pessoas descobrem que o dinheiro é útil, naturalmente algumas pessoas vão querer acumular mais e mais. Assim, o capitalismo pode emergir de uma economia de mercado, mas o sistema capitalista não emergirá automaticamente da economia de mercado. Em muitas civilizações do mundo, sempre que alguns comerciantes emergiam da economia de mercado para acumular riqueza para seu próprio bem, havia algum tipo de sanções morais, religiosas ou políticas contra eles.

Vemos isso muito na Igreja Católica, na religião islâmica e na China confucionista: muitos governantes viam a acumulação de riqueza como desestabilizadora do tecido social e criadora de rupturas. Portanto, havia muita discriminação contra comerciantes ou classes lucrativas. Em alguns momentos e em alguns lugares havia até leis contra esse tipo de atividade, protegendo a ordem natural pré-capitalista das coisas.

O que aconteceu na Europa é que, em algum momento, o continente caiu em uma guerra crônica entre os estados. Sejam monarquias ou repúblicas, esses estados precisam de financiamento para seus esforços de guerra, pois descobrem que a guerra é cara. Se você perder uma guerra com um rival no sistema internacional, as pessoas se rebelarão e haverá muitas consequências. Então eles têm que lutar guerras e vencer essas guerras. E para isso precisam levantar capital para financiar a guerra na forma de emissão de títulos; eles vendem títulos para comerciantes e banqueiros, para que possam recrutar mercenários e desenvolver ou comprar armas avançadas.

Nesta situação europeia, o cálculo do governante muda. Na maioria das outras civilizações do mundo, e mesmo na maior parte da Europa medieval, o governante está preocupado com a estabilidade social e a hierarquia política, então sanciona e discrimina comerciantes e classes lucrativas. Mas em uma situação de guerra crônica, o governante fica mais interessado em vencer aquela guerra externa do que em manter a estabilidade social interna.

Se você vencer uma guerra, poderá receber muitos saques e aprimorar seu governo; mas se você perder uma guerra, então você perde a cabeça. Foi esse dilema de guerra que incitou o governante a fazer uma aliança com a classe lucrativa, porque eles são as únicas pessoas com recursos suficientes para financiar o esforço de guerra. Disso nasce o chamado estado capitalista.

E esta é uma das principais razões pelas quais a economia de mercado, que é realmente universal em muitos lugares do mundo desde o período medieval até o início dos tempos modernos, só levou ao surgimento e domínio das atividades capitalistas na Europa.

Daniel Denvir

Por que a acumulação primitiva é concebida como esse momento historicamente específico, tão crítico para a decolagem capitalista?

Ho-fung Hung

A acumulação primitiva, chamada de “acumulação original” em algumas traduções dos textos de Marx, é a ideia de que no início da atividade de acumulação capitalista, a classe lucrativa tem que se apoderar dos meios de produção ou riqueza de outras pessoas, para obter o primeiro pote de ouro, por assim dizer. O cerco é o exemplo que Marx cita: basicamente, os capitalistas usaram o poder do Estado para se apropriar das terras dos camponeses e criar suas primeiras fortunas.

Depois de terem essas primeiras fortunas, segundo a formulação original de Marx, investem em tecnologia, máquinas e outras coisas; então, eles têm uma empresa capitalista que pode continuar acumulando riqueza através da expropriação do excedente do trabalho assalariado e da inovação tecnológica, sem mais apropriação bruta das propriedades e meios de produção das pessoas. Assim, a acumulação primitiva é a origem da dominação.

Mas, é claro, estudos posteriores mostram que a acumulação primitiva não é tão primitiva, no sentido de que está em curso mesmo no século XXI. Não é como se o capitalismo se tornasse melhor depois de sua primeira fase.

Um exemplo mais recente desse tipo de acumulação primitiva – acumulação por meio de desapropriação ou apropriação – é a execução hipotecária após a crise financeira do subprime nos EUA e em muitos países avançados. Você está em dívida com o banco pela hipoteca, mas quando a avaliação de sua casa despenca, você não pode pagar; ou você fica desempregado e não pode pagar. Em ambos os casos, o banco entra e desapropria sua casa, mesmo que você já tenha pago uma grande parte de sua hipoteca.

Esse tipo de apropriação está muito próximo de práticas do início da modernidade, como o enclausuramento. Há outros exemplos, como a crise da dívida mundial e o ajuste estrutural, que criaram muitos problemas para os países em desenvolvimento nas décadas de 1980 e 1990. Chamamos esse tipo de acumulação de “primitivo”, apenas porque foi assim que Marx o formulou – mas na verdade está em andamento no presente.

Danidel Denvir

Você escreve que, por muito tempo, a erudição retratou a China Imperial tardia como voltada para dentro e insular. Mas, de fato, a partir do século XVI, a demanda por seda e cerâmica chinesas explodiu no mercado mundial. E no século XVIII, a China estava absorvendo a maior parte da prata que os colonialistas europeus estavam extraindo nas Américas, o que foi uma coisa surpreendente de se aprender. Os padrões de vida chineses da época pelo menos correspondiam aos da Europa Ocidental.

Como esse influxo de prata transformou a economia chinesa? Como essa economia estava então posicionada dentro do sistema mundial? E por que, dada essa incrível riqueza, a China do século XVIII não foi capaz de realizar a acumulação primitiva necessária para a decolagem capitalista?

Ho-fung Hung

Esse é um capítulo interessante da história. O equívoco comum é que, do século XVI ao século XVIII, a China não precisava de nada do mundo, mas o mundo precisava de prata chinesa, chá chinês e tecidos de algodão chineses. Isso é um equívoco porque, na verdade, a China precisava de coisas do mundo, especialmente prata. Nossa percepção da prata moderna inicial é que era apenas uma moeda, uma medida de valor; não tem valor de uso. É utilidade em si.

Mas isso é verdade? A China estava em uma crise monetária nos séculos XV e XVI. Só foi resolvido pelo influxo de prata americana, que fluía para a China através de comerciantes europeus, que usavam a prata para comprar mercadorias chinesas. Veio através do comércio de Manilla e da rede comercial colonial portuguesa, que ligava todo o caminho a Macau e Guangdong. E mais tarde, é claro, os holandeses e os britânicos se juntam, comprando mercadorias chinesas com prata americana.

Esta prata é muito importante porque o sistema monetário chinês costumava depender de papel-moeda e moedas de cobre. Mas a desvantagem desse papel-moeda é que ele é fácil de falsificar e é muito difícil manter seu valor; o estado pode imprimir muito disso, e então seu valor despenca e as pessoas não confiam mais nele. Esse papel-moeda não é muito confiável e o cobre é bastante abundante em termos de recursos de mineração, portanto, também não é uma maneira muito conveniente de medir o valor de mercadorias valiosas ou a granel em rotas comerciais de longa distância. A prata é uma escolha melhor porque é preciosa o suficiente para manter grandes quantidades de valor em longas distâncias.

A China costumava depender do Japão para o fornecimento de prata, porque a China não tinha muita prata extraída internamente. Mas o Japão adota sua política de reclusão no início do século XVII. Assim, ele interrompe seu descarregamento de prata para a China, e a China passa a depender da prata americana para a principal moeda de sua economia. O estado cobra impostos em prata, o que significa que as pessoas precisam pagar impostos em prata mesmo que sua renda seja em moeda de cobre; essas pessoas precisam trocar cobre por prata. Todo o comércio de longa distância dentro da China também era de prata, e essa prata vinha de minas americanas.

Então a economia chinesa está muito ligada à economia mundial nesse sentido, com esse fluxo de prata.

Para responder sua pergunta sobre por que a China não teve um período de acumulação primitiva se tivesse essa economia de mercado, esse arco de transformação de uma economia de mercado em uma economia capitalista é realmente muito comum. Digamos que é a situação normal em todo o mundo porque, como eu disse, quando você tem uma vasta economia de mercado, sempre há comerciantes que querem acumular dinheiro por acumular dinheiro; eles se tornam agiotas e banqueiros e coisas assim.

Se houver alguns deles e eles não forem muito ricos, eles podem ajudar a facilitar a economia. Mas quando eles se tornarem muito grandes, isso invocará ressentimento, e o estado começará a ver esses comerciantes ricos como candidatos ao poder, ameaçando o governo dos monarcas.

Por causar ruptura política e social, essa atividade capitalista leva o Estado a confiscar periodicamente suas riquezas e persegui-los por acusações de corrupção: aconteceu na China, no mundo islâmico, no sul da Ásia e na Europa medieval católica. O que aconteceu no início da Europa moderna, devido à guerra crônica, foi um caso especial.

Enquanto isso, na China, você só tem a situação normal em que o Estado considera os comerciantes úteis, mas também os persegue se eles se tornarem muito numerosos ou ricos. E, curiosamente, quando há um conflito entre os comerciantes e os agricultores, artesãos ou cidadãos comuns que reclamam dos preços dos alimentos e das atividades de entesouramento dos comerciantes de arroz, o Estado vem em socorro.

O estado tenderá a ficar do lado dos trabalhadores, fazendeiros e pobres e forçará os comerciantes a doar seus alimentos ou baixar os preços. Basicamente, havia controle de preços nos séculos XVII e XVIII. Como resultado, se você é uma família de comerciantes, é um padrão muito típico que, quando você ficar rico o suficiente, começará a investir seus recursos na educação de seus filhos, a fim de prepará-los para o exame imperial.

Sob o sistema de exame imperial chinês, se você for muito bem no exame, poderá se tornar um oficial e iniciar uma carreira burocrática. Como grupos de comerciantes e banqueiros bem-sucedidos eram frequentemente perseguidos na China dos séculos XVII e XVIII, era prudente investir sua fortuna na educação da geração mais jovem, para que eles possam ter carreiras burocráticas e você possa se tornar uma família política. Era muito comum que famílias ricas de comerciantes se transformassem em famílias políticas, tornando-se parte do estado.

Isso era diferente da Europa, onde você vê empresas multigeracionais, familiares e financeiras, como os Rothschilds. Para as famílias de comerciantes e banqueiros chineses, a melhor maneira de reproduzir o status de elite era impedir que o Estado confiscasse suas riquezas tornando-se uma família política.

Daniel Denvir

Portanto, a principal diferença é que o estado chinês da era da Dinastia Qing, buscando estabilidade e harmonia social, levou em consideração as demandas dos trabalhadores. Em contraste, os estados europeus ficaram ansiosos para se aliar aos comerciantes para esmagar a agitação popular sempre que ela surgisse. E, como resultado, o comércio na Europa não é totalmente estigmatizado e reprimido.

Na China, a nobreza rural e as elites estatais estão investindo muito dinheiro no comércio, mas os empresários, em vez de construir essas poderosas famílias multigeracionais como os Rothschilds, investem sua riqueza para se tornarem as verdadeiras elites: a nobreza e os funcionários do estado.

Ho-fung Hung

Nos contextos europeus, também vemos governantes paternalistas que tentam simpatizar com as massas contra os mercadores, mas comparativamente menos, porque precisam do financiamento e dos recursos monetários dos mercadores para financiar suas guerras. Na China, eles estão mais preocupados com a agitação social porque, em seu auge no século XVIII, a Dinastia Qing era vista como uma dinastia de ocupação estrangeira.

Os manchus originaram-se como uma espécie de povo seminômade; eles nem falam e escrevem chinês no início, porque eles têm sua própria língua. Em termos de laços de sangue e afinidade cultural, eles estão mais próximos dos mongóis e outros povos da Ásia Central. Os manchus invadiram no século XVII. Eles esmagaram e depois acabaram com a Dinastia Ming, que é vista como a última dinastia chinesa Han.

No século XVII, muitos da nobreza chinesa Han estão resistindo ao domínio dos manchus, assim como resistiram ao domínio mongol no século XIII. Ao longo da dinastia Qing, os manchus se preocupam em serem vistos como uma dinastia invasora estrangeira. E durante grande parte do século XVII, os chineses han não foram autorizados a participar do estabelecimento militar de elite dos gerentes, o exército de bandeira; era exclusivamente para os manchus, os mongóis e outros povos seminômades.

Então, em certo sentido, é verdade que eles são uma espécie de dinastia de ocupação estrangeira. Porque os Qing estão tão preocupados com a legitimidade, eles estão mais ansiosos para ficar do lado dos oprimidos quando surgem conflitos de classe, retratando-se como protetores paternalistas das pessoas comuns. Ao mesmo tempo, eles desconfiam mais dos comerciantes e das classes financeiras, porque a maioria deles são chineses han. Portanto, havia também uma dimensão étnica nessa dinâmica.

Daniel Denvir

Você também argumenta que as chamadas explicações de origens agrárias para o capitalismo decolar na Inglaterra – que apontam para o modo como a revolução agrícola moderna da Inglaterra liberou capital e trabalho essenciais – não explicam por que a China não decolou. A China, de fato, também havia passado por uma revolução agrícola, de modo que havia um excedente rural na China imperial tardia. Simplesmente não foi coordenado para a industrialização urbana.

Ho-fung Hung

Na literatura de história social e econômica da Inglaterra e da Europa em geral, a suposição é de que houve uma revolução agrícola. A produtividade agrícola cresce exponencialmente, de modo que geralmente havia excedente suficiente no campo para pavimentar o caminho para a ascensão do capitalismo industrial.

O que estou argumentando é que esta é uma condição necessária, mas não suficiente para a ascensão do capitalismo industrial ou do capitalismo em geral: você pode ter uma revolução agrícola, pode gerar excedentes suficientes, mas ainda precisa de atores, agentes e instituições para concentrar o excedente em uma empresa capitalista. Essa elite urbana é muito importante, e é outra condição necessária.

O que vemos na China é um consenso nos séculos XVII e XVIII de que a produtividade agrícola chinesa teve um crescimento impressionante, comparável ao da Inglaterra ou da Europa Ocidental. Há excedente agrícola suficiente. Mas por causa da tensa relação do Estado com os comerciantes e o custo emergente do empreendedorismo, falta uma elite urbana capaz e disposta a coordenar a concentração desse excedente rural em um empreendimento capitalista.

Novamente, não estou dizendo que não existiam tais elites. Havia alguns, mas nunca foram tão resistentes e poderosos quanto seus pares na Europa, por causa da situação política particular da China no século XVIII. Em suma, esta revolução agrícola e excedente agrícola abundante é apenas uma condição necessária, mas não suficiente para o surgimento do capitalismo na China.

Daniel Denvir

Sua próxima pergunta, avançando pela história chinesa, é “como e por que os construtores do estado no século XIX e início do século XX falharam em promover o capitalismo dirigido pelo estado, como o Japão fez”. Todo industrializador tardio, depois da Inglaterra, “enfrentou uma economia mundial cada vez mais competitiva” e “exigiu um nível ainda mais alto de intervenção estatal para direcionar e concentrar recursos financeiros essenciais para um início mais rápido na acumulação de capital”.

Como os industrializadores tardios bem-sucedidos, como Alemanha, Rússia e particularmente o Japão, promoveram o capitalismo dirigido pelo Estado em um período em que o imperialismo ocidental estava em ascensão? E como esse novo sistema mundial reformulou as condições que cada novo estado desenvolvimentista, incluindo a China, foi forçado a navegar?

Ho-fung Hung

Entrando no século XIX, será interessante comparar o Japão e a China. O Japão é um industrializador tardio bem-sucedido; A China é menos bem sucedida. A China passou por algum progresso no século XIX, mas não é tão bem sucedido quanto no Japão. A chave para entender essa diferença é o estado.

Japão e China eram muito semelhantes até o século XVIII. Há excedente agrícola abundante, faltam empreendedores urbanos. E então o Japão pega um atalho para o capitalismo usando o poder do Estado para fazer a acumulação primitiva, se você preferir.

Uma forma disso, é claro, é que o Estado usou a tributação para espremer os camponeses e concentrar o excedente rural nas mãos do Estado. Então o Estado usou esses recursos para estabelecer um banco que oferecia empréstimos baratos aos industriais, fornecendo capital para a industrialização do país. Assim, na rota japonesa, e também alemã, para a industrialização tardia, a pré-condição é um estado unificado que seja forte o suficiente para perseguir essa expropriação às vezes muito brutal de recursos do campo.

Na China, eles tentaram fazer a mesma coisa, mas seu esforço fracassou no século XIX. Há reformas tributárias no estado chinês; eles querem aumentar a tributação e então usar o dinheiro dos impostos para criar uma corporação apoiada pelo governo para importar tecnologia estrangeira, construir aço, ferrovias e todos os tipos de coisas. Então foi a mesma estratégia, mas a China não conseguiu executá-la e o Japão conseguiu, tanto por fatores contingentes quanto por fatores menos contingentes.

Uma é que o Japão é um lugar muito menor. Geograficamente, a China é muito, muito maior; O Japão é do tamanho de uma província chinesa. O estado chinês precisava coordenar a concentração de recursos e a industrialização em toda a vasta base do império, o que é muito mais difícil apenas por causa de sua vastidão geográfica.

Como resultado de sua escala continental, o estado delegou muitas tarefas às elites provinciais ou locais. Assim, na China do século XIX, há uma ruptura do Estado, em que essas elites locais passam a ter seus próprios exércitos particulares, reprimindo rebeliões e coisas assim. Essa desintegração do estado não ocorreu no Japão, onde um espaço geográfico muito menor tornou relativamente fácil para o estado centralizar o poder e fazer tudo por meio do governo central.

Outro fator é a insularidade do Japão como um estado insular. Na China do século XIX, as forças imperialistas ocidentais estavam muito interessadas em dividir os recursos da China entre si — os britânicos, os franceses, os alemães, os russos e todos os outros. Essas potências estão ocupadas tentando criar suas próprias esferas de influência na China durante o século XIX, de modo que não dedicam muita energia e atenção ao Japão. O Japão só teve uma relação comercial com os EUA no século XIX.

Mas naquela época, a população e o centro de gravidade econômico dos EUA ainda estavam em sua costa leste; seus interesses estavam começando a se mover para o oeste, mas os EUA ainda eram uma jovem potência do Pacífico. Não tinha o tipo de poder ou desejo de colonizar o Japão, por assim dizer, então estabeleceu relações comerciais.

Como resultado, o Japão tem esse espaço para respirar, enquanto outras potências europeias estão ocupadas dividindo a China. Assim, foram fatores geográficos e fatores geopolíticos contingentes no século XIX que levaram ao fracasso do Estado chinês em perseguir o tipo de estratégia de industrialização tardia que o Japão e a Alemanha empregaram na mesma época.

Daniel Denvir

Essa desordem, é claro, continuou por décadas, através das guerras do período republicano até 1949, quando Mao declarou a República Popular da China. E a razão pela qual foi impossível alcançar a decolagem capitalista durante as guerras civis, guerras estrangeiras com o Japão e guerras mundiais do período republicano não é um mistério.

Ho-fung Hung

Sim, exatamente. Depois que o Japão decolou, o próprio Japão se tornou uma potência imperial e entrou na competição por recursos chineses. Assim, a China está ocupada evitando esse tipo de invasão por um século inteiro, até que o Partido Comunista da China (PCC) chegou ao poder e conseguiu, pela primeira vez em séculos, criar um estado central unificado e forte. É aí que a decolagem industrial pode realmente acontecer.

Daniel Denvir

Mao e a ascensão do PCC mudam tudo. Você escreve que “os desenvolvimentos rural-agrário e urbano-industrial no período Mao lançaram as bases para o boom capitalista na década de 1980”.

Por que a acumulação primitiva teve sucesso sob Mao? O que significa que foi realizado em nome do socialismo? Como isso está relacionado ao argumento de Immanuel Wallerstein de que o socialismo realmente existente nunca operou fora do sistema mundial capitalista?

Ho-fung Hung

Em uma espécie de formulação wallersteiniana, concordo que o estado socialista deve governar com a igualdade como sua primeira prioridade. Mas em muitos estados socialistas realmente existentes, da União Soviética à Europa Oriental, à China comunista depois de 1949, a igualdade faz parte disso, definitivamente – eles tentam promover a igualdade como parte da propaganda ou da política real – mas a primeira prioridade é a acumulação e o crescimento. Na verdade, esse tipo de industrialização rápida é realmente sua primeira prioridade.

Na União Soviética e na China comunista durante os anos 50 e 60, esse imperativo de rápida industrialização e crescimento supera qualquer outra consideração. O que eu defendo, junto com muitos outros estudiosos chineses, é que Mao buscou uma forma muito extrema de industrialização liderada pelo Estado, usando o poder do Estado para extrair recursos agrícolas excedentes do campo e concentrá-los em empresas urbanas estatais, com o objetivo de expandir rapidamente os setores industriais urbanos, das siderúrgicas à infraestrutura.

No processo, essa política ampliou a desigualdade entre o rural e o urbano, por ser um modelo muito típico de exploração do campo para promover o crescimento dos setores industriais urbanos.

Claro, parte do acordo é que eles também tentam criar igualdade e equalizar renda e status dentro do campo e da cidade. Mas a desigualdade entre os setores urbano e rural continua aumentando por causa desse modelo de industrialização pesada e rápida.

Nesse sentido, o modelo socialista de estado não é exatamente um socialismo puro. Essa forma de industrialização envolve um imperativo para a rápida acumulação de capital, não pelo capital privado, mas pelo capital estatal. É uma forma extrema de industrialização liderada pelo Estado, como o que a Alemanha e o Japão fizeram com sucesso no século XIX, mas em um ambiente internacional muito mais difícil de meados do século XX. Nesse ambiente, a industrialização estatal assumiu uma forma muito mais extrema e rápida: uma extração direta do excedente rural para concentrar o setor industrial urbano.

Daniel Denvir

Uma política maoísta chave que lançou as bases para o boom capitalista posterior não foi apenas esse estado espremendo o campo, mas também a compensação dos camponeses, fornecendo assistência médica substancial e outras políticas de bem-estar. Como esse pool de trabalho foi criado? E então como, nos anos 90, esse excedente foi lançado na economia industrial de exportação costeira em expansão?

Ho-fung Hung

A principal distinção entre o modelo de rápida industrialização liderada pelo Estado da União Soviética e o chinês é que Stalin basicamente destruiu o campesinato e promoveu a urbanização da população. Na China, eles capturaram a população rural no campo. A economia camponesa foi destruída e substituída pelo sistema de comunas populares, que se assemelha às fazendas coletivas soviéticas. Mas a China manteve a população rural lá ao mesmo tempo, por muitas, muitas razões: eles temiam que uma migração rural-urbana criasse desemprego e, portanto, instabilidade nas cidades, então eles queriam que os camponeses permanecessem como agricultores no campo.

Ao mesmo tempo — em troca desse aperto muito draconiano do campo, da aquisição estatal de produtos agrícolas e da tributação — também investem muito na educação básica, na erradicação do analfabetismo e na medicina socializada: os famosos médicos descalços, e também o programa de vacinação em massa que erradica muitas doenças contagiosas no campo. A taxa de alfabetização do campo chinês está entre as mais altas do mundo em desenvolvimento durante o período Mao.

Por fornecerem serviços básicos e educação ao campo, criam um grande contingente de mão-de-obra rural excedente, alfabetizada e saudável. Isso lançou as bases para a decolagem capitalista privada nos anos 80.

O que é interessante sobre a mudança da China para a indústria orientada para a exportação nas décadas de 1980 e 1990 é que originalmente as pessoas não esperavam tanto. O fato de a China ser um grande exportador agora parece óbvio: você desloca as fábricas de empresas americanas, europeias ou japonesas para a China e encontra mão de obra barata e pode fabricar coisas. Mas nos anos 80 e 90, as pessoas não tinham muita confiança se isso funcionaria na China, porque muitas empresas fizeram offshoring no sul da Ásia, sudeste da Ásia e muitos outros lugares; o que encontraram foi muita mão de obra barata do campo, mas não necessariamente uma mão de obra disciplinada, saudável, alfabetizada e eficiente.

Levaria muito tempo para treinar esses trabalhadores sobre como a fábrica funciona e como ler as instruções, tudo sem que eles fiquem doentes. Em muitos países em desenvolvimento, se você estabelecer uma fábrica com muitos trabalhadores rurais, haverá surtos periódicos de tuberculose e outras doenças.

Mas quando a China muda para um modelo de crescimento orientado para a exportação – permitindo ou convidando o capital industrial estrangeiro a estabelecer fábricas nas áreas costeiras e absorver o trabalho excedente rural – as empresas logo descobrem que a mão de obra chinesa não é apenas abundante e barata, mas também mais saudável e mais alfabetizados do que o trabalho migrante rural em muitos outros países em desenvolvimento.

Após o período de desenvolvimento rural de Mao, no entanto, a política do filho único começa a reduzir a oferta de trabalho excedente rural. A população jovem no campo está diminuindo e, após a reforma de mercado na década de 1980, o investimento do governo em educação e saúde no campo parou de crescer; todos esses avanços alcançados no período Mao pareciam se reverter. Esta foi outra fase de desenvolvimento, mas a criação de mão-de-obra excedente rural saudável, alfabetizada no período Mao lançou as bases para a industrialização posterior orientada para a exportação baseada em mão de obra de baixo custo.

Daniel Denvir

Você escreve,

Como o estado maoísta dependia quase exclusivamente do excedente extraído do campo para o processo de acumulação primitivo e se recusava a depender de empréstimos externos, como muitos outros países socialistas e em desenvolvimento fizeram na década de 1970, o estado chinês estava muito menos sobrecarregado com passivos externos, enquanto muitos outros países em desenvolvimento foram vítimas do ditado de seus credores quando a crise da dívida internacional atingiu na década de 1980.

Como Isabella Weber mostra em seu livro recente, a China escapou por pouco de impor uma forma de terapia de choque que teria arruinado sua economia da mesma forma que a economia da Rússia pós-soviética foi arruinada. Quão importante foi a autossuficiência da China maoísta como condição necessária, se não suficiente, para a decolagem capitalista?

Ho-fung Hung

É interessante que você mencionou o livro de Weber. Ela fez um ótimo trabalho mostrando que a China escapou por pouco de uma espécie de política de ajuste estrutural auto-infligida de reforma de livre mercado. Na verdade, em todo o mundo em desenvolvimento, muitos estados, elites e acadêmicos também querem evitar esse tipo de política de ajuste estrutural de reforma de livre mercado.

Mas mesmo que se esquivem em termos de seu debate intelectual interno, eles têm que fazê-lo por causa da crise da dívida e do ditado do FMI e do Banco Mundial. Simplesmente porque seus governos estão tão endividados, eles não podem evitar tomar empréstimos do FMI, e então o FMI os força a adotar reformas de ajuste estrutural. Assim, uma parte do quebra-cabeça que Weber mostrou brilhantemente é que a China poderia evitar uma torturante reforma de ajuste estrutural auto-infligida.

A outra parte do quebra-cabeça é por que a China escapou da reforma de ajuste estrutural ditada pelo FMI. E, novamente, a resposta começa no período Mao. Mao recusou-se a tomar emprestado do mercado financeiro internacional para acelerar o crescimento; muitos países em desenvolvimento, incluindo países socialistas da Europa Oriental, tomaram esses empréstimos na década de 1970. Por causa do boom do petrodólar na década de 1970, a taxa de juros era muito baixa. Parecia tolice não pedir dinheiro emprestado a financistas internacionais, que foi o que o Brasil fez, o que muitos países africanos fizeram e o que o Sudeste Asiático fez. A Polônia e a Iugoslávia também tomaram muito emprestado dos mercados internacionais, porque emprestar a essa baixa taxa de juros parecia estimular o crescimento. Se a taxa de crescimento for superior à taxa de juros do empréstimo, você poderá pagar o empréstimo sem problemas e ainda embolsar os ganhos do crescimento.

Mas por todos os tipos de razões, Mao não tomou emprestado.

Uma razão é a ideologia maoísta de autoconfiança: precisamos nos auto-explorar para obter recursos para crescer, em vez de tomar emprestado de fora. Outra razão é que, depois que [Richard] Nixon visitou a China na década de 1970, muitos aliados dos EUA na região, principalmente o Japão, ficaram muito felizes em fornecer assistência econômica à China. Assim, a China não precisou tomar emprestado do mercado financeiro internacional como a Polônia e a Iugoslávia e muitos países em desenvolvimento fizeram.

Então, no início dos anos 80, sob [Ronald] Reagan, Paul Volcker elevou a taxa de juros do dólar americano para 20%. Muitos empréstimos que foram emprestados com taxas de juros moderadas ou mesmo muito baixas tinham taxas de juros ajustáveis ​​e variáveis, então quando a taxa de juros de mercado do dólar americano aumentava, as taxas de juros de todos esses empréstimos também aumentavam.

Como resultado, muitos países em desenvolvimento e países do Leste Europeu, como a Polônia, encontram-se em uma situação muito difícil quando suas taxas de juros disparam repentinamente. Essa foi a origem da crise da dívida. Muitos países em desenvolvimento e países socialistas da Europa Oriental estavam quase falidos e, em seguida, precisaram entrar em default. Eles precisavam contar com a ajuda do FMI, e o resto da história: o FMI ajudou a socorrê-los com a condição de que adotassem uma reforma radical do mercado.

A China evitou isso por causa dessa teimosia dos anos 1970, a decisão de Mao de não tomar emprestado do mercado internacional. Na década de 1980, a China escapou dessa crise da dívida e não precisou ouvir o FMI, por isso evitou um programa de ajuste estrutural imposto. Em vez disso, a China projetou a reforma do mercado de forma fragmentada, de tentativa e erro, e o Estado manteve seu domínio e a total autonomia do setor financeiro na China.

Este é outro fator que explica o boom da China: o rápido crescimento da China nas décadas de 1980 e 1990, enquanto os países do Leste Europeu e outros países em desenvolvimento estavam preocupados com a crise da dívida.

Daniel Denvir

Como discutimos, a China maoísta espremeu o campo para se industrializar, e o resultado foram essas enormes empresas estatais. Até que ponto as empresas estatais ajudaram a criar e impulsionar o boom da China? E, por outro lado, até que ponto sua ineficiência, carga de dívida e papel na criação de uma elite parasitária afiliada ao PCC sobrecarregaram esse boom?

Você escreve,

Alguns podem argumentar que, dado o peso do investimento em ativos fixos no PIB, realizado principalmente por estatais e governos locais, o boom da China é pelo menos tanto impulsionado pelo setor estatal quanto pelo setor privado de exportação. Mas a maior parte do investimento em ativos fixos na economia chinesa foi financiada por empréstimos de bancos estatais, e grande parte da liquidez do sistema bancário se origina de um processo de “esterilização” no qual exportadores privados entregam seus ganhos em divisas aos bancos estatais em troca de uma quantia equivalente de RMB emitida pelo Banco Popular da China, o banco central da China.

Se o capital do estado chinês veio predominantemente das exportações, por que as SOEs são importantes? Historicamente falando, que papel eles desempenharam? E como devemos pensar sobre a relação entre a ascensão da economia exportadora e as EEs criadas sob Mao?

Ho-fung Hung

As SOEs são importantes no sentido de que muitos projetos de infraestrutura, assim como indústrias pesadas como siderúrgicas, usinas de carvão, aeroportos e ferrovias de alta velocidade, foram construídos e mantidos por empresas estatais; a rede de telecomunicações também. É uma famosa comparação Índia-China que a Índia tem muito potencial de crescimento, mas a infraestrutura indiana é menos desenvolvida do que a chinesa.

Isso ocorre porque a China tem um sistema centralizado e um sistema de empresas estatais nos quais eles confiam há décadas, desde Mao até o período pós-Mao. Tanto os governos locais quanto as unidades do governo central, como o Ministério das Ferrovias, ajudaram a construir uma infraestrutura crucial – usinas de energia suficientes para gerar eletricidade suficiente, siderúrgicas suficientes para abastecer a economia. As empresas estatais são muito importantes em termos de fornecimento de infraestrutura e investimento nessas indústrias pesadas.

Por outro lado, é claro, levaram a divisões entre as elites partidárias. No Comitê Central ou Politburo do Partido Comunista, você pode identificar membros individuais dos altos escalões das elites por quais setores eles tomaram como seu território; eles trabalham em setores inteiros, como, por exemplo, o setor de energia, o setor de petróleo, o setor de minerais ou o setor de eletricidade, com um feudo de seus parentes e subordinados.

Essa divisão dos setores estatais entre as elites tornou-se uma estrutura corrupta e oligárquica. Essas empresas estatais não são financiadas diretamente pelos recursos fiscais do Estado; em grande parte, são financiados por empréstimos dos bancos estatais. E a China tem vínculos com o mercado em muitos setores, mas o PCC tem guardado zelosamente o setor financeiro para que os bancos estatais continuem seu domínio na economia. Isso porque o CPC vê esse fluxo de crédito como sua mais importante alavanca para direcionar a economia e manter o controle do CPC sobre o desenvolvimento econômico e a elite.

O setor de exportação está ligado a esse setor empresarial estatal, focado em indústrias pesadas e construção de infraestrutura. A China tem uma política de conta de capital fechada e sua moeda não é livremente conversível, portanto, se você é uma empresa de exportação principalmente privada ou estrangeira e ganha moeda estrangeira, não pode manter o dólar americano ou mantê-lo em uma conta offshore; você precisa entregá-lo ao Banco Central da China, que converte seus dólares americanos em um valor equivalente de uma moeda local, o yuan ou o renminbi. Então, você usa o yuan para pagar seus funcionários e fazer investimentos.

Trata-se de uma política de criação de renminbi ou yuan, apoiada na entrada de divisas, principalmente em dólar e via setor exportador. Grande parte dessa liquidez criada acaba sendo empréstimos bancários, porque se você é uma empresa, você entrega seu dólar americano, recebe yuan em troca e o salva em sua conta. E então o banco, por sua vez, usa esse dinheiro para criar empréstimos para outras empresas.

Como os bancos estatais foram dominados pelo CPC, é muito difícil para as empresas privadas obter financiamento dos bancos estatais. O banco estatal tem uma política discriminatória para ser mais branda ao emitir empréstimos a empresas estatais, governos locais ou unidades governamentais. Uma razão para isso é que, como essas empresas têm o apoio do governo, os bancos acham que não entrarão em default, enquanto uma empresa privada pode entrar em default – eles acham que é mais seguro emprestar para uma unidade do governo.

Então, o que aconteceu é que essa enorme expansão das reservas cambiais na China criou uma expansão proporcional da liquidez em moeda local, e essa expansão da liquidez se tornou empréstimos em moeda local. E então esses empréstimos se tornaram empréstimos de bancos estatais para governos locais e empresas estatais. Depois de obter os empréstimos, eles os usam principalmente para construção: expansão dos aeroportos e adição de linhas ao sistema de metrô, construção de novas linhas do sistema ferroviário e construção de mais siderúrgicas e usinas de carvão. Isso resultou em uma expansão excessiva de infraestrutura e indústrias pesadas.

A partir da década de 1990, o governo chinês começou a falar sobre essa questão do excesso de capacidade. No setor exportador privado, não se fala em excesso de capacidade, porque há uma demanda enorme na economia mundial para absorver bens de consumo criados pelo setor exportador chinês. Mas nas empresas estatais – indústrias pesadas e infraestruturas dominadas pelo governo local – havia muito excesso de capacidade, o que significa que você está construindo coisas que não serão lucrativas.

Por exemplo, depois de ter um aeroporto, você constrói um segundo aeroporto em uma cidade próxima com aproximadamente o mesmo tamanho e continua expandindo esse aeroporto. Muitas pessoas elogiaram o sistema ferroviário de alta velocidade da China, e há muitas coisas incríveis nele – mas mesmo assim, o fato é que eles pediram muito dinheiro emprestado. Eles continuam construindo novas linhas, algumas das quais são lucrativas.

Mas muitas linhas estão conectando cidades entre as quais poucas pessoas viajam, e se você cobrar preço de mercado pelas passagens, ninguém vai pagar. Essa capacidade excessiva cria os típicos problemas de superacumulação estudados na literatura marxista. Torna-se um problema porque as empresas e unidades governamentais tomaram emprestado para construir esse material, mas o resultado não é lucrativo, então eles têm problemas para pagar seus empréstimos.

O setor imobiliário também vem recebendo muita atenção ultimamente. O setor é privado, mas está relacionado ao Estado porque as empresas imobiliárias não podem obter terras sem a colaboração ativa do governo local. Os governos locais geram receita vendendo terrenos para esses empreendimentos imobiliários e, à medida que a valorização dos apartamentos produzidos continua subindo, os governos locais podem continuar aumentando sua receita vendendo terrenos cada vez mais caros para imóveis.

Como a máquina imobiliária está, na verdade, ligada à máquina de receita do governo local, aparece a mesma dinâmica: o banco estatal é muito brando ao emprestar dinheiro a essas unidades, e isso resulta na construção de muitos apartamentos que eles não podem vender, mas eles ainda precisa pagar o empréstimo.

Em algum momento, haverá um momento de avaliação de que eles precisam deixar o empréstimo em default ou encontrar algum outro meio de conseguir o dinheiro. Então, a China agora está prestes a explodir, por causa dessa crise da dívida interna.

Daniel Denvir

Um dos argumentos que você apresenta em seu livro é que não foi apenas a acumulação primitiva da era Mao que lançou as bases para o boom capitalista. Também foi capital do Japão e dos quatro tigres: Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura. Esses estados desenvolvimentistas foram bem-sucedidos precisamente porque operaram sob o guarda-chuva de segurança da era da Guerra Fria dos EUA e passaram a desempenhar um grande papel no financiamento da decolagem da China.

Você escreve: “O boom capitalista da China equivale a uma explosão desencadeada pela mistura dos legados maoístas e do capitalismo do Leste Asiático, cada um desenvolvido separadamente em lados opostos da Guerra Fria na Ásia”. Essa capital do leste asiático, por sua vez, tinha raízes ainda mais profundas em famílias empreendedoras costeiras que haviam partido da China da era Qing para fazer fortuna em postos coloniais europeus.

Como essa capital encontrou o caminho da China costeira da era Qing para os aliados americanos da Guerra Fria na Ásia e, finalmente, para o boom de exportação da China?

Ho-fung Hung

Sim, definitivamente – muitos historiadores apontaram a importância dessa diáspora chinesa. Na década de 1980, quando a China se abriu, tinha boa infraestrutura e uma força de trabalho saudável e alfabetizada do interior. Mas sem os empresários para absorvê-los e transformá-los em indústrias de exportação, as vantagens que a China teve no período Mao não seriam muito grandes.

O que aconteceu é que, nas décadas de 1980 e 1990, muitos chineses estrangeiros de Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul, Japão e outros lugares do Sudeste Asiático se mudaram para áreas costeiras da China para administrar indústrias orientadas para a exportação de sucesso. Esses pioneiros têm gerações de experiência em fabricação para os mercados dos EUA e da Europa. Eles sabem que tipo de árvore de Natal esses mercados gostam, que eletrônicos venderão e que tipo de roupas serão consideradas na moda.

Então a China pulou esse processo de aprendizado, porque eles têm essa diáspora chinesa e capital japonês e coreano. E não só têm esse dinheiro e capital, como também estão bem ligados ao mercado de consumo. Como a União Soviética e outros países do Leste Europeu não tinham a diáspora e o capital necessários para mobilizar seus recursos quando abriram, oligarcas e funcionários corruptos comandam os recursos, e o resto é história.

Mas quando a China se abriu, já havia muito capital da diáspora chinesa e capital japonês e coreano, que se acumularam por causa da geopolítica particular da Guerra Fria. Durante o auge da Guerra Fria, o leste da Ásia é considerado pelos EUA como um lugar muito vulnerável, que pode cair no comunismo. A Coreia do Sul está sempre sob ameaça da Coreia do Norte; Taiwan está ameaçada pela China comunista, assim como Hong Kong e até Cingapura.

Cingapura quase se tornou uma Cuba do Sudeste Asiático. Se você olhar para a história de Cingapura após a independência, o Partido de Ação Popular costumava ser um partido de esquerda, até que Lee Kuan Yew colaborou com a inteligência dos EUA e do Reino Unido para arquitetar um golpe e prender todos os ativistas de esquerda em seu próprio partido e transformar Cingapura em um estado social-democrata sem democracia. Singapura tornou-se então um bastião da Guerra Fria.

Mas todos esses lugares são muito vulneráveis, do ponto de vista dos EUA. E, como resultado, temos a Guerra da Coréia e a Guerra do Vietnã – as guerras quentes no auge da Guerra Fria.

Daniel Denvir

Além disso, o golpe na Indonésia.

Ho-fung Hung

Sim. Com o golpe na Indonésia, e também na Malásia, Tailândia e Filipinas, você vê guerrilheiros comunistas ativos no campo. Portanto, a política dos EUA em relação a essas ilhas capitalistas – de Hong Kong a Cingapura, Taiwan, Coréia do Sul e Japão – é muito generosa, em termos de abertura do mercado americano para seus produtos de consumo. Fabricantes na América Latina, África e outros lugares nunca receberam esse tipo de generosidade.

Essas condições geopolíticas criam um ambiente muito favorável para o crescimento dos capitalistas nessas ilhas capitalistas durante o período da Guerra Fria. Quando a China abriu, esses empresários estavam ansiosos e prontos para entrar na China para aproveitar a mão de obra chinesa e a infraestrutura chinesa.

Daniel Denvir

Antes do boom da China, a economia de exportação do Leste Asiático estava estruturada em uma formação de “gansos voadores”. Os quatro tigres produziam componentes que eram montados no Japão, que então fabricava e exportava os bens de maior valor agregado. Nesta formação de gansos voadores, imagina-se o Japão à frente da formação e os quatro tigres atrás.

O que aconteceu com as economias asiática e mundial quando aquela formação de gansos voadores se transformou em um chamado “círculo de pandas” sinocêntrico?

Ho-fung Hung

Ao longo dos anos 60, 70 e 80, havia uma imagem de gansos voadores, em que toda a formação voa para a frente, mas mantêm uma hierarquia estável entre o ganso líder e seus seguidores. O Japão era o ganso líder na época: sempre fabricou os produtos de maior valor agregado, os produtos mais sofisticados e lucrativos.

Uma vez que o Japão passou para produtos de valor agregado ainda maior, os produtos menos elegantes e menos lucrativos foram terceirizados para os outros gansos: Taiwan, Coréia do Sul e assim por diante. Toda a formação avança, mas a hierarquia do Japão, e depois os quatro tigres, e depois o Sudeste Asiático é mantida – ou seja, até os anos 1980 e 1990, quando a China entra em cena.

Porque a China é tão grande e engenhosa e tem um enorme mercado interno, atrai não apenas as indústrias de baixo valor agregado, mas também as indústrias de alto valor agregado. No final, a China absorve tudo, de eletrônicos a computadores e, notoriamente, o iPhone; também absorve produtos de baixo custo, como roupas, árvores de Natal e fantasias de Halloween.

Na década de 1990, há um artigo da Economist chamado “Um panda quebra a formação”. Vem com um desenho animado, no qual um panda quebra a formação dos gansos voadores. Porque a China é tão grande, ela absorve tudo, e então as redes de produção se tornam sinocêntricas. Japão, Coréia, Taiwan e Sudeste Asiático terceirizam seu capital e atividades manufatureiras para a China, e os capitalistas nesses lugares se concentram em finanças e especulação imobiliária. Algumas manufaturas de super alto valor agregado permanecem nesses lugares: uma indústria que recebe muita atenção é a fabricação de microchips de alta velocidade, especialmente em Taiwan.

Quando se trata dessas indústrias de alta tecnologia, existe um tipo de regime de controle de exportação, herdado da Guerra Fria, que a China acha muito difícil de contornar. Assim, a fabricação de componentes de alta tecnologia permanece nessas economias mais desenvolvidas. Mas outros produtos de alta tecnologia, de drones a iPhones e carros elétricos, já são terceirizados para a China, então a maior parte da rede de produção é centrada na China.

As economias satélites que cercam a China fornecem à China componentes, recursos naturais e financiamento. Às vezes, as empresas chinesas obtêm financiamento através dos bancos de Hong Kong, por exemplo. Claro, a recente guerra comercial está tentando transformar essa rede sinocêntrica, mas ainda não sabemos no que ela está se transformando.

Daniel Denvir

Uma premissa chave do seu livro é que,

O capitalismo em qualquer país em particular não é fundamentalmente diferente do capitalismo em qualquer outro lugar. O princípio subjacente e a dinâmica básica do capitalismo como sistema econômico são universais, embora o capitalismo esteja sempre enredado em estruturas sociopolíticas histórica e nacionalmente específicas que permitem a liberação de suas forças produtivas em alguns momentos e restringem sua reprodução em outros momentos.

Por que a China não representa um capitalismo de estado-partido único, como alguns argumentam? E quais são as apostas de seu argumento de que não há capitalismo chinês per se, apenas uma história do capitalismo na China?

Ho-fung Hung

Existem semelhanças e diferenças entre o capitalismo na China e o capitalismo em outros lugares. A maior semelhança é que a motivação do lucro e o imperativo da acumulação impulsionam o sistema na China de hoje, como nos Estados Unidos, Japão e muitos outros lugares.

O imperativo dominante da atividade econômica é definitivamente acumular capital, reinvestir e obter lucros. O capitalismo na China também é muito semelhante aos sistemas em outros lugares do mundo, no sentido de que a mercantilização dos meios de subsistência é muito completa. Se você mora na China, nos EUA, na Alemanha ou no Japão, precisa comprar a maioria de suas necessidades diárias no mercado.

Daniel Denvir

E você precisa vender seu trabalho para conseguir dinheiro para comprar essas coisas.

Ho-fung Hung

E, curiosamente, na China a mercantilização de algumas necessidades diárias é ainda maior do que na maioria dos países europeus. Se você observar os gastos privados no total dos custos nacionais de saúde na Europa, Japão e Coréia do Sul, verá que é muito socializado. Muitas despesas de saúde são cobertas pelos gastos do governo, geralmente mais de 60%; até 70 ou 80 por cento do gasto nacional total com saúde é coberto por gastos governamentais em alguns desses países, e o restante é coberto por gastos privados.

Mas duas grandes economias têm uma porcentagem muito baixa de gastos públicos em saúde: os Estados Unidos e a China têm sistemas de saúde que dependem mais de gastos privados do que de gastos do governo. Então, a esse respeito, a China é tão mercantilizada quanto os EUA. É muito capitalista e há muito lucro entre hospitais e prestadores de serviços de saúde; este sistema é mais comparável ao sistema de saúde dos EUA do que aos do Reino Unido, Europa ou Japão.

Em certo sentido, o sistema capitalista é muito universal: é o mesmo na China e em outros lugares. Mas, ao mesmo tempo, esse sistema capitalista precisa negociar com os diferentes sistemas políticos em que está inserido. No caso da China, é claro que é o partido-estado.

O imperativo do partido-estado comunista é permanecer no poder e manter e expandir seu poder. O partido comunista da China faz isso de maneira muito especializada, com a infiltração e venda de unidades econômicas. Assim, o sistema capitalista na China não existe em um vácuo, mas neste contexto político particular de estado-partido.

Isso não torna a China não capitalista. Ainda é um sistema capitalista, mas é um sistema capitalista em um ambiente bastante singular: isto é, o domínio do partido na China. No entanto, esse ambiente não é totalmente exclusivo. Formações semelhantes já estão surgindo em lugares como o Vietnã, mas a história é um pouco diferente lá. No geral, o próprio sistema capitalista tem universalidade, mas existe em ambientes políticos únicos com os quais deve negociar o tempo todo.

Colaboradores

Ho-fung Hung é Henry M. e Elizabeth P. Wiesenfeld Professor de Economia Política e presidente do departamento de sociologia da Universidade Johns Hopkins. Ele é o autor de Clash of Empires: From “Chimerica” to the “New Cold War” (2022) e City on the Edge: Hong Kong under Chinese Rule (2022).

Daniel Denvir é o autor de All-American Nativism e apresentador do The Dig na Jacobin Radio.

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