Uma entrevista com
Gary Gerstle
Um pedestre caminha pelas ruínas da Packard Motor Car Company em Detroit, Michigan, 2008. (Spencer Platt / Getty Images) |
Tradução / Um movimento político se torna uma ordem política quando suas premissas começam a parecer inevitáveis. Na década de 1950, os republicanos se curvaram à realidade política e apoiaram os programas de bem-estar social do New Deal; na década de 1990, os democratas abraçaram o ímpeto desregulamentador de Ronald Reagan.
Mas, como argumenta o historiador Gary Gerstle em seu novo livro, The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era (“Ascensão e queda da ordem neoliberal: A América e o mundo na era do livre mercado” em tradução livre, ainda sem edição no Brasil), nenhuma ordem política está imune ao poder desestabilizador das crises econômicas.
Para Gerstle, a estagflação da década de 1970 minou a ordem do New Deal, tal como a Grande Depressão ajudou a trazê-la à existência. E hoje, nas sombras da Grande Recessão de 2008-2009, com a inflação galopante e a pandemia ainda assolando o mundo, a ordem neoliberal parece capengar. O que, então, poderá vir a seguir?
Jen Pan fez esta e muitas outras perguntas a Gerstle em um episódio recente do The Jacobin Show, uma série do YouTube e podcast da Jacobin Magazine. Nesse bate papo, Pan e Gerstle discutem como Donald Trump e Bernie Sanders são sintomas de direita e de esquerda do colapso neoliberal, como a Nova Esquerda ajudou involuntariamente a ascensão do neoliberalismo e por que ele pensa que “o capitalismo [não] está no comando” neste momento tumultuado.
J.C. Pan
Você quer dizer algo muito específico quando fala sobre uma ordem política. O que distingue uma ordem política de, digamos, um movimento político ou uma ideologia política? E quais têm sido algumas das principais ordens políticas nos EUA?
Uma ordem política é uma constelação de instituições apoiadas por um partido político, envolvendo redes de decisores políticos e pessoas que procuram definir a boa vida na América. É uma estrutura política que permite a um movimento ganhar autoridade e poder durante um longo período de tempo.
Quando Steve Fraser e eu escrevemos sobre a ordem do New Deal, que surgiu nas décadas de 1930 e 1940 e teve sua derrocada nas décadas de 1960 e 1970, argumentamos que um teste fundamental para uma ordem política é se ela pode obrigar o partido antagonista, neste caso, o Partido Republicano, a jogar segundo as regras do Partido Democrata.
Em outras palavras, certas crenças centrais se tornam tão profundamente estabelecidas, tão hegemônicas, que definem o campo de jogo. E assim, quando um presidente republicano foi eleito pela primeira vez em vinte anos, em 1952, a grande questão era: ele desmantelaria o New Deal? Não o fez; ele preservou seus pilares fundamentais, incluindo os direitos laborais, a Segurança Social e um imposto de rendimentos progressivo que ultrapassou os 90 por cento.
O que é que obriga um partido da oposição a seguir as regras do partido dominante? A resposta é uma ordem política. Nem todos na América têm de falar essa língua – mas se quisermos ser eleitos, se quisermos ter influência política dentro da estrutura política dominante nos Estados Unidos, temos de falá-la.
A ordem neoliberal surgiu com o Partido Republicano nas décadas de 1970 e 1980. Se tornou uma ordem, na minha avaliação, quando Bill Clinton, na década de 1990, trouxe o Partido Democrata a bordo. É indiscutível que Clinton fez mais do que o próprio [Ronald] Reagan para facilitar os princípios da ordem neoliberal: o compromisso com a desregulamentação, a celebração da globalização e a ideia de que deveria haver mercados livres em todos os lados. Isto indica que o movimento político do neoliberalismo se estabeleceu como uma ordem, com a capacidade de definir o terreno da política americana.
Estamos vivendo o que defendo ser o fim da ordem neoliberal. Isso não significa que as ideias do neoliberalismo desaparecerão. Afinal, a Segurança Social ainda existe, mas a ordem do New Deal não. Haverá elementos do pensamento neoliberal que continuarão a caracterizar a vida americana durante um longo período de tempo.
Mas a ordem neoliberal já não tem a capacidade de obrigar a aquiescência, de impor o apoio, de definir os parâmetros da política americana. A Jacobin não teria a influência que tem se tivesse surgido em 1995 ou 1996. Bernie Sanders foi um ator completamente irrelevante na política americana na década de 1990 e na primeira década do século XXI, e, de repente, suas ideias importam muito. Trump é também um registo do declínio da ordem neoliberal. Era inimaginável tê-lo como presidente na década de 1990.
O fato de as vozes outrora relegadas estritamente à periferia serem agora consideradas dominantes é um sinal de que a autoridade que uma ordem política teve outrora está a está desintegrando.
J.C. Pan
Quero insistir nesta questão de passar da periferia para o centro, porque isso também faz parte da história do neoliberalismo. Quais foram as condições políticas e econômicas que permitiram que as ideias de pessoas como Milton Friedman passassem da periferia para o centro?
Gary Gerstle
Mas, como argumenta o historiador Gary Gerstle em seu novo livro, The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era (“Ascensão e queda da ordem neoliberal: A América e o mundo na era do livre mercado” em tradução livre, ainda sem edição no Brasil), nenhuma ordem política está imune ao poder desestabilizador das crises econômicas.
Para Gerstle, a estagflação da década de 1970 minou a ordem do New Deal, tal como a Grande Depressão ajudou a trazê-la à existência. E hoje, nas sombras da Grande Recessão de 2008-2009, com a inflação galopante e a pandemia ainda assolando o mundo, a ordem neoliberal parece capengar. O que, então, poderá vir a seguir?
Jen Pan fez esta e muitas outras perguntas a Gerstle em um episódio recente do The Jacobin Show, uma série do YouTube e podcast da Jacobin Magazine. Nesse bate papo, Pan e Gerstle discutem como Donald Trump e Bernie Sanders são sintomas de direita e de esquerda do colapso neoliberal, como a Nova Esquerda ajudou involuntariamente a ascensão do neoliberalismo e por que ele pensa que “o capitalismo [não] está no comando” neste momento tumultuado.
J.C. Pan
Você quer dizer algo muito específico quando fala sobre uma ordem política. O que distingue uma ordem política de, digamos, um movimento político ou uma ideologia política? E quais têm sido algumas das principais ordens políticas nos EUA?
Gary Gerstle
Uma ordem política é uma constelação de instituições apoiadas por um partido político, envolvendo redes de decisores políticos e pessoas que procuram definir a boa vida na América. É uma estrutura política que permite a um movimento ganhar autoridade e poder durante um longo período de tempo.
Quando Steve Fraser e eu escrevemos sobre a ordem do New Deal, que surgiu nas décadas de 1930 e 1940 e teve sua derrocada nas décadas de 1960 e 1970, argumentamos que um teste fundamental para uma ordem política é se ela pode obrigar o partido antagonista, neste caso, o Partido Republicano, a jogar segundo as regras do Partido Democrata.
Em outras palavras, certas crenças centrais se tornam tão profundamente estabelecidas, tão hegemônicas, que definem o campo de jogo. E assim, quando um presidente republicano foi eleito pela primeira vez em vinte anos, em 1952, a grande questão era: ele desmantelaria o New Deal? Não o fez; ele preservou seus pilares fundamentais, incluindo os direitos laborais, a Segurança Social e um imposto de rendimentos progressivo que ultrapassou os 90 por cento.
O que é que obriga um partido da oposição a seguir as regras do partido dominante? A resposta é uma ordem política. Nem todos na América têm de falar essa língua – mas se quisermos ser eleitos, se quisermos ter influência política dentro da estrutura política dominante nos Estados Unidos, temos de falá-la.
A ordem neoliberal surgiu com o Partido Republicano nas décadas de 1970 e 1980. Se tornou uma ordem, na minha avaliação, quando Bill Clinton, na década de 1990, trouxe o Partido Democrata a bordo. É indiscutível que Clinton fez mais do que o próprio [Ronald] Reagan para facilitar os princípios da ordem neoliberal: o compromisso com a desregulamentação, a celebração da globalização e a ideia de que deveria haver mercados livres em todos os lados. Isto indica que o movimento político do neoliberalismo se estabeleceu como uma ordem, com a capacidade de definir o terreno da política americana.
Estamos vivendo o que defendo ser o fim da ordem neoliberal. Isso não significa que as ideias do neoliberalismo desaparecerão. Afinal, a Segurança Social ainda existe, mas a ordem do New Deal não. Haverá elementos do pensamento neoliberal que continuarão a caracterizar a vida americana durante um longo período de tempo.
Mas a ordem neoliberal já não tem a capacidade de obrigar a aquiescência, de impor o apoio, de definir os parâmetros da política americana. A Jacobin não teria a influência que tem se tivesse surgido em 1995 ou 1996. Bernie Sanders foi um ator completamente irrelevante na política americana na década de 1990 e na primeira década do século XXI, e, de repente, suas ideias importam muito. Trump é também um registo do declínio da ordem neoliberal. Era inimaginável tê-lo como presidente na década de 1990.
O fato de as vozes outrora relegadas estritamente à periferia serem agora consideradas dominantes é um sinal de que a autoridade que uma ordem política teve outrora está a está desintegrando.
J.C. Pan
Quero insistir nesta questão de passar da periferia para o centro, porque isso também faz parte da história do neoliberalismo. Quais foram as condições políticas e econômicas que permitiram que as ideias de pessoas como Milton Friedman passassem da periferia para o centro?
Gary Gerstle
Sou fascinado por aqueles momentos em que ideias consideradas relegadas à periferia se libertam para sempre e subitamente se tornam muito importantes no discurso político dominante. Na política americana dos séculos XX e XXI, essas ideias geralmente escapam da periferia e entram na corrente dominante devido a uma grande crise econômica.
Se voltarmos à década de 1930, foi a Grande Depressão que permitiu aos pensadores e aos políticos do New Deal se tornarem dominantes. A recessão da década de 1970 não foi tão extrema como a Grande Depressão, mas o sofrimento econômico foi real e intenso; um mundo que até então funcionava bastante bem dava sinais, em termos econômicos, de se desintegrar.
Situo as origens das novas ordens econômicas nestes momentos de crise econômica.
O conjunto de ferramentas keynesianas que tanto fez para gerir o capitalismo – para mantê-lo em funcionamento e levar em consideração o bem público – já não funcionava. Algo que não deveria acontecer aconteceu: “estagflação”. (Não se supunha que a inflação subisse ao mesmo tempo que o desemprego aumentava; supunha-se que funcionavam em uma proporção inversa entre si.) Uma crise que não tinha solução fácil envolveu o mundo industrializado. Foi este momento de crise econômica que permitiu que ideias que tinham sido bem articuladas, mas que ainda eram marginais, ganhassem voz.
A crise da ordem neoliberal surgiu na sequência da Grande Recessão de 2008-2009, e isto também permitiu que ideias que estavam na periferia entrassem na corrente dominante de uma forma muito profunda. Situo as origens das novas ordens econômicas nestes momentos de crise econômica.
J.C. Pan
Você ressalta que o neoliberalismo não é apenas um novo tipo de conservadorismo. Na verdade, argumenta que as ideias da Nova Esquerda e até mesmo de figuras anti-establishment como Ralph Nader ajudaram a legitimar a ordem neoliberal. Como é que os valores que agora associamos às chamadas atitudes progressistas – cosmopolitismo, multiculturalismo e libertação pessoal – se tornaram tão centrais para a ordem neoliberal?
Gary Gerstle
Este é um argumento controverso; Enfrentei fortes críticas sobre isso e espero receber mais. Digo isto como alguém que foi membro da Nova Esquerda no início dos anos 1970.
Não vejo o neoliberalismo inteiramente como um esforço das elites para acorrentar as massas e minar seus direitos democráticos. Este é certamente um elemento do neoliberalismo – privilegiar a propriedade, especialmente o capital, acima de todas as outras considerações. Mas, na minha opinião, se quisermos compreender a popularidade destas ideias nos Estados Unidos, temos também de ver como as ideias neoliberais foram capazes de se ligar às ideias liberais clássicas do século XVIII e início do século XIX, ideias de liberdade e emancipação.
Esses liberais clássicos acreditavam seriamente num tipo de liberdade que achavam não estar disponível na época. Viram um mundo oprimido por monarquias, aristocracias e elites, e as pessoas comuns não tinham chance. Eles transmitiram uma mensagem de emancipação: derrubar aristocracias e monarquias, libertar das restrições os talentos individuais e permitir que as pessoas trabalhassem arduamente e fossem recompensadas por isso.
Esta não é uma concepção errônea de liberdade; é uma noção profundamente atraente sobre seu significado. E está profundamente enraizado no pensamento e na mitologia da vida americana, associada à Revolução Americana no século XVIII, que fez parte deste movimento para derrubar a aristocracia e a monarquia.
Este sonho do liberalismo clássico se revelou muito eficaz na libertação das forças do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa. No final do século XIX e início do século XX, novas vozes começaram a aparecer, se autodenominando socialistas e comunistas, dizendo: “Ei, espere um minuto, a liberdade que o liberalismo clássico oferece é uma liberdade falsa; é simplesmente permitir que o capitalismo se liberte e privilegie as elites capitalistas.” Os socialistas e os comunistas assumiram a responsabilidade de redefinir a liberdade de uma forma benéfica aos trabalhadores e não às elites, tornando-se assim alguns dos movimentos mais poderosos e populares do século XX.
Stewart Brand falando em 2010. (Wikimedia Commons) |
Mas na década de 1960, a opressão das pessoas comuns era vista não apenas como obra das elites capitalistas, mas como obra do governo. Os Estados se ornaram demasiado fortes e poderosos, como na União Soviética. No centro da ideologia da Nova Esquerda estava a noção de que “o sistema” – uma aliança de empresas privadas e reguladores estatais – estava privando as pessoas de sua liberdade.
Aos olhos de muitos Novos Esquerdistas, até as agências do New Deal criadas para regular o capital tinham sido capturadas por interesses privados. Já não regulamentavam o petróleo, o aço ou outras empresas de acordo com o interesse público; os reguladores serviam os interesses das empresas e do capital. Portanto, o que emergiu como parte da Nova Esquerda foi um anti-estatismo e uma centralidade do indivíduo e de sua consciência sobre todas as grandes estruturas, públicas e privadas, que poderiam restringir indevidamente a sua liberdade.
Depois de entrar nessa linha de pensamento, você começa a ver como poderia haver uma intersecção entre algumas ideias da Nova Esquerda e dos neoliberais. Isso não quer dizer que eles se fundiram, e não estou argumentando que a Nova Esquerda se vendeu. Não é uma discussão sobre pessoas que fingem ser uma coisa e intimamente são outra. É mais uma história de como as críticas às estruturas estabelecidas da esquerda surgiram de formas que as levaram a conversar com pessoas do outro lado do espectro político.
Uma das formas concretas em que isso se manifestou foi na revolução da informática. Era o sonho de Apple, Steve Jobs e Stewart Brand – que era um hippie e escreveu uma das bíblias do domínio hippie, o Whole Earth Catalog (“Catálogo da Terra inteira” em tradução livre) – libertar o indivíduo de todas as estruturas de opressão. É assim que a Nova Esquerda começa a contribuir para o desenvolvimento e triunfo final do pensamento neoliberal.
J.C. Pan
Os anos Clinton atingem esta tensão na forma como as pessoas à esquerda podem defender noções de liberdade pessoal ao mesmo tempo que são culturalmente distintas dos conservadores. O que aconteceu nesse período, que consolidou a ordem neoliberal?
Gary Gerstle
Parte disso foi a revolução da informática e o tecno-utopismo que a envolveu. Seriam gerados tantos dados – tanto conhecimento sobre os mercados estaria disponível instantaneamente em todo o mundo ao pressionar uma tecla – que o que antes exigia a intervenção do governo no interesse público já não precisava dela.
Isto dá forma ao que considero as peças legislativas mais extraordinárias aprovadas pelos Democratas no século XX: a Lei das Telecomunicações de 1996, que basicamente permite que a revolução da Internet seja livre de qualquer regulamentação pública séria.
Os Estados Unidos têm uma rica tradição de regulação pública dos meios de comunicação, incluindo telefone, rádio e televisão. Como a informação era considerada tão vital para uma democracia, as instituições que forneciam este sistema infra-estrutural tinham de ser regulamentadas de alguma forma.
Bill Clinton toca o saxofone que lhe foi dado de presente pelo presidente russo Boris Yeltsin em um jantar privado na Rússia, 13 de janeiro de 1994. (Wikimedia Commons) |
Faz parte da herança do New Deal de Franklin Roosevelt.
Havia também algo chamado Doutrina de Justiça, que foi implementado no final da década de 1940; dizia que se a televisão ou a rádio divulgassem uma visão política controversa, teriam de dar tempo igual ao outro lado. Reagan se livrou dela na década de 1980 e Clinton e a sua administração não fizeram nenhum esforço para restaurá-la.
Quando chega ao ponto de precisar redigir um projeto de lei que responda ao desafio desta revolução tecnológica, abandonaram a herança da regulação dos meios de comunicação social que tinha sido tão central para o Partido Democrata durante a maior parte do século anterior. Parte disso se deve ao seu tecnoutopismo.
O outro fator é a queda do comunismo e da União Soviética, um colapso espectacular que ninguém esperava. Isso ocasionou dois efeitos principais. Primeiro, abriu o mundo inteiro à penetração capitalista numa extensão que não existia desde antes da Primeira Guerra Mundial.
De repente, todos estes mercados em países que tinham estado fora dos limites do desenvolvimento capitalista se tornaram um alvo fácil para a expansão do capitalismo. Isto alimentou um sentimento de arrogância pelo fato de o Ocidente ter vencido – de que o capitalismo liberal não tinha nenhum rival sério no mundo, de que o seu maior antagonista fora derrotado.
Para a esquerda, instituiu uma crise na análise marxista, porque o esforço mais ambicioso para estabelecer o socialismo falhou de forma espetacular. Não sabendo como reorganizar a economia numa base socialista, as pessoas começaram a definir o seu esquerdismo em termos alternativos. Os anos 90 se tornaram uma época de rico desenvolvimento do pensamento cosmopolita.
Um dos pontos que defendo no livro é que este pensamento cosmopolita é algo com que um mundo globalizado e neoliberal se sente muito confortável. Isto não quer dizer que as pessoas que procuravam a libertação na esquerda fossem elas próprias neoliberais, mas esta consonância, no entanto, promoveu a legitimidade das ideias neoliberais, que tinham elas próprias uma componente cosmopolita.
J.C. Pan
Quando começou o fim do neoliberalismo e quais são os fatores que provocaram este declínio?
Gary Gerstle
Sempre há fissuras na ordem política. As ordens políticas são formações complexas. Eles reúnem instituições e círculos eleitorais que, em algumas questões-chave, concordam e em outras questões não. Portanto, sempre há pontos de tensão e onde pode haver divergências.
Penso que George Bush preparou o cenário para a crise do neoliberalismo de duas maneiras. Ele seguiu uma política de habitação barata, que em sua mente pretendia aumentar a propriedade de casas para minorias nos Estados Unidos. Como ele não estava disposto a empenhar dinheiro real para isso – o que só pode ser feito através da extensão de dívidas e hipotecas a pessoas a quem anteriormente tinham sido negadas hipotecas pelos bancos – isso as levou ao fracasso. Mais uma vez, isto pode acontecer devido ao utopismo que rodeia a revolução tecnológica.
A ordem neoliberal obrigou todos os atores políticos a respeitar um determinado conjunto de crenças e regras, o que, claramente, não é o caso hoje.
Bush também tentou reconstruir o Iraque numa base neoliberal. Ele descartou os planos que os Estados Unidos tinham usado para reconstruir a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial e basicamente entregou o trabalho de reconstrução a empresas privadas, a maioria delas sediadas nos EUA. Através de seus agentes no Iraque, ele também desmantelou toda a infra-estrutura da economia iraquiana, implementando um tratamento de choque que os neoliberais acreditavam ser a única forma de lidar com Estados inchados que não tinham tido sucesso no desenvolvimento econômico. Esta experiência neoliberal foi brutal para os iraquianos; levou à guerra civil no Iraque e fez explodir a popularidade de Bush.
A combinação da política de Bush para o Iraque e da crise imobiliária que conduziu à Grande Recessão persuadiu muitos americanos a pensar mais seriamente sobre o tipo de economia política com que se tinham comprometido através de sua liderança política.
Os protestos desenvolveram-se lentamente. Mas ao longo da década de 2010, foram bastante extraordinários, começando com o Tea Party à Direita e o Occupy Wall Street e depois o Black Lives Matter à Esquerda. Houve o ressurgimento do socialismo na esquerda e um poderoso protecionismo etno-nacionalista na forma de Donald Trump à direita. As eleições de 2016 foram o choque. As duas pessoas mais poderosas e importantes naquelas eleições, Donald Trump e Bernie Sanders, eram inimagináveis como figuras políticas significativas no apogeu do neoliberalismo. Foi nessa eleição que decidi escrever o livro.
A ordem neoliberal obrigou todos os atores políticos a respeitar um determinado conjunto de crenças e regras, o que, claramente, não é o caso hoje. Isso não significa que o socialismo esteja chegando, mas que a ortodoxia e o poder do pensamento neoliberal sofreram.
J.C. Pan
A ordem do New Deal foi definida por uma espécie de compromisso entre capital e trabalho, enquanto a ordem neoliberal representou um triunfo do capital sobre o trabalho que resultou numa enorme transferência ascendente de riqueza. É lógico que os capitalistas estariam muito empenhados na preservação da ordem neoliberal, muito mais do que na ordem do New Deal. Você vê sinais de formação de outras ordens políticas? Ou você acha que o capital pode reviver a ordem neoliberal?
Gary Gerstle
Os capitalistas farão tudo o que puderem para manter suas riquezas e privilégios? Absolutamente. Mas não está claro se serão capazes de fazer isso. Parte da lição da ordem do New Deal é que existem circunstâncias que levarão o capital a se comprometer de formas que poderão não desejar, mas que, no entanto, se sentem obrigados a fazer, como sendo a melhor das alternativas que enfrentam. Uma questão importante agora é: o que causará medo nos corações do capital? O que os levará a fazer concessões?
Um fator importante é o ressurgimento do movimento trabalhista. Estamos vendo sinais disso, mas não ao ponto de prevalecer. No entanto, a revolta trabalhista da década de 1930 teve um início muito modesto.
Uma questão importante agora é: o que causará medo nos corações do capital? O que os levará a fazer concessões?
Acabei de resenhar o novo livro de Thomas Piketty, que possui um argumento otimista em favor da igualdade e da possibilidade de alcançá-la no século XXI. Penso que é demasiado otimista porque ignora o que delineou tão brilhantemente em seu primeiro livro, O Capital no Século XXI: que a Primeira e a Segunda Guerra Mundial causaram uma catástrofe que o capital não conseguiu controlar. Desse desastre resultou, segundo ele, um avanço notável para a política social-democrata e para a política liberal de esquerda, que foram dominantes entre as décadas de 1940 e 1970.
Obviamente, não queremos que uma catástrofe da escala da Primeira Guerra Mundial ou da Segunda Guerra Mundial envolva novamente nossas vidas – embora a crise climática e a pandemia nos tenham obrigado a pensar que tais catástrofes não são impossíveis – mas as crises econômicas podem se desenvolver ao ponto em que os capitalistas não consigam controlar o resultado.
Não vejo este momento como uma ocasião em que o capitalismo esteja no comando, gerindo as coisas em seu interesse. O resultado da nossa crise atual poderá ser o ressurgimento de uma ordem neoliberal, privilegiando profundamente o capital, até ao final da década de 2020? Sim, isso é uma possibilidade. Mas é apenas um dos vários cenários possíveis. Penso que estamos num momento de inflexão, estamos num momento de transição e não sabemos realmente qual será a forma do mundo daqui cinco ou dez anos.
Não só não deveríamos presumir que o capital vai triunfar, mas também deveríamos perceber que este é um momento em que aqueles que têm outras ideias para reorganizar a economia e a política, devem intensificar a lutar por aquilo em que acreditam.
Colaboradores
Gary Gerstle é professor de história americana na Universidade de Cambridge e colunista do Guardian. Seu livro mais recente é The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era.
J.C Pan é co-apresentador do The Jacobin Show e escreveu para a New Republic, Dissent, Nation, e outras publicações.
J.C Pan é co-apresentador do The Jacobin Show e escreveu para a New Republic, Dissent, Nation, e outras publicações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário