19 de julho de 2022

Não, Karl Marx não era eurocêntrico

Os críticos de Marx o acusaram de impor um modelo europeu de desenvolvimento histórico ao resto do mundo. Mas o verdadeiro Marx rejeitou o pensamento eurocêntrico e desenvolveu uma visão sofisticada da história mundial em toda a sua diversidade e complexidade.

Kevin B. Anderson


A lápide de Karl Marx no norte de Londres, Inglaterra. (Pedro Cambra/Flickr)

Tradução / Apesar de um renascimento do interesse em sua crítica ao capitalismo, os ataques a Karl Marx continuam vindo de múltiplas direções. Ainda que diversos, compartilham a implicação de que o marxismo está morto, ultrapassado, superado por teorias e eventos mais recentes. Mas se o marxismo está de fato morto, por que seus críticos sentem a necessidade de insistir nisso, de “provar” seu ponto repetidamente?

A verdadeira resposta é óbvia. O marxismo nunca morreu completamente, embora tenha declinado, sido declarado morto e depois revivido várias vezes nos últimos cento e cinquenta anos. Daí a necessidade que os críticos de Marx sentem em continuar tentando enterrá-lo, até agora sem sucesso.

A crítica de Edward Said

Aperspectiva liberal padrão sustenta que o socialismo marxista leva ao totalitarismo e, eventualmente, ao colapso econômico. Em suma, “experimentos” marxistas – vide a União Soviética – são perigosos e devemos nos ater à alternativa mais viável, o capitalismo liberal. No entanto, como consequência da Grande Recessão e do crescimento de fortes tendências fascistas na era Donald Trump, dúvidas crescentes sobre o futuro do capitalismo e da democracia liberal enfraqueceram os fundamentos de tais argumentos.

Uma acusação mais amplamente divulgada, dirigida a Marx, especialmente entre intelectuais e acadêmicos progressistas, centrou-se na noção de que Marx era um eurocentrista – um pensador do século XIX fora de sintonia com as sensibilidades multirraciais e anticoloniais do século XXI. Essa linha de crítica ganhou ampla aceitação após a repercussão da obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente de Edward Said (1978).

Said encontrou duas grandes falhas em Marx. Primeiro, ele teria aderido a uma grande narrativa ou série unilinear de estágios de desenvolvimento social e econômico. De acordo com essa perspectiva, Marx utilizou esse modelo unilinear, baseado na história da Europa Ocidental, sem justificativa real para analisar e medir sociedades não capitalistas fora daquela região. Em segundo lugar, Said acusou Marx de etnocentrismo, e até mesmo de racismo, em seus retratos de sociedades não-ocidentais.

Como parte da primeira crítica, Said escreveu que, para Marx, o imperialismo europeu era parte da marcha sempre em frente da “necessidade histórica”, que resultaria em progresso futuro para toda a humanidade. Como Said observou, os escritos de Marx de 1853 sobre a Índia no New York Tribune mostram um surpreendente grau de apoio ao colonialismo britânico.

Marx descreveu os britânicos como sendo “superiores e, por conseguinte, inacessíveis à civilização indiana”, enquanto retratava a Índia como uma sociedade estática incapaz, até mesmo de resistir ao imperialismo. Said assim caracterizava a posição de Marx: “Mesmo destruindo a Ásia, a Grã-Bretanha estava tornando possível uma verdadeira revolução social”.

Talvez o exemplo mais flagrante do tipo de problema que Said está destacando ocorra não nos escritos de 1853 sobre a Índia, mas cinco anos antes, no Manifesto Comunista (1848). Aqui, Marx e Engels pareciam elogiar a penetração imperialista na China:

A burguesia, pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, atrai todos, até mesmo as nações mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos de suas mercadorias são a artilharia pesada com a qual derruba todas as muralhas chinesas, força-os a abdicar de seu ódio intensamente obstinado contra estrangeiros. Ela obriga todas as nações, sob pena de extinção, a adotar o modo de produção burguês; a introduzir no seu meio o que chama de civilização, isto é, a tornarem-se eles próprios burgueses.

Aqui, no Manifesto, Marx não apenas parecia celebrar o “progresso” trazido pelo colonialismo, mas também diminuía os chineses chamando-os de “bárbaros”. Esse tipo de linguagem se conecta à segunda crítica de Said, a acusação de etnocentrismo.

Said o colocava na companhia de pensadores da Europa Ocidental, “abrangendo de [Ernest] Renan a Marx”, que haviam desenvolvido um “sistema de verdades, no sentido Nietzschiano da palavra”:

É, portanto, correto que todo europeu, em suas afirmações sobre o Oriente, fosse consequentemente um racista, um imperialista e quase totalmente etnocêntrico.

A trajetória de Marx

Esses argumentos são válidos? Marx era realmente um eurocentrista neste duplo sentido do termo: tanto um teórico que construiu uma grande narrativa abstrata que subsumia a história e a cultura do mundo à da Europa Ocidental, quanto um etnocentrista com uma atitude condescendente (ou pior) em relação às sociedades fora da Europa Ocidental?

A resposta não é nada simples. Em contraste com alguns marxistas, acho que, embora essas afirmações sejam exageradas, precisamos reconhecer sua validade parcial, pelo menos quando se trata dos primeiros escritos de Marx sobre sociedades não ocidentais, de 1848 a 1853. A noção de um Marx eurocêntrico não se sustenta quando se examina a totalidade de seus escritos, no período de 1841 a 1883, pois ele foi, acima de tudo, um pensador que continuou a retrabalhar e desenvolver seu aparato conceitual.

Em primeiro lugar, o que hoje chamamos de eurocentrismo e etnocentrismo dificilmente são as únicas nuances de Marx, mesmo em seus primeiros escritos sobre a Índia e a China. Por exemplo, os escritos problemáticos de 1853 sobre a Índia também continham passagens como esta:

Os indianos não colherão os frutos dos novos elementos da sociedade espalhados entre eles pela burguesia britânica, até que na própria Grã-Bretanha as classes agora dominantes tenham sido suplantadas pelo proletariado industrial, ou até que os próprios hindus tenham se tornado fortes o suficiente para se livrarem do jugo inglês por completo. De qualquer forma, podemos com certeza esperar por ver, em um período mais ou menos remoto, a regeneração daquela grande e interessante nação, cujos gentis nativos... surpreenderam os oficiais britânicos por sua bravura, cujo país tem sido a fonte de nossas línguas, de nossas religiões.

Aqui, Marx não apenas expressou grande apreço pela cultura e civilização indianas, mas também se destacou como um raro defensor europeu da independência indiana neste período.

Em segundo lugar, as perspectivas de Marx sobre a Índia e a China sofreram uma mudança considerável em 1856-58, em resposta à resistência massiva que essas sociedades estavam apresentando contra o imperialismo britânico. Em artigos para o Tribune que raramente são discutidos, Marx se concentrou não no “atraso” asiático, mas na brutalidade colonial da Segunda Guerra do Ópio da Grã-Bretanha contra a China – uma visão expressa aqui em um artigo para esse mesmo jornal, de 1856:

Os cidadãos inofensivos e comerciantes pacíficos de Cantão foram massacrados, suas habitações destruídas, o discurso de humanidade violado... os chineses têm pelo menos noventa e nove ferimentos sobre os quais reclamar, contra apenas um por parte dos ingleses.

Em resposta à Revolta dos Cipaios na Índia, que eclodiu em 1857, Marx novamente apoiou os rebeldes indianos contra os britânicos no Tribune. Em uma carta de 1858 a Engels, ele também os chamou de “nossos melhores aliados” em um momento em que a classe trabalhadora europeia entrou em um período de quietude.

Terceiro, a noção de Marx de estágios de desenvolvimento histórico também passou por uma mudança importante no final da década de 1850. Em A Ideologia Alemã de 1846, Engels e Marx apresentaram uma teoria dos estágios socioeconômicos, o que mais tarde chamaram de modos de produção: sociedades de clãs sem Estado, as sociedades escravistas da Grécia e de Roma e o feudalismo servil da Europa Ocidental medieval, seguido pelo capitalismo com seu regime de trabalho assalariado formalmente livre e, finalmente, projetando no futuro, um comunismo moderno baseado no “trabalho livre e associado”. Em suma, estes são os modos de produção divididos em “primitivos” – escravos – feudais – burgueses – socialistas.

Em 1857-58, no entanto, escrevendo os Grundrisse, Marx expandiu essa estrutura, introduzindo ao lado dos sistemas greco-romano e feudal da Europa um modo de produção asiático (MPA), que ele conectou especialmente aos impérios agrários pré-coloniais da Índia, China, e Oriente Médio. Marx também mencionou essa estrutura expandida em O Capital, onde escreveu sobre os “modos de produção burgueses asiáticos, antigos, feudais e modernos”.

Podemos ver a MPA como uma contrapartida das sociedades greco-romana e feudal. Nunca desenvolvido em detalhes, o conceito é importante principalmente como uma indicação de que Marx não estava tentando abarcar toda a história humana na trajetória escravidão-feudalismo-capitalismo. Infelizmente, a maioria dos seguidores de Marx – especialmente na União Soviética – insistiu em colocar, na mesma caixa do feudalismo, as sociedades de classe pré-capitalistas fora da Europa Ocidental, incluindo impérios agrários bastante centralizados e com importantes centros urbanos.

Uma teoria, não uma chave mestra.

Esses tipos de questões haviam se tornado centrais para os últimos escritos de Marx, de 1877-82, um período em que ele leu obras de antropologia e história social em uma ampla variedade de sociedades agrárias e pastoris fora da Europa Ocidental, da Índia à América Latina e da Rússia para o norte da África. A essa altura, ele havia aprendido russo para sondar a estrutura social daquele país, de onde, para sua grande surpresa, veio a primeira tradução completa de O Capital, em 1872.

Grande parte das notas de pesquisa de Marx desse período, principalmente sobre a Índia, foram publicadas, e outros textos estão sendo preparados para isso. Marx também escreveu duas cartas conceitualmente significativas sobre uma dessas sociedades agrárias, a Rússia.

Naquela época, a Rússia ainda era marcada por uma estrutura social predominantemente agrária baseada, no nível local, em comunas aldeãs. Essas comunas, embora sob o controle de uma monarquia despótica enraizada nas classes latifundiárias, possuíam um grau de propriedade coletiva e arranjos de trabalho que eram inconsistentes com os arranjos sociais mais individualizados do feudalismo da Europa Ocidental.

Marx levantou duas questões significativas nessas cartas. Primeiro, a Rússia estava destinada a seguir o caminho de desenvolvimento da Europa Ocidental? Em segundo lugar, essas comunas aldeãs tinham algum potencial revolucionário e anticapitalista, ou seus habitantes teriam primeiro que ser desapropriados de suas terras para formar um proletariado industrial composto de trabalhadores assalariados em um processo que Marx chamou de “acumulação primitiva de capital”?

Muitos estudiosos também concluíram que ele via essas ruminações sobre a Rússia como conectadas a outras sociedades agrárias que ele estava estudando em seus últimos anos no Sul Global. Em uma carta de 1877, dirigida a intelectuais radicais russos, Marx negou veementemente que tivesse criado uma teoria geral e trans-histórica do desenvolvimento social:

Assim, eventos de notável semelhança, ocorridos em diferentes contextos históricos, levaram a resultados totalmente díspares. Estudando cada um desses desenvolvimentos separadamente, pode-se facilmente descobrir a chave desse fenômeno, mas isso nunca será alcançado com a chave mestra de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica.

Aqui, Marx parecia negar, muito antes das críticas que lhe foram feitas, a acusação que ele criara uma “grande narrativa” eurocêntrica.

A via Russa

Ocontexto imediato dessas discussões era a questão de saber, da mesma forma que os próprios intelectuais russos se perguntavam, se sua sociedade estava “inevitavelmente” destinada a seguir o caminho da Europa Ocidental se quisesse progredir. Sobre este ponto, Marx escreve em uma carta de 1881 à revolucionária russa Vera Zasulich:

Ao analisar a gênese da produção capitalista, digo: “No centro do sistema capitalista, portanto, está a completa separação do produtor dos meios de produção… a base de todo esse desenvolvimento é a expropriação dos lavradores. Até agora, isso foi realizado de maneira radical apenas na Inglaterra… mas todos os outros países da Europa Ocidental estão passando pelo mesmo desenvolvimento” (O Capital, ed. francesa, p. 315). Assim, a “inevitabilidade histórica” deste processo está expressamente limitada aos países da Europa Ocidental.

Mais uma vez, Marx estava negando ter criado um modelo unilinear de desenvolvimento social baseado na trajetória da Europa Ocidental. Nesse contexto, também devemos notar que em suas notas de pesquisa sobre a Índia nesse período, ele atacou explicitamente a visão de que a Índia pré-colonial era uma sociedade feudal.

Nesse período, Marx também se interessou nas contradições sociais dentro da sociedade russa, onde um importante movimento revolucionário já havia se desenvolvido. Ele não apenas negou a seus interlocutores russos que suas teorias mostravam que comunas aldeãs deveriam ser “inevitavelmente” destruídas em um processo de acumulação primitiva ao estilo ocidental. Ele também via essas aldeias como a base social para um novo tipo de movimento revolucionário.

Esse movimento seria paralelo, mas não seguido, ao da classe trabalhadora europeia, como ele e Engels escreveram no prefácio de uma edição russa de 1882 do Manifesto:

Se a Revolução Russa se tornar o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo que as duas se complementem, a atual propriedade comum russa da terra pode servir como ponto de partida para o desenvolvimento do comunismo.

Aqui, Marx estava apresentando um conceito multilinear de revolução, em que as comunas aldeãs da Rússia poderiam se tornar um importante aliado das classes trabalhadoras industriais da Europa Ocidental. Mas ele foi ainda mais longe, argumentando que uma revolta camponesa desse tipo na periferia do capitalismo poderia vir primeiro, como o “ponto de partida” que poderia desencadear um movimento revolucionário em toda a Europa.

Ao mesmo tempo, Marx nunca defendeu uma autarquia socialista agrária. Ele acreditava que, desprovida de vínculos com países mais desenvolvidos, uma revolução camponesa na Rússia não poderia, por si só, levar a uma forma viável de comunismo moderno. Em vez disso, ele estava defendendo uma revolução global contra um sistema global de dominação e exploração, o capitalismo.

Um Marx para os nossos tempos

Dessa forma, o Marx Tardio afastou-se de qualquer tipo de teoria unilinear do desenvolvimento baseada na Europa Ocidental e na qual o resto do mundo tinha que estar conceitualmente preso. Longe de evidenciar uma atitude condescendente em relação às sociedades na periferia do capitalismo, esses últimos escritos exibiam exatamente o oposto: uma teorização de seu potencial revolucionário.

Argumentos como os apresentados neste ensaio já estavam sendo vistos na época em que a crítica de Edward Said estava ganhando asas. Em Rosa Luxemburg, Women’s Liberation, e Marx’s Philosophy of Revolution (1981), de minha mentora Raya Dunayevskaya, e em Marx Tardio e a via Russa (1983), de Teodor Shanin, a noção de um Marx que desenvolveu uma perspectiva multilinear e verdadeiramente global sobre a sociedade e a revolução, inclusive de gênero, vieram à tona.

Essas interpretações de Marx não receberam muita atenção em um período de neoliberalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo e pronunciamentos de uma suposta “morte” do marxismo. Mas nos anos que se seguiram, as respostas marxistas ao argumento de Edward Said em Orientalismo surgiram, mais notavelmente na obra In Theory (1992) do falecido Aijaz Ahmad e em Marxism, Orientalism, Cosmopolitanism (2013) de Gilbert Achcar. As discussões sobre o Marx Tardio também se desenvolveram lentamente, de autores como Heather Brown, Marcello Musto e David Norman Smith, bem como meu próprio livro, Marx at the Margins. Com o retorno a Marx nos últimos anos, espero que tais perspectivas possam ter encontrado seu momento.

Colaborador

Kevin B. Anderson é um distinto professor de sociologia na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. É autor de Lenin, Hegel, and Western Marxism (1995) e Marx at the Margins (2010).

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