19 de agosto de 2021

"Crítica da violência" de Walter Benjamin é um apelo revolucionário às armas

O filósofo alemão Walter Benjamin publicou seu famoso ensaio ''A crítica da violência'' cem anos atrás. Ele mostra o compromisso de Benjamin com uma visão marxista da revolução dos trabalhadores contra um sistema jurídico que protege e mistifica o poder da classe dominante.

Duncan Stuart

Jacobin

O filósofo e teórico da arte alemão Walter Benjamin, 1928. (Store norske leksikon / public domain)

Tradução / Em 8 de agosto de 1914, Walter Benjamin sofreu uma perda terrível. Seus amigos íntimos Fritz Heinle e Rika Seligson cometeram suicídio em protesto contra a Primeira Guerra Mundial. Refletindo sobre a morte deles, Benjamin escreveu uma carta a seu amigo de infância, o futuro compositor Ernst Schoen. Nela, ele falou da necessidade de um radicalismo transformado em face da crescente catástrofe europeia. “Ninguém á capaz de lidar com essa situação”, lamentou.
Durante o período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, o afastamento social e político caracterizou a vida intelectual de Benjamin. Voltando-se para dentro, ele se ocupou com um “radicalismo invisível”. Nesses primeiros escritos, o jovem Benjamin foi fortemente influenciado por seu mentor, o reformador educacional e filósofo Gustav Wyneken.

Seguindo seu professor, Benjamin argumentou que a autotransformação baseada no cultivo da “solidão mais profunda” levaria à transformação social. No entanto, o apelo de Wyneken em novembro de 1914, para que a juventude alemã se juntasse ao esforço de guerra em defesa da "pátria", diminuiu a fé do jovem Benjamin nas ideias de seu professor.

Por volta de 1920, Benjamin tinha se voltado para um radicalismo político protomarxista e revolucionário. Seu famoso ensaio de 1921, “A crítica da violência”, é um testemunho dessa mudança em seu pensamento.

Os críticos muitas vezes rejeitaram o envolvimento de Benjamin com o marxismo por causa de seu uso de linguagem teológica. No entanto, essa linguagem religiosa não é uma alternativa a uma teoria política radical: antes, é um meio de articulá-la. Cem anos depois de sua publicação, o ensaio ainda contém insights para uma crítica marxista da violência usada para sustentar a lei.

Contextualizando “A Crítica da Violência”

Em janeiro de 1920, policiais em Berlim abriram fogo contra manifestantes comunistas em frente ao Reichstag, matando 42 pessoas. Este foi um dos vários eventos que minaram o apoio da classe trabalhadora ao governo liderado pelos social-democratas (SPD), partido que chegou ao poder no final da guerra.

Então, em março de 1920, o general Walther von Lüttwitz ordenou a entrada de um grupo de Freikorps paramilitares de direita em Berlim. Eles derrubaram o governo liderado pelo SPD e instalaram Wolfgang Kapp, um funcionário público nacionalista de extrema direita, como o novo chanceler. O evento ficou conhecido como o Putsch de Kapp.

Cientes de que não podiam contar com o exército, os oficiais do SPD fugiram de Berlim. Os sindicatos alemães convocaram uma greve geral que colocou o governo de Kapp de joelhos em quatro dias. Em 17 de março, Kapp e Lüttwitz abandonaram a cidade.

Diante dessa perda humilhante de poder, o SPD foi incapaz de reconquistar efetivamente sua reputação. Por sua vez, os comunistas alemães (KPD) foram incapazes de tomar o poder dos debilitados social-democratas e acabar de forma decisiva com a ameaça representada pela extrema direita. Como escreveu o historiador marxista Arthur Rosenberg: “O Putsch de Kapp realmente terminou com a derrota, não do exército, mas das classes trabalhadoras”.

O golpe da extrema direita e o fracasso dos partidos de esquerda influenciaram fortemente o ensaio clássico de Benjamin. A maioria dos relatos da vida de Benjamin presumem que ele desenvolveu seu compromisso com o marxismo após seu caso com a atriz letã e política radical Asja L%u001cis, ou depois de ler a obra de Georg Lukács de 1923, “História e consciência de classe”. Isso ignora a clara orientação marxista da análise de Benjamin em "A Crítica da Violência".

Embora o poder de uma greve geral para derrubar o governo de curta duração de Kapp tenha impressionado Benjamin, a incapacidade da esquerda alemã de capitalizar essa vitória o preocupou profundamente. O problema central do ensaio de Benjamin é mostrar que a greve geral pode estabelecer uma forma alternativa de autoridade política.

Direito Natural e Positivo

Apesar de suas reivindicações serem racionais e democráticas, os sistemas jurídicos capitalistas frequentemente exercem sua autoridade de forma arbitrária. Considere, por exemplo, o julgamento em frações de segundo que um policial deve fazer antes de uma prisão. Com base nesse julgamento, o policial deve decidir se suspeita que um crime tenha sido cometido e agir de acordo. Na prática, isso significa que a aplicação da lei exerce um poder extrajurídico.

A lei autoriza a polícia a usar meios violentos para apreender seu alvo, independentemente de sua inocência. A polícia é, no entanto, promotora e intérprete da lei. Essa ambiguidade significa que a violência que cometem é legal e extralegal. Para Benjamin, a arbitrariedade associada a qualquer exercício da lei garante que haja violência no seio dos ordenamentos jurídicos capitalistas.

Para explicar isso, Benjamin começa seu ensaio discutindo duas tradições supostamente distintas de teorização jurídica: as teorias naturais e positivas do direito. As teorias naturais do direito argumentam que existe um conceito de justiça aplicável a todos os humanos que, acreditam, pode derivar da natureza em última instância. Em contraste, as filosofias jurídicas positivas tipicamente sustentam que a justiça e a lei são criações humanas.

O filósofo liberal inglês - e defensor da escravidão - John Locke é talvez o expoente mais influente da tradição do direito natural. Em seu “Segundo Tratado sobre o Governo”, ele argumenta que mesmo o governo de um monarca não pode se sobrepor à lei natural. Enquanto para Locke são as instituições legais que implementam as leis naturais, estas leis têm uma autoridade maior do que qualquer coisa que a sociedade possa conferir.

As filosofias jurídicas positivas, por outro lado, frequentemente associadas ao filósofo conservador escocês David Hume, argumentam que a lei não tem base natural ou divina. A autoridade legal é, na melhor das hipóteses, uma convenção e um acordo social.

Ambas as abordagens fornecem, segundo Benjamin, diferentes formas de justificar a violência. A lei natural pode justificar a necessidade de direitos de propriedade, afirmando que a propriedade de terras, coisas ou mesmo pessoas é um direito divino. Com base nessa suposição, o teórico do direito natural pode, por exemplo, sancionar o uso da pena de morte contra ladrões, porque seu crime viola uma autoridade acima de qualquer coisa social.

Os teóricos do direito positivo defendem a legitimidade do direito argumentando que ele tem sua origem em nossas convenções sociais compartilhadas. Os defensores do direito positivo podem, portanto, acusar seus violadores de atacar um conjunto de valores compartilhados por toda a comunidade. Nesse entendimento, justifica-se que o Estado imponha violência aos criminosos porque, por meio de suas ações, eles agrediram o próprio tecido social.

Essas tradições aparentemente opostas têm em comum o fato de serem tentativas legalistas de justificar o uso de violência cruel e desumana. Ao apontar essa semelhança, Benjamin espera nos ajudar a compreender a relação entre a violência e a lei.

As teorias positivas distinguem entre violência sancionada e não sancionada. Seu reconhecimento da natureza socialmente produzida da lei significa que os teóricos jurídicos positivos estão constantemente preocupados que qualquer violação da lei possa servir para enfraquecê-la. Se, por exemplo, os indivíduos recorressem à violência extrajurídica para reparar danos causados a eles, isso prejudicaria a própria lei, pois revelaria que as pessoas poderiam conseguir justiça fora dela.

Implicitamente, os proponentes da tradição do direito positivo não justificam o valor final da autoridade legal por meio de sua capacidade de promover a justiça ou a paz. Em vez disso, para esses teóricos, a lei existe por si mesma. A oposição à lei é, portanto, uma preocupação para esta tradição porque mina o monopólio da violência que os defensores da lei podem exercer. Como escreve Benjamin:

“O interesse da lei no monopólio da violência contra os indivíduos não se explica pela intenção de preservar os fins jurídicos, mas, sim, pela intenção de preservar o próprio direito; aquela violência, quando não está nas mãos da lei, a ameaça não pelos fins que pode perseguir, mas por sua mera existência fora da lei.”

Violência legislativa e violência para preservação da lei

O ponto central do argumento de Benjamin é a distinção entre a violência legislativa e a violência que preserva a lei. A violência militar é um excelente exemplo de uma forma de violência legislativa. A conquista pode derrubar uma velha ordem social e legal e estabelecer uma nova em sua sequência. O poder faz o direito legal.

O poder, no entanto, também preserva o direito. A violência que preserva a lei é o "uso da violência como meio para fins legais". O uso policial da violência sancionada pelo Estado para fazer cumprir a lei e a eficácia dessa violência conferem à ordem legal estabelecida a aparência de permanência.

A violência que preserva a lei é a resposta inevitável às tentativas de violar a lei ou fundar uma nova ordem legal. A violência que preserva a lei não precisa assumir a forma de uma punição real. Em vez disso, a ameaça de violência sempre paira sobre qualquer pessoa que pretenda abalar a lei. É isso que Benjamin quer dizer quando se refere ao poder retributivo do Estado como um destino.

Em princípio, é possível que um infrator da lei escape da justiça. Mas é impossível escapar da ameaça da justiça. Ser levado à justiça é, portanto, o destino de um criminoso. Como os heróis das tragédias gregas, é inevitável que eles encontrem seu destino - o que é incerto é quando ou como isso vai acontecer.

O Putsch de Kapp é um exemplo perfeito do conflito entre a violência que cria e e aquela que preserva a lei. Embora a violência extrajudicial ameace a lei, nenhuma nova ordem jurídica pode ser estabelecida sem ela. O golpe ameaçou a ordem legal da República de Weimar, mas não conseguiu estabelecer uma nova ordem mais repressiva porque não conseguiu reunir violência suficiente para superar uma greve geral. A consequência desse fracasso foi que os conspiradores sucumbiram ao seu destino: o castigo nas mãos do Estado.

Para Benjamin, comparar a violência legal ao destino destaca o caráter mítico da lei. Continuando com a metáfora, ele argumenta que a pena de morte é a expressão máxima do poder que a lei tem sobre o destino de seus sujeitos. O objetivo da pena de morte, escreve Benjamin, "... não é punir a violação da lei, mas estabelecer nova lei. Pois no exercício da violência sobre a vida e a morte, mais do que em qualquer outro ato jurídico, a lei se reafirma.

Superando a violência mítica

Apesar da aparência secular do sistema jurídico moderno, ele preserva, por meio de sua dependência da violência despótica, a antiga ideia mitológica de destino. O objetivo de Benjamin em seu ensaio não é apenas descrever essa estrutura mitológica, mas mostrar como podemos superá-la. Para fazer isso, o autor se volta para a política revolucionária.

Por meio do exemplo da greve geral, Benjamin encontra um desafio popular ao monopólio do estado sobre a violência. Isso pode parecer uma afirmação estranha, uma vez que greves são geralmente entendidas como uma recusa passiva de agir.

Benjamin observa, no entanto, que ao retirarem sua força de trabalho, os trabalhadores se envolvem em uma espécie de extorsão. Nesse sentido, as greves representam uma ameaça fundamental ao conceito de uma ordem jurídica construída sobre a produção de mercadorias. Consequentemente, a lei só permite greves específicas dentro de certas condições.

Na seção final do ensaio, Benjamin sugere que uma greve geral fornece um modelo para uma forma de violência que rompe com o antigo modelo de destino. A lei nunca sancionará uma greve geral porque ela desafia todo o sistema e, portanto, é implicitamente (e às vezes explicitamente) revolucionária. As greves gerais representam uma ameaça à lei como tal, exatamente como faz a violência compreendida convencionalmente.

Benjamin chama essa alternativa de violência divina. Por meio desse conceito reconhecidamente teológico, ele conceitua uma forma de ação política que não busca substituir um sistema injusto de coerção legal por outro: "Se a violência mítica estabelece a lei, a violência divina a destrói; se a primeira estabelece limites, a última, irrestritamente, os destrói; se a violência mítica traz ao mesmo tempo culpa e retribuição, o poder divino apenas expia; se a primeira ameaça, a segunda ataca; se a primeira é sangrento, a última é letal sem derramar sangue."

É certo que a linguagem metafórica dramática que Benjamin usa para elucidar sua ideia a torna um tanto ambígua. Apesar dessa ambiguidade, o ponto que ele deseja defender é claro. A coerção serve para manter os sistemas jurídicos capitalistas e a violência divina busca reverter esse estado de coisas.

A ideia de Benjamin de violência divina é difícil de entender se concebida apenas em termos teológicos. Se, no entanto, lembrarmos que a greve geral contra o golpe de Kapp inspirou o ensaio de Benjamin, os insights de seu tratado são mais facilmente decifráveis. Embora a greve geral tivesse o poder de derrotar o golpe, os partidos da esquerda alemã não confiaram no poder autônomo da classe trabalhadora para estabelecer uma nova ordem jurídica socialista.

Derrotados apenas momentaneamente, a polícia e o exército mantiveram seu monopólio da violência legal e restauraram uma forma de autoridade legal baseada no uso arbitrário da força. A violência divina de uma greve geral era, para Benjamin, a melhor esperança da classe trabalhadora contra a lei da minoria proprietária.

Embora Benjamin não nos forneça uma maneira de conceber uma forma alternativa de direito que não dependa da opressão, seu ensaio deixa clara a violência arbitrária exercida em nome da justiça e a transformação generalizada da lei e a violência necessária para superar a ordem legal capitalista.

Como Marx e Engels argumentaram no Manifesto Comunista, o proletariado tem o poder de derrubar "todas as condições sociais existentes" e, de acordo com Benjamin, criar uma nova ordem jurídica que não seja fundada na arbitrariedade da justiça mítica. Os socialistas contemporâneos fariam bem em confiar nas capacidades revolucionárias da classe trabalhadora.

Colaborador

Duncan Stuart é um escritor australiano que vive na cidade de Nova York.

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