Os conservadores afirmam defender a tradição. A verdade é que eles defendem a dominação e o poder ilegítimo sobre os outros.
Vivek Chibber
Elijah Nouvelage / AFP via Getty Images) |
Tradução / A direita política muitas vezes descreve-se como defensora da tradição – das normas, valores e rituais que valorizam e das comunidades que os sustentam. Esses dois elementos são, diversas vezes corretamente, considerados conectados. Normas e valores não se sustentam a menos que eles se estabeleçam em comunidades comunitárias estáveis. E a comunidade, por sua vez, é significativamente “preciosa” por conta de seus hábitos e rituais, do profundo senso de reciprocidade e valores comuns, que proporciona aos seus membros.
A direita entende que para maioria, esses fenômenos possuem grande valor, e isso se apresenta, incessantemente, como seu proponente. Por outro lado, a esquerda é frequentemente apresentada por seu desdém às tradições. Em sua crítica ao status quo, sua associação com as forças da mudança e sua defesa dos direitos individuais, alega-se que a esquerda está mudando o próprio “estilo de vida” em que as pessoas encontram sentido. Assim, enquanto a direita é vista como defensora da comunidade, a esquerda é apresentada como promotora de um individualismo iconoclasta.
Certamente existe uma parcela de verdade nesta afirmação. A direita, de certa forma, procurou defender elementos importantes da cultura tradicional; a esquerda, por sua vez, procura derrubar muitas destas instituições herdadas de um passado longínquo. Os hinos socialistas costumam adotar esta temática – “A Internacional” fala sobre refazer o mundo “desde suas fundações”, enquanto a “Solidarity Forever” propõe construir “um novo mundo das cinzas do antigo”. Mas, embora possamos afirmar em torno de um certo nível de generalização, isso provavelmente distorce mais do que revela.
Primeiramente, a esquerda nunca teve absoluta aversão em relação à tradição e à comunidade. Se o fizesse, teria quase que imediatamente desmoronado como força política. Na verdade, socialistas e sindicalistas trabalharam arduamente para recuperar e fortalecer práticas de resistência nas regiões onde se organizam. Essas práticas vitais nada mais são do que uma cultura, uma tradição de luta. Nas cidades mineiras, nas indústrias, nas siderúrgicas, nas madeireiras, nos portos e nas docas – em todos esses locais, quando os socialistas organizaram os trabalhadores, eles confiaram nas tradições já existentes de resistência e luta coletiva.
Mais uma vez, podemos ver isso ilustrado nas músicas de esquerda. Os “trabalhadores industriais do mundo”, também conhecidos como “Wobblies”, estavam entre os movimentos trabalhistas mais importantes da história dos EUA e lideraram grande parte do sindicalismo radical no início do século XX. Eles utilizaram a música folk para desenvolver a consciência de classe e um senso de comunidade nas barricadas de piquete, produzindo figuras como Joe Hill, que iria influenciar futuros músicos de esquerda como Woody Guthrie e Pete Seeger.
Muitos de seus trabalhos mais populares foram desenvolvidos no Little Red Songbook – mas as músicas não eram novas. Na verdade, eram quase todos hinos, inspirados em tradições bíblicas. Mas não eram simplesmente apropriações de músicas religiosas: os hinos fizeram parte de eras anteriores de luta, desde a abolição até a Guerra Civil e até os primeiros círculos do movimento trabalhista. Em alguns casos, as músicas nem foram muito alteradas. Na década de 1930, quando o movimento trabalhista organizou os trabalhadores negros no sul dos EUA, eles adotaram “We Are Climbing Jacob’s Ladder”, com cada degrau da escada representando um novo trabalhador se juntando à luta.
As tradições que já existem de resistência e luta nas quais a esquerda se baseia foram construídas ao longo de décadas para sustentar as famílias da classe trabalhadora em tempos difíceis e nas suas campanhas contra seus empregadores. Elas são multidimensionais; em alguns casos, redes informais de apoio à famílias em tempos de escassez, assistência local para superar crises de desemprego, instituições religiosas ou culturais que fornecem apoio moral; em seguida temos as várias representações literárias e simbólicas que traduzem a tradição de resistência, como as que discutimos – canções, poemas e lendas tão comumente encontrados em comunidades de trabalhadores.
Não deveria ser surpreendente que tudo isso também se traduza em uma defesa da comunidade da classe trabalhadora – de duas maneiras distintas. A primeira é protetora: os socialistas tentam defender e fortalecer as tradições coletivas e instituições compartilhadas que os trabalhadores criaram para si mesmos. Eles entendem que quando os empregadores demitem milhares, quando reduzem os salários, ou se retiram e levam seu capital para outras regiões, eles não estão apenas destruindo empregos, mas destruindo formas inteiras de existência. Destroem comunidades e a luta trabalhista nada mais é do que a defesa dessa comunidade contra o capital. Eles se inserem nessa comunidade, tornam-se parte dela e se unem na luta para dar a ela sua sustentação.
A outra maneira pela qual eles promovem a comunidade é através da sua reconstrução, mesmo onde esta não existia. Os socialistas entendem que o efeito mais forte e destrutivo do capital é lançar as pessoas no mercado de trabalho, colocando-as de forma rivalizada. Por estarem em constante luta por empregos e segurança, os trabalhadores são forçados a enfrentar seus pares como uma ameaça competitiva, como rivais na luta para garantir sua subsistência. Para que a organização de classes tenha êxito, as forças que separam os trabalhadores devem ser neutralizadas pela criação de organizações unificadoras – sindicatos, associações de bairro, partidos políticos, clubes de trabalhadores e iniciativas semelhantes.
Essas organizações geralmente se baseiam em culturas locais pré existentes de solidariedade e luta. Um dos exemplos mais marcantes disso é a Liga dos Justos – uma organização cristã que acabaria por formar a base da Liga Comunista de Marx e Engels. Mas elas também precisam estabelecer o senso de reciprocidade onde não existia anteriormente. Sindicatos e partidos são fundamentais para forjar novas identidades políticas e, assim, uma nova comunidade política, sem a qual os movimentos políticos simplesmente entrariam em colapso.
Esses são alguns dos aspectos mais importantes aos quais a esquerda se alinhou com a tradição, o que demonstra uma situação contrária à acusação de que ela se preocupa apenas em derrubar esses antigos costumes. O que, então, diferencia sua defesa da direita? O fato é que nenhum dos lados adota uma defesa geral da tradição, nem uma condenação total. Cada um seleciona elementos da cultura que se ajustam aos seus objetivos políticos e são indiferentes ou hostis àqueles que não se encaixam. Cada lado procura fortalecer as parcelas da cultura que se alinham com seus objetivos políticos, enquanto enfraquece aquelas que se encontram no sentido oposto ideologicamente. Para a esquerda, isso significa buscar a manutenção das tradições que fortalecem a posição do trabalhador contra o capital.
Mas submerso a isso existe um princípio mais profundo: os elementos da cultura que devem ser preservados são aqueles que minam o poder ilegítimo. O poder do capital sobre os trabalhadores é o exemplo contemporâneo mais importante disso. Mas o princípio também abrange outras formas de dominação – de gênero, raça, etnia e nação. Assim, os socialistas celebraram tradições de resistência nas comunidades camponesas contra as elites rurais, de lutas nacionais contra o poder imperialista e as mulheres em suas demandas por direitos reprodutivos. Eles mergulharam ainda mais fundo do que isso – afinal, a Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo tem este nome por se inspirar em uma revolta de escravos contra o Império Romano que ocorreu dois mil anos antes da sua existência.
A esquerda reconhece que essas tradições de resistência podem ser encontradas em todas as culturas, em todas as partes do mundo. Seja no Oriente Médio, Ásia, África ou nas Américas, grupos que enfrentam a dominação social geraram culturas de resistência enriquecedoras, e é por isso que em todas essas regiões a esquerda conseguiu incorporar seus princípios básicos nas práticas locais e fortalecê-las. Cada esquerda torna-se assim uma esquerda local, consagradora das tradições locais de luta, mas ainda parte de um movimento global, implantando um princípio geral contra a dominação social. O geral e o específico não se chocam, eles se sustentam.
Se pararmos para observar a direita, como ela se comporta em relação à tradição? Não há contestação de que eles se apresentam como sua defensora. Mas que aspectos da mesma que ela defende? Houve um tempo, na infância do capitalismo, em que os conservadores podiam ser identificados como críticos da força brutal do mercado, lutando para preservar princípios de comunidade e formas antigas contra a incursão das forças do mercado. Assim, Edmund Burke ficou genuinamente chocado com a estreita priorização do lucro por parte do capitalismo acima de tudo, e defendeu as velhas formas contra as suas forças corrosivas.
Este era um conservadorismo ainda casado com um ethos feudal. Mas em meados do século XX, o alinhamento de classes do conservadorismo tinha mudado. Por esta altura, nos anos 50, os conservadores e a direita já não representavam a luta das elites agrárias contra um mercado capitalista invasor. A ordem que pretendiam manter era a do capitalismo, e a classe que serviam era a do capital, na sua luta contra os crescentes movimentos de trabalhadores em todo o mundo. Longe de procurarem preservar a ordem antiga, eles agora lutavam pelo capitalismo contra as exigências de redistribuição e o socialismo.
Este realinhamento na base de classe da direita torna a sua auto-associação com a tradição um pouco constrangedora. Como representantes do capital, é difícil compreender como podem ser vistos como defensores da comunidade e dos seus princípios. Como os primeiros conservadores foram os primeiros a salientar, o capitalismo é levado a minar a comunidade e, com ela, as tradições mais santificadas. É um sistema que privilegia o lucro acima de tudo, e na procura de aumentar cada vez mais esses lucros, os investidores não hesitam nem por um minuto em derrubar antigas práticas, destruir comunidades, romper laços sociais ou atirar milhões pessoas de volta à fila no mercado de trabalho.
Nisto, é a direita que despreza os “velhos costumes”, não a esquerda. Mas, tal como no caso da esquerda, também não quer dizer que os conservadores tenham total aversão por práticas herdadas. Eles também tem sua própria seletividade, por mais imperfeito que seja e por mais que trabalhem para torná-lo obscuro. E é simples: as tradições que eles defendem são as que auxiliam na sustentação para santificar a propriedade privada.
Assim, os aspectos da cultura que fortalecem os trabalhadores, os mesmos que a esquerda trabalha para apoiar e reforçar, são os que a direita ignora ou combate ativamente: a expectativa, tão comum às economias feudais, de que os indivíduos tenham direitos sobre os recursos comuns, a tradição de apoio mútuo, às instituições de luta coletiva – todos estes aspectos da tradição têm sido diretamente atacados pela direita contemporânea.
Mas ainda mais: na sua defesa da propriedade privada, a direita é a mais empenhada defensora do individualismo que o mundo já viu. Pois o que é a propriedade privada senão a asserção final do indivíduo sobre a comunidade? Direitos sobre a propriedade privada dotam o capitalista de um poder tremendo sobre o resto da população.
É um poder que determina quem possui um meio de subsistência e quem não; quem tem segurança e quem não tem; qual será o nível de vida de milhares, ou mesmo milhões; um poder de dispor do seu trabalho, e por conseguinte das suas pessoas, durante grande parte do seu tempo de vigília. E este poder é sustentado e defendido contra as suas exigências coletivas de reparação; é um poder do indivíduo contra a comunidade, afirmado e defendido contra essa comunidade. Esse mesmo poder é então exercido de uma forma que rasga o seu tecido social – com uma lógica fria e sem remorsos.
Os socialistas têm sido críticos ferrenhos das tradições, mas não porque abrigam um antagonismo grosseiro em relação aos velhos costumes; o que eles atacam foram os componentes da cultura que sustentavam o domínio social do capital, que inibiam o impulso popular para reivindicar sua autodeterminação. Não inventaram este princípio, apenas o articularam. Estava já presente na luta diária dos trabalhadores para manter a cabeça acima da água num sistema de mercado impiedoso.
Estas lutas foram motivadas pelo próprio impulso de autonomia e liberdade de dominação que a esquerda organizou em sua teoria e ideologia. E continuará a motivar os trabalhadores mesmo que a esquerda desapareça amanhã. Mas esta longa história de crítica, que a esquerda abraça, não deve pintá-los como cosmopolitas sem raízes, como iconoclastas compulsivos. Essa distinção pertence aos defensores do capital. Como Tony Benn escreveu uma vez, “Sou um tradicionalista. Há dois tipos de tradição. Há a tradição de obediência, deferência, hierarquia e disciplina; depois há uma tradição diferente que celebramos: de independência, de direitos humanos, de democracia, de internacionalismo”.
Enquanto a esquerda atual continuar sua revitalização, ela irá, tal como todas as gerações anteriores, inserir-se na vida cotidiana dos trabalhadores. Tal como esta faz, também irá escavar e fortalecer as tradições de luta; também procurará defender a comunidade contra as forças do mercado para reconstruir a comunidade onde ela foi dilacerada. E seguirá defendendo a rejeição de algumas tradições – aquelas que impedem as pessoas de viver uma vida segura e digna.
Este artigo foi republicado da última edição do Tribune.
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