22 de agosto de 2021

Relembrando a Revolução Haitiana

A Revolução Haitiana começou há 230 anos e culminou no estabelecimento da primeira república negra do mundo. Nós republicamos o relato icônico de C.L.R. James de como os escravos derrubaram seus senhores.

C.L.R. James

Tribune

Ilustração representando o combate entre as tropas francesas e haitianas durante a Revolução Haitiana. Crédito: Creative Commons

Eh! Eh! Bomba! Heu! Heu!
Canga, bafio te!
Canga, moune de le!
Canga, do ki la!
Canga, do ki la!
Canga, li!

Tradução / Os escravos trabalhavam na terra e, assim como camponeses revolucionários por toda parte, visavam o extermínio de seus opressores. Mas ao trabalhar e viver juntos em bandos de centenas nas enormes fábricas de açúcar que cobriam a região do norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores existente na época, e o levante foi, portanto, um movimento de massa organizado. Através da dura experiência, eles aprenderam que esforços isolados estavam fadados ao fracasso e, nos primeiros meses de 1791, em Le Cap e arredores, eles estavam se organizando para a revolução.

O Vodu foi o veículo da conspiração. Apesar de todas as proibições, os escravos viajavam quilômetros para cantar e dançar, praticar os ritos e conversar; e agora, desde a revolução, para ouvir as notícias políticas e fazer seus planos. Boukman, um Papaloi ou Sumo Sacerdote, um homem negro gigantesco, era o líder. Ele era chefe de fazenda e acompanhava a situação política tanto entre os brancos quanto entre os mulatos [original Mulattoes]. No final de julho de 1791, os negros de Le Cap e arredores estavam prontos e esperando um sinal. O plano foi concebido em grande escala e visava exterminar os brancos e tomar a colônia para si. Havia talvez 12.000 escravos em Le Cap, 6.000 deles homens. Uma noite, os escravos dos subúrbios e arredores de Le Cap se preparavam para incendiar as plantações. Recebendo o sinal, os escravos da cidade massacrariam os brancos e os escravos da região completariam a destruição. Eles tinham percorrido um longo, longo caminho desde os grandiosos esquemas de envenenamento de Mackandal.

O plano não deu certo em sua totalidade. Mas quase aconteceu, e o alcance e a organização dessa revolta mostram que Boukman foi o primeiro dessa linha de grandes líderes que os escravos gerariam com tanta profusão e rapidez durante os anos que se seguiram. Que uma conspiração tão vasta não tenha sido descoberta até que tenha realmente estourado é um testemunho de solidariedade. No início de agosto, os escravos em Limbe, então e até o fim da revolução um dos centros de efervescência, levantaram-se prematuramente e foram esmagados. Este levante em Limbe mostrou que era perigoso adiar. Três dias depois, representantes de paróquias de toda a região se reuniram para marcar o dia.

Deputados que estavam a caminho de Le Cap para a primeira sessão da Assembleia Colonial, a começar em 25 de agosto, encontraram na estrada uma multidão de escravos que os assediaram e até mesmo os atacaram. Em 21 de agosto alguns prisioneiros foram feitos e Blanchelande, o governador, examinou-os ele mesmo no dia seguinte. Ele não conseguiu muito deles, mas entendeu vagamente que haveria algum tipo de levante. Ele tomou precauções para proteger a cidade dos escravos e ordenou que patrulhas cobrissem os arredores. Mas esses homens brancos desprezavam demais os escravos para acreditar que eles eram capazes de organizar um movimento de massa em grande escala. Eles não conseguiam obter dos prisioneiros os nomes dos líderes e que precauções poderiam tomar contra os milhares de escravos nas centenas de fazendas? Alguns membros da ralé branca de Le Cap, sempre prontos para saques e pilhagens, se revelaram ligados a algum tipo de trama. Blanchelande estava mais preocupado com isso do que com os negros.

Na noite do dia 22 uma tempestade tropical assolou a região, com relâmpagos, rajadas de vento e fortes pancadas de chuva. Carregando tochas para iluminar seu caminho, os líderes da revolta se encontraram em um espaço aberto nas densas florestas de Morne Rouge, uma montanha com vista para Le Cap. Ali, Boukman deu as últimas instruções e, após os encantamentos Vodu e a sucção do sangue de um porco cativo, estimulou seus seguidores com uma oração dita em crioulo que, como tantas outras faladas nessas ocasiões, permaneceu. ‘O deus que o sol que nos dá luz, que desperta as ondas e governa a tempestade, embora escondido nas nuvens. Ele nos observa. Ele vê tudo o que o homem branco faz. O deus do homem branco o inspira com o crime, mas nosso deus nos chama a fazer boas obras. Nosso deus que é bom para nós nos ordena a vingar nossas injustiças. Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará. Jogue fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar e ouça a voz da liberdade, que fala no coração de todos nós.’

O símbolo do deus dos brancos era a cruz que, como católicos, eles usavam em volta do pescoço. Começaram naquela mesma noite. Os escravos da plantação de Gallifet eram tão bem tratados que “felizes como os negros de Gallifet” era um provérbio escravo. No entanto, em um fenômeno observado em todas as revoluções, foram eles que abriram o caminho. Cada gangue de escravos assassinou seus senhores e incendiou a plantação. As precauções que Blanchelande havia tomado salvaram Le Cap, mas a preparação fora minuciosa e, em poucos dias, metade da famosa Planície Norte estava em ruínas e chamas. Visto de Le Cap, todo o horizonte era uma muralha de fogo. Desta parede subiam continuamente espessos volumes negros de fumaça, através dos quais vinham línguas de chamas saltando para o próprio céu. Durante quase três semanas o povo de Le Cap mal conseguia distinguir o dia da noite, enquanto uma chuva de palha de cana em chamas, impelida pelo vento como flocos de neve, sobrevoava a cidade e os navios no porto, ameaçando ambos de destruição.

Os escravos destruíram incansavelmente. Como os camponeses da Jacquerie ou os demolidores luditas, buscavam sua salvação da maneira mais óbvia, destruindo o que sabiam ser a causa de seus sofrimentos; e se destruíram muito foi porque sofreram muito. Eles sabiam que, enquanto essas plantações se mantivessem, seu destino seria trabalhar nelas até que caíssem. A única possibilidade era destruí-los. De seus senhores eles conheceram estupro, tortura, degradação e, à menor provocação, morte. Eles revidaram a altura. Por dois séculos, a civilização superior mostrou a eles que o poder era usado para impor sua vontade àqueles que você controlava. Agora que eles detinham o poder, eles fizeram como haviam sido ensinados. No frenesi dos primeiros encontros, mataram a todos, mas pouparam os padres que temiam e os cirurgiões que tinham sido gentis com eles. Eles, cujas mulheres sofreram inúmeras violações, violaram todas as mulheres que caíram em suas mãos, muitas vezes sob os corpos de seus maridos, pais e irmãos ainda sangrando. ‘Vingança! Vingança!” foi seu grito de guerra e um deles carregava uma criança branca em uma lança como estandarte.

E, no entanto, eles eram surpreendentemente moderados, naquele momento e depois, muito mais humanos do que seus mestres haviam sido ou jamais seriam. Eles não mantiveram esse espírito vingativo por muito tempo. As crueldades da propriedade e do privilégio são sempre mais ferozes do que as vinganças da pobreza e da opressão. Pois um visa perpetuar a injustiça ressentida, o outro é apenas uma paixão momentânea logo aplacada. À medida que a revolução ganhava território, eles pouparam muitos dos homens, mulheres e crianças que surpreenderam nas plantações. Apenas para os prisioneiros de guerra permaneceram impiedosos. Rasgaram a carne com pinças em brasa, assaram em fogo lento, serraram um carpinteiro entre duas tábuas. No entanto, em todos os registros da época, não há um único exemplo de torturas diabólicas como enterrar homens brancos até o pescoço e manchar os buracos em seus rostos para atrair insetos, ou explodi-los com pólvora, ou qualquer uma das mil e uma bestialidades a que haviam sido submetidos. Comparado com o que seus senhores haviam feito a eles a sangue frio, o que fizeram foi insignificante, mesmo que estimulados através da ferocidade com que os brancos em Le Cap tratavam todos os prisioneiros escravos que caíam em suas mãos.

Como sempre, a força do movimento de massas arrastou consigo setores revolucionários das classes mais próximas a si. Negros livres se juntaram a eles. Um fazendeiro de Port Magot ensinara seu capataz negro a ler e escrever, o libertara, deixara-lhe em testamento 10.000 francos, havia dado à mãe do capataz terras nas quais ela fizera uma plantação de café. Mas esse negro fez erguerem-se os escravos nas fazendas de seu senhor e de sua própria mãe, incendiou-os e juntou-se à revolução, que lhe deu um alto comando. Os mulatos odiavam os escravos negros porque eram escravos e porque eram negros. Mas quando eles realmente viram os escravos agindo em grande escala, muitos jovens mulatos de Le Cap e arredores correram para se juntar aos negros até então desprezados e lutar contra o inimigo comum.

Eles tiveram a sorte de que as tropas em Le Cap eram poucas, e de que Blanchelande, com medo dos escravos e da ralé branca da cidade, preferiu agir na defensiva. Um ataque foi feito pelo exército regular, que expulsou os escravos, mas Blanchelande, cedendo a temores nervosos despertados na cidade, ordenou que recuassem. Isso deixou o campo nas mãos da revolução. Ganhando coragem, os negros estenderam sua destruição sobre o campo. Se tivessem tido o menor interesse material nas plantações, não teriam destruído tão desenfreadamente. Mas eles não tinham nenhum. Depois de algumas semanas, eles pararam por um momento para se organizar. É nesse período, um mês após o início da revolta, que Toussaint Breda se juntou a eles e fez uma entrada discreta na história.

Este artigo é um extrato do livro de 1938 de C. L. R. James, "The Black Jacobins".

Sobre o autor 

C.L.R. James (1901-1989) foi um historiador e jornalista marxista de Trinidad. Seu texto de 1938, The Black Jacobins, é um relato icônico da Revolução Haitiana.

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