22 de dezembro de 2020

Sintomas latino-americanos

Trajetórias para uma maré rosa escura, com as políticas instáveis ​​do continente equilibradas sobre sua economia extrativista doente.

Mario Sergio Conti

Sidecar


Ao analisar o estado da América Latina, enquanto ela cambaleia sob recessão e pandemia, é útil ter em mente que essas são economias essencialmente extrativistas, baseadas na exportação de cereais, vegetais, minerais, carne, peixe, gás e petróleo. Com mão de obra manual barata, elas também produzem bens de segunda categoria — e medicamentos. Essas economias geram setores de serviços exagerados, periferias degradadas e hospitais e escolas devastados. O pau e a cenoura estão firmemente nas mãos das classes exploradoras, que, embora nativas da região, se comportam como ocupantes estrangeiros.

O centro de gravidade dessas "terras do evangelho" sempre esteve em outro lugar. Desde os dias das monarquias Bourbon e Bragança, a América Latina importou e adaptou suas ideias, seus sistemas de governo, tradições, formas artísticas e tecnologias. Assim como a industrialização do continente o subordinou às cadeias internacionais de produção, sua modernização estava sujeita aos interesses da metrópole capitalista avançada. Nas palavras do pensador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, somos exilados em nossas próprias terras.

Será objetado que a América Latina também foi o principal continente de revolta do mundo, que a classe trabalhadora conseguiu estabelecer formas avançadas de organização aqui no século XX. Os exemplos variam das formas de representação popular estabelecidas pela COB (Central Obrera Boliviana) durante a revolução boliviana de 1952, ou a criação do PT (Partido dos Trabalhadores) no Brasil durante a década de 1980, que mobilizou os pobres sob a égide da classe trabalhadora. Mas, no geral, regimes autoritários e demagógicos – Perón na Argentina, Vargas no Brasil – deram o tom político, absorvendo espasmos de revolta em um caudilhismo retrógrado. Esta foi a versão local de desenvolvimento combinado e desigual.

Nos últimos anos, esta combinação de rebelião e paralisia, avanço e recuo, sofreu uma aceleração vertiginosa. A instabilidade tornou-se permanente. Veja a Bolívia. Em outubro de 2019, o país teve seu 190º golpe de estado em 195 anos de independência: a polícia se amotinou, os militares se manifestaram contra Evo Morales, o presidente eleito, e o levaram ao exílio. (A polícia também liderou a rebelião de 2010 contra Rafael Correa no Equador.)

Uma investigação da OEA não encontrou irregularidades na contagem oficial da eleição de primeiro turno da Bolívia, que Morales venceu — apenas com a "contagem rápida" não oficial. No entanto, não apenas Trump e Bolsonaro, mas a UE e a OEA apoiaram o golpe boliviano. Com a presidência ocupada por uma figura não eleita da extrema direita, a Bolívia suportou um ano de tumulto até as eleições de outubro de 2020, vencidas decisivamente por Luis Arce, o candidato do movimento de Morales, o MAS.

A situação não é um retorno completo ao status quo ante da Bolívia, já que as políticas econômicas de Arce estão mais próximas do ideal anglo-americano. Politicamente, ele está em posição de aprender com os erros de Morales, que usou a máquina judicial para anular um plebiscito que lhe negou a chance de um quarto mandato.

Enquanto isso, o Chile abriu uma janela para o futuro — embora o bloco governante esteja tentando garantir que ela não se abra muito. Os primeiros indícios surgiram em outubro de 2019, quando os alunos da escola pública mais antiga do Chile, o Instituto Nacional, começaram a pular as catracas nas estações de metrô para protestar contra um aumento de 30 pesos nos preços dos ingressos. O corpo estudantil vem mudando: famílias ricas têm retirado seus filhos gradualmente, preferindo se abrigar nos subúrbios bem policiados que ladeiam o sopé dos Andes. Mas não se tratava apenas dos 30 pesos. O pavio foi aceso e, em poucas semanas, o Chile estava em chamas.

Outubro de 2019 viu uma das maiores manifestações de todos os tempos na América Latina, com um milhão de pessoas na Plaza Italia de Santiago, agora rebatizada como Plaza Dignidad. A opinião educada disse que este era um típico tumulto latino-americano que logo acabaria. Mas as forças populares organizaram uma greve geral que paralisou o país, de uma ponta a outra. Novas formas de organização política floresceram ao lado – e apesar – dos tradicionais partidos socialista e comunista.

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, é descendente de uma das famílias mais extravagantemente ricas da América Latina. Ele respondeu à revolta ordenando que a polícia disparasse balas de borracha nos rostos dos insurgentes. Mais de cem pessoas sofreram ferimentos faciais, muitas ficaram cegas; milhares foram presas. (Balas de borracha foram desenvolvidas pelas forças de segurança no Reino Unido e usadas contra manifestantes que exigiam a retirada das tropas britânicas da Irlanda do Norte na década de 1970. Elas foram adotadas pela IDF, mirando nas testas dos palestinos, e desde então têm sido usadas globalmente — contra os manifestantes de 2013 no Brasil, os gilets jaunes na França e os manifestantes do BLM nos EUA.)

Balas de borracha não mataram o movimento no Chile. Em novembro de 2019, o Congresso decidiu que um referendo deveria ser realizado em abril de 2020 sobre a elaboração de uma nova Constituição para substituir a imposta por Pinochet quarenta anos antes, que consagrou a ordem neoliberal. A medida deveria interromper os protestos, mas no início de 2020 a revolta estava se espalhando novamente, com greves em dezenas de setores, ocupações, manifestações militantes, ataques ao apodrecido establishment político e confrontos com a polícia.

A pandemia ofereceu a Piñera a chance de adiar o referendo até 25 de outubro de 2020, mas ele não conseguiu mudar o resultado quando a votação finalmente ocorreu. Mais de 5,8 milhões de chilenos votaram a favor da elaboração de uma nova Constituição; apenas 1,6 milhão votaram contra. A maioria também votou que a Assembleia Constituinte, a ser eleita em 11 de abril de 2021, será composta exclusivamente por delegados eleitos para esse propósito — não parlamentares reciclados. A Assembleia será composta por 50% de mulheres, 50% de homens, e as minorias indígenas, começando pelos mapuches, terão representação garantida. Os candidatos não precisarão concorrer sob os auspícios de um partido político: representantes de comitês de fábrica, grupos de bairro, escolas e sindicatos poderão concorrer.

Dito isso, a eleição usará os círculos eleitorais desproporcionais do Chile — favorecendo as regiões rurais, em detrimento das cidades — e o sistema D'Hondt de alocação proporcional de votos, que notoriamente favorece partidos maiores. Os 155 membros da Assembleia Constituinte terão que concordar com quaisquer medidas por uma maioria de dois terços, então uma minoria de 53 terá poder de veto. Eles foram instruídos a se concentrar na seguridade social, educação, saúde e emprego: a vida cotidiana da sociedade, em vez do que o jurista argentino Roberto Gargarella chamou de "sala de máquinas" do sistema político. Além disso, 648 pessoas foram presas por participar das manifestações contra o regime de Piñera, e outras 752 pessoas foram condenadas por danos à propriedade privada. O governo se recusa a perdoá-los e nega que sejam presos políticos.

No entanto, embora nada seja garantido, a revolta do Chile produziu resultados que vão muito além do que foi alcançado por formidáveis ​​movimentos de protesto em outros lugares, dos EUA à Argélia, do Líbano à França, da Bielorrússia à Nigéria.

Enquanto o Chile avança em direção a um futuro incerto e a Bolívia reverte para uma versão alterada de seu passado recente, o Peru afunda no presente. Nenhuma nação expressa melhor a volatilidade da América Latina. A última eleição presidencial foi em 2016 e teve quatro presidentes desde então: Martín Vizcarra substituiu um desacreditado Pedro Pablo Kuczynski em março de 2018 e sofreu impeachment por um Congresso hostil em novembro de 2020; seu sucessor, o ultraconservador Manuel Merino, durou apenas cinco dias, em meio à comoção popular com a deposição de Vizcarra, e foi substituído por Francisco Sagasti, um tecnocrata educado nos EUA, antes do fim do mês.

A classe política do Peru se dissociou completamente do povo peruano, e os partidos não representam praticamente nada, exceto eles mesmos. O Congresso foi ocupado por charlatões e oportunistas de todos os tipos, ou por bandidos descarados: mafiosos, seitas evangélicas e barões ladrões.

Quatro fatores alimentam a crise atual. Primeiro, o Peru ainda não acertou as contas com a ditadura de Fujimori dos anos 1990, uma era de esquadrões da morte, peculato e corrupção máxima na política partidária. Segundo, o boom nas exportações de minerais brutos, que sustentou o desenvolvimento nas últimas décadas, nunca chegou aos pobres com seus lucros e agora entrou em parafuso. Terceiro, denúncias de corrupção corporativa e política foram instrumentalizadas para beneficiar a direita — e a extrema direita. Finalmente, a pandemia: o Peru teve uma das maiores taxas de mortalidade per capita do mundo por coronavírus.

Essas quatro características podem ser encontradas hoje em todos os países latino-americanos, assim como uma quinta: a desindustrialização. Com o fechamento de fábricas, a classe trabalhadora foi fragmentada e milhões de seus antigos membros jogados no desemprego, precariedade e pobreza abjeta. Do ponto de vista das classes dominantes, os melhores governos são, sem dúvida, os autoritários que podem forçar o desmantelamento de sindicatos e reduzir salários, para competir no mercado internacional com a China. O desemprego seria estrutural; quaisquer projetos progressistas definitivamente abandonados. Em teoria, uma renda básica compensaria o desemprego permanente. Na prática, a economia se concentraria em torno do agronegócio e da extração mineral, com a maioria sem trabalho regular.

Esse é o quadro social que o governo Bolsonaro vem tentando impor ao Brasil. Mas aqui também encontramos a mesma instabilidade, avanço e recuo, na extrema direita. Embora tenha organizado manifestações pedindo o fechamento do Congresso, o presidente do Brasil desistiu da ideia de um golpe devido à falta de apoio. Seu filho senador está sendo julgado por desvio de verbas públicas, um caso que será ouvido no Supremo Tribunal Federal. No auge da pandemia, Bolsonaro pediu transferências mensais de 40 dólares para os desempregados. O Congresso triplicou a quantia em uma tarde.

Em vez de agitar sua horda de fanáticos, Bolsonaro agora distribui dinheiro e sinecuras para o pântano de congressistas da velha guarda e redes de clientelismo político conhecidas como "Centro". Os candidatos que ele apoiou nas eleições municipais de outubro de 2020 se saíram mal. Ele sabotou tentativas de desenvolver uma vacina para o vírus, que já matou 170.000 brasileiros. Ele desfrutou do apoio entusiasmado do capital financeiro, mas esse setor tem uma visão sombria do programa de apoio emergencial. E a boa vontade de Trump não conta mais.

No coração da América Latina, espalhando-se pelas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Brasil, está a Amazônia. O "pulmão do planeta", visto como um ativo natural indispensável por aqueles que observam apreensivamente o processo de mudança climática e colapso ambiental. E cobiçada avidamente por estados poderosos, empresas farmacêuticas gigantes, grandes proprietários de terras e criadores de gado, corporações multinacionais que plantam e colhem uma miríade de produtos agrícolas; por ONGs bem-intencionadas e por aqueles que fogem desesperadamente das cidades onde não há trabalho, que agem como a ponta de lança da incursão capitalista. Para eles também, a Amazônia ainda é resumida nas palavras de John Donne para sua amante: 'Ó minha América! minha terra-nova-descoberta... Quão abençoado sou ao descobrir-te!'

Traduzido por Max Stein

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