12 de dezembro de 2020

Como a ficção científica deu forma ao socialismo

De William Morris a Ursula K. Le Guin e Iain M. Banks, a ficção científica forneceu uma saída para pensadores socialistas – oferecendo aos leitores uma ruptura com o realismo capitalista e nos permitindo imaginar um mundo muito diferente.

Nick Hubble

Jacobin

A ficção científica utópica oferece uma nova maneira de pensar a história. (Ilustração de Chris Moore)

Tradução / O mais recente romance de Kim Stanley Robinson, The ministry for the future (“O Ministério Pelo Futuro”), desafia o domínio do realismo capitalista no Norte Global, estabelecendo uma história futura especulativa na qual a ação coletiva traz o fim do capitalismo e salva o mundo das mudanças climáticas. Ao imaginar uma alternativa ao status quo, Robinson continua uma longa e honrosa tradição de autores de ficção científica de esquerda que escrevem ficção utópica.

A tradição remonta pelo menos a Notícias de Lugar Nenhum (1890) de William Morris, que fala de uma revolução proletária que conduz a uma sociedade ideal sem pobreza ou opressão. De maneiras diferentes, Robinson e Morris compartilham uma visão da humanidade vivendo através do trabalho como uma atividade social que opera tanto na natureza quanto contra a natureza. Todas essas obras, e as de outros romancistas utópicos socialistas famosos que vão de H. G. Wells a Iain M. Banks, promovem a causa do socialismo ao fornecer aos leitores representações radicais da vida pós-capitalista que raramente existem em outros lugares na mídia.

A ficção científica utópica não apenas nos apresenta um projeto para o futuro: ela também oferece uma nova maneira de pensar sobre a história. A contracapa da última edição do Tribune cita Marx no sentido de que “A história mundial seria de fato fácil de fazer se a luta fosse travada apenas em circunstâncias favoráveis.” E se houvesse uma maneira conceitual de reformular as circunstâncias em que nos encontramos? E se parássemos de pensar tanto sobre a história em relação ao passado e começássemos a pensar a partir da perspectiva do futuro?

Em seu Imagined Futures (“Futuros Imaginados”, 2019), Max Saunders descreve o surgimento na Grã-Bretanha do entreguerras (1918-1939) de uma “história futura”, uma história do presente e de seu futuro imediato escrita a partir do ponto de vista de um futuro distante imaginado. Um exemplo é o cientista e intelectual comunista J. B. S. Haldane, que escreveu uma seção de seu livro Daedalus; or, Science and the Future (“Dédalo: ou Ciência e o Futuro”, 1923) na forma de um ensaio onde um estudante de 2073 descreve como os desenvolvimentos biológicos, tal como o crescimento de embriões fora do corpo da mãe, se tornaram uma prática generalizada.

Haldane apresentou uma previsão da transformação completa das relações sexuais convencionais como uma simples questão de fato; ao adotar uma perspectiva futura e ver seu presente como um estágio da história que seria superado, ele se libertou da bússola moral restritiva da tradição e do passado.

A irmã de Haldane, Naomi Mitchison, aplicou uma lógica semelhante a sua ficção científica feminista. Sua descrição de We Have Been Warned (“Fomos Avisados”, 1935) como um “romance histórico sobre meus próprios tempos” implica que ela também estava pensando sobre seu presente pela perspectiva de uma sociedade mais progressista no futuro. A descrição do romance de uma tomada fascista da Inglaterra alertou os leitores sobre a necessidade de uma transformação das relações de classe e gênero, a fim de evitar esse destino e, em vez disso, trazer um futuro antecipado em que todos seriam iguais.

Essa ideia – de que as necessidades da sociedade futura superam as das sociedades passadas e atuais – foi desenvolvida em um princípio ético por meio de uma analogia com a ação industrial. Mitchison observou que havia uma tendência pública de ver as greves em andamento ou campanhas políticas como atos agressivos ou hostis contra a ordem social existente; tais lutas só se tornavam retrospectivamente legítimas por meio da compreensão comum de que elas resultaram em melhorias nas condições de vida.

Portanto, argumentou-se na época, os socialistas deveriam representar os valores do futuro utópico como eticamente bons e as práticas da classe capitalista como um ato hostil contra essa “boa sociedade” do futuro. Esse senso de ficção científica de um futuro pelo qual vale a pena lutar, celebrado pela política cultural de esquerda dos anos 1930, sustentou a contribuição decisiva dos trabalhadores britânicos para a Segunda Guerra Mundial e levou em parte à eleição do governo trabalhista em 1945.

O modelo para esse futuro progressista em grande parte da ficção de esquerda do período entreguerras era a União Soviética pré-Julgamentos-Espetáculo (os Processos de Moscou), como representado em We Have Been Warned dpel perspectiva de mulheres trabalhadoras emancipadas que gozam do direito de controlar se e com quem elas têm filhos. (As contribuições de Mitchison para debates sobre libertação e controle de natalidade, no entanto, devem ser advertidas pela consciência de seu envolvimento com a Sociedade Eugênica.)

Em seu livro de não-ficção, The Moral Basis of Politics (“A Base Moral da Política”, 1938), Mitchison argumentou que a moralidade sexual tradicional estava enraizada em uma economia de escassez e que a liberdade e a igualdade só se tornariam a norma quando todas as necessidades materiais fossem satisfeitas. Ela, portanto, previu que o sucesso ou fracasso final da União Soviética dependeria de sua capacidade de estabelecer uma sociedade pós-escassez.

No final das contas, a URSS fracassou, mas a história desse fracasso é muito mais interessante e instrutiva do que jamais foi reconhecido pelos seus oponentes. O criativo documentário de Francis Spufford sobre essa tentativa soviética de atender a todas as necessidades cientificamente, Red Plenty (“Abundância Vermelha”, 2010), já foi descrito como o equivalente a um romance de ficção científica de Robinson ou Ursula Le Guin.

De forma mais geral, a ideia de uma sociedade utópica pós-escassez constitui a estrutura para o corpo mais robusto de ficção científica socialista nos últimos anos: a série Culture, de Iain M. Banks (1987–2012). Juntos, esses romances constituem um extenso exame sobre a ética da intervenção das forças socialistas destinadas a manobrar Estados tradicionalmente hierárquicos para emancipar seus povos. Ao escrever a partir da perspectiva histórica futura de inteligências artificiais chamada de “Minds” (ou “Mentes”), Banks retira do seu centro a ideologia liberal clássica que hoje domina as discussões sobre intervenções humanitárias e a substitui por uma análise fundamentada dos valores políticos em jogo.

O escopo desse tipo de space opera também funciona para demonstrar as limitações dos valores da classe dominante. Como o crítico Fredric Jameson apontou, o romance tradicional é uma forma literária burguesa estruturalmente dependente de uma resolução formal, como a entrada de uma das heroínas de Jane Austen em um contrato de casamento, que mantém as relações de propriedade e da ordem social.

Em contraste, a ficção científica é um gênero que ousadamente deseja ir além desse tipo de restrição. Ao deslocar a escala de ação dos confins da vida moderna, definida pelas circunstâncias do nascimento e oportunidades de trabalho, para um universo infinito, ela abre uma exploração de possibilidades individuais e sociais sem limites; depois de ver raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portão Tannhäuser, não há como voltar à vida passiva do capitalismo tardio.

O que encontramos em mais de um século de ficção científica socialista é um guia para algumas das mudanças de perspectiva necessárias para nos libertarmos das restrições ideológicas do presente e continuarmos com a tarefa de fazer a história. Esses romances oferecem não apenas esperança e inspiração para tempos difíceis, mas também um renovado senso de admiração sobre o que uma verdadeira sociedade de iguais poderia alcançar.

Sobre o autor

Nick Hubble é professor de inglês moderno e contemporâneo na Brunel University. Seu último trabalho, Growing Old with the Welfare State, foi publicado pela Bloomsbury.

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