28 de dezembro de 2020

A década do descontentamento

Do lado positivo, a demonização da política parece ter arrefecido e, talvez, seja possível elaborar novo consenso para evitar mais uma década perdida

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo

Nelson Barbosa foi ministro da Fazenda entre dezembro de 2015 e maio de 2016. Ilustração Luciano Veronezi

A economia brasileira teve outra década perdida. Segundo estimativa de colegas do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), em 2011-20, o “crescimento” médio da renda por habitante deve ser negativo em 0,6% ao ano.

O número é o mesmo registrado nos anos 1980, quando sofremos os efeitos da crise da dívida externa e da alta inflação herdadas da ditadura militar. Por quê? A resposta não é simples, mas tentarei resumir.

Começamos os anos 2010 no embalo do bom desempenho anterior. Era a época do “Brasil de Todos”, petróleo como passaporte para o futuro e preparação para sediar Copa do Mundo e Olimpíada.

Na política econômica, o foco do triênio 2011-13 foi promover “inclusão da porta para fora”. Como já haviam ocorrido grandes ganhos sociais via transferência de renda e elevação do salário mínimo, era necessário avançar na oferta de serviços públicos universais (educação, saúde, habitação, transporte e segurança).

Porém, em contraste com as ambições brasileiras, o cenário internacional começou a piorar em 2011, devido a turbulências nos Estados Unidos (Obama versus republicanos), Europa (as “tragédias gregas”) e China (desaceleração de crescimento). Ainda assim o governo brasileiro tentou manter o ritmo anterior de expansão.

Do lado monetário, houve medidas de controle de crédito e preços para combater a inflação sem grande elevação da Selic. Do lado fiscal, houve operações não recorrentes para compatibilizar metas fiscais pedidas pelo mercado com demandas sociais da população. Não deu certo (autocrítica). A inflação permaneceu alta, a renda desacelerou, a situação fiscal ficou mais frágil e, como acontece no fim de uma bonança, a população foi às ruas em protesto.

O triênio 2014-16 foi o período do “nós contra eles”. A situação internacional piorou ainda mais e contribuiu para 40% da grande recessão daquele período. Os outros 60% foram internos, resultado de erros da política econômica e conflitos políticos.

Na economia, a eleição de 2014 adiou ajustes fiscais e monetários inevitáveis, que acabaram sendo feitos em excesso ao longo de 2015 (outra autocrítica). Quando o governo procurou corrigir a situação, em 2016, o clima político atrasou novamente os ajustes.

Na política, depois de perder quatro eleições seguidas, a oposição ao PT apelou a mecanismos não democráticos para chegar ao poder.

Em nome do combate à corrupção, houve destruição de empregos e empresas, no que hoje sabemos ter sido um projeto político de algumas pessoas. Houve, também, o “quanto pior melhor” por parte de grupos políticos desesperados com o avanço no combate à corrupção viabilizado pelos governos do PT.

O triênio de 2017-19 começou com alguma esperança, por parte daqueles que achavam que era só tirar o PT do governo, mas acabou em desilusão. Em um processo de “exclusão da porta para dentro”, a agenda do “Brasil de Todos” foi cancelada em prol de uma ponte para o passado, com retrocesso em várias conquistas sociais da década anterior e fragilização do mercado de trabalho.

Focando a política macroeconômica, tivemos consolidação fiscal prematura e atrasos na redução da Selic em 2017-19. A inflação despencou, mas à custa de lento crescimento do PIB e alto desemprego, gerando mais descontentamento da população. A demonização da política continuou forte e, em uma eleição censurada, o país escolheu um falso Messias.

Entramos em 2020 sem rumo e sofremos o impacto de um meteoro. A Covid-19 gerou parada súbita da economia e forçou o governo a adotar um grande programa de transferência de renda. A iniciativa deu certo, amenizou a crise e mostrou, mais uma vez, que apostar no “Brasil de Todos” funciona. Apesar disso, fechamos este ano com novas promessas de exclusão da porta para dentro.

Do lado positivo, a demonização da política parece ter arrefecido e, talvez, seja possível elaborar novo consenso para evitar mais uma década perdida. Nesse processo, nós, economistas, podemos contribuir apontando custos, benefícios e riscos de diferentes medidas, mas a solução será sempre mais política do que técnica. Boa nova década a todos nós!

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...