Trabalhadores na Índia começaram uma greve geral na semana passada que incluiu cerca de 250 milhões de pessoas, possivelmente a maior da história humana. Agora, eles estão se unindo aos fazendeiros para protestar contra a agenda pró-corporativa e de extrema direita de Narendra Modi.
Thomas Crowley
Greve geral na Índia em 26 de novembro. (IndustriALL Global Union / Flickr) |
Tradução / As greves gerais na era do primeiro-ministro indiano Narendra Modi têm uma qualidade estranhamente repetitiva. Inicialmente, os principais sindicatos nacionais – exceto aquele alinhado com o partido de extrema direita de Modi, o Partido Bharatiya Janata (BJP, ou “Partido do Povo Indiano”) – convocam uma greve geral de um ou dois dias, geralmente em resposta à última série de políticas anti-trabalhadores. Milhões de pessoas em todo o país saem às ruas em apoio. Os líderes da greve consideram a ação talvez a maior greve da história. A mídia de esquerda de fora do país sauda a greve, enquanto a grande mídia na Índia quase não a menciona. E então a vida aparentemente volta ao normal.
A greve geral da semana passada na Índia apresentou alguns desses componentes: o apelo dos sindicatos nacionais em resposta às políticas anti-trabalhadores do BJP; as reivindicações com comparecimento massivo (250 milhões de pessoas, neste caso); e a natureza limitada da greve. Mas como estamos em 2020, a paralisação de 26 de novembro também teve uma qualidade diferente. Em março, o governo usou a pandemia como desculpa para reprimir e limpar os últimos resquícios de protestos generalizados contra suas leis de cidadania discriminatórias. E então a visão de pessoas nas ruas em protesto foi uma exibição impressionante.
Ainda mais importante, a greve geral convergiu com uma marcha lançada por um amplo grupo de organizações de agricultores, todas planejando chegar à capital Delhi. As redes sociais foram repentinamente inundadas com imagens de agricultores usando tratores e caminhões para derrubar as barreiras erguidas pela polícia para mantê-los fora da cidade. Em um vídeo, um manifestante explicou enfaticamente a um policial nas barricadas: “isso aqui é uma revolução, senhor”.
O governo, reconhecendo a determinação dos manifestantes, concedeu-lhes permissão para realizar um protesto em um ponto distante de Delhi, longe dos centros de poder da cidade. Embora alguns agricultores tenham ido parar no local oficial do protesto, a maioria rejeitou a oferta e permaneceu na periferia, com alguns dizendo que trouxeram alimentos e mantimentos suficientes para ficar por meses. Não era apenas um ato simbólico de um dia. A partir de terça-feira, o governo central começou a se reunir com líderes sindicais dos agricultores, mas os manifestantes dizem que continuarão acampando na periferia até que suas reivindicações sejam atendidas.
Em muitos aspectos, a marcha de Delhi foi a continuação dos protestos que eclodiram em setembro, quando o Legislativo Nacional controlado pelo BJP aprovou três projetos de lei polêmicos que pretendiam abrir o setor agrícola a grandes interesses financeiros e corporativos. Os agricultores temem que a legislação seja um prelúdio para o governo desmantelar o antigo sistema de preços mínimos de suporte (MSP), que fornece alguma estabilidade aos agricultores ao estabelecer o preço pelo qual o governo compra uma variedade de safras.
O governo talvez tenha pensado que poderia fazer passar os projetos de lei sorrateiramente em meio ao caos da COVID (a Índia tinha acabado de ultrapassar o Brasil em casos da COVID naquele mês), mas a aprovação das leis gerou um clamor generalizado, à medida que os agricultores condenavam o aprofundamento das reformas neoliberais no setor agrícola. Os protestos se espalharam por todo o país, mas foram mais fortes em Punjab e Haryana, ricos estados do norte que já foram o marco zero para a Revolução Verde da Índia. Os líderes do protesto geralmente vinham de ricas origens camponesas, embora as manifestações obtivessem amplo apoio de todas as classes do setor agrícola.
Os movimentos dos agricultores sempre foram um tópico preocupante na esquerda marxista, inclusive na Índia. Voltando a Lenin, Kautsky e ao próprio Marx, os esquerdistas têm debatido a “questão agrária”, às vezes com a suposição de que o camponês é uma relíquia histórica, um resquício do feudalismo fadado a “desaparecer”, à medida que as relações capitalistas penetram no mundo agrário. Contudo, as muitas décadas de desenvolvimento capitalista na Índia têm colocado em questionão essa suposição, com o campesinato permanecendo obstinadamente uma categoria central da economia do país.
Muitas vezes divididos em categorias de camponeses ricos, médios e pobres, todos esses grupos estão unidos em seu papel de proprietários de terras e produtores de commodities para o mercado, embora aqueles na extremidade mais pobre do espectro muitas vezes combinem esse trabalho com trabalho assalariado, inclusive nas fazendas de outros camponeses. Como os economistas Amit Basole e Deepankar Basu observam em um documento de trabalho de 2011, “a coexistência de trabalho assalariado e da produção de pequenas mercadorias, em que trabalhadores sem terra, agricultores marginais e pequenos agricultores participam de ambos, em um como trabalho livre e no outro como proprietário-produtor, tem complicado a tarefa da política revolucionária.”
Essas complicações surgiram na década de 1980, quando a Índia começou a se mover em direção ao neoliberalismo. À medida que os termos de troca passavam a desfavorecer a agricultura, “movimentos de novos agricultores” surgiram em todo o país, principalmente em torno das demandas por preços mais altos para mercadorias agrícolas. Muitos marxistas da época os consideraram movimentos compostos por camponeses ricos que exploravam o proletariado agrário na base. Outros discordaram, reconhecendo a estratificação dentro do campesinato, mas argumentando que a vasta maioria dos agricultores sofria com o neoliberalismo.
Em seu artigo, Basole e Basu analisaram cinco décadas de dados econômicos e demográficos para determinar os mecanismos precisos de exploração capitalista operando na Índia. No setor agrícola, observam, “a diferenciação de classes está ocorrendo, embora de forma diferente do caso europeu. A diferenciação que está ocorrendo na Índia rural é mais entre uma pequena nobreza rural heterogênea e uma pobreza rural heterogênea, do que entre capitalista e trabalhador.”
A extremidade mais pobre desse setor dedica-se ao trabalho assalariado e, portanto, é explorada no sentido marxista clássico. No entanto, muitos pequenos produtores de mercadorias, e não apenas os mais pobres, enfrentam aquilo que Basole e Basu chamam de “extração de excedente por meio de troca desigual”. Nesse ambiente, “os comerciantes conseguem sistematicamente garantir o desvio dos preços […] dos valores de trabalho subjacentes, devido à sua posição de monopólio nesses mercados.”
“Do ponto de vista da classe trabalhadora”, escrevem eles, “é difícil identificar onde termina a extração de excedentes por meio de troca desigual e onde começa a extração por meio do trabalho assalariado”. Além disso, pequenos e grandes agricultores estão presos em ciclos de dívidas, alimentando a terrível crise de suicídios de agricultores na Índia (uma crise que a pandemia apenas exacerbou).
Isso ajuda a explicar por que os atuais protestos dos agricultores, embora liderados principalmente pelo campesinato rico, encontraram apoio generalizado além dos estratos superiores da sociedade agrária. Enquanto classe e casta dividem o campesinato mais amplo, a virada neoliberal criou aberturas para alianças entre classes e castas na esfera agrária. E com a intervenção de sindicatos em sintonia com as necessidades dos mais explorados – trabalhadores agrícolas, proprietários marginais, castas oprimidas – os movimentos de agricultores podem ser pressionados a exigir mudanças mais radicais.
A presença de fazendeiros ricos nesses movimentos, então, deve ser vista menos como uma barreira intransponível para a organização da esquerda do que como um desafio a ser enfrentado com flexibilidade e atenção aos ventos políticos e econômicos mutantes. Nos últimos anos, a esquerda adotou esse tipo de abordagem flexível para a organização agrária; apesar de seus capitais eleitorais em declínio, o Partido Comunista da Índia (Marxista), ou CPM, desempenhou um papel importante em uma marcha maciça de agricultores em 2018, que ajudou a inaugurar a atual rodada de protestos de agricultores militantes.
Mesmo na esfera eleitoral, os partidos comunistas estão, pelo menos em alguns lugares, mostrando flexibilidade e habilidade política semelhantes. Nas recentes eleições no estado de Bihar, não apenas os principais partidos comunistas (o CPM e o Partido Comunista da Índia, ou CPI), mas também o mais radical CPI (ML) Libertação – um partido com raízes no movimento Naxalbari, de inspiração maoísta, que começou a liderar lutas muitas vezes violentas contra sistemas extremamente regressivos de propriedade e exploração – formaram uma coalizão eleitoral com outros partidos anti-BJP.
Flexibilidade nem sempre foi o forte da esquerda indiana. Em 1996, em um evento ainda conhecido como o “erro histórico”, o CPM recusou uma oferta da cadeira do primeiro-ministro de uma coalizão anti-BJP depois que as eleições nacionais produziram um parlamento suspenso. Portanto, as recentes eleições em Bihar representaram um início renovador.
Evitando o purismo ideológico, os três partidos comunistas se juntaram a uma coalizão liderada por Tejashwi Yadav do Rashtriya Janata Dal (RJD – ou “Partido Nacional do Povo”), um partido que tem buscado consolidar os votos das castas inferiores daquele estado com uma mensagem de justiça social. Yadav se recusou a permitir que o BJP definisse os termos do debate ao longo de linhas nacionalistas hindus e, ao invés disso, enfatizou as questões básicas que o BJP não cumpriu, especialmente o emprego. A mensagem ressoou com os eleitores em Bihar, bem como com as campanhas dos partidos comunistas.
No final, a coalizão do BJP venceu a eleição, em parte porque a campanha de Yadav, embora extremamente popular, começou tarde demais. Ainda assim, os partidos comunistas, e especialmente o CPI (ML) Libertação, tiveram um desempenho excepcionalmente bom, com o último ganhando doze das dezenove cadeiras que disputou.
Alguns atribuíram esse resultado ao pragmatismo da esquerda em aderir a uma popular coalizão de oposição, mas outros apontaram para as raízes profundas e quadros dedicados, especialmente do CPI (ML) Libertação. À medida que o partido emergia da clandestinidade e entrava na política eleitoral, manteve suas estreitas conexões de base com os grupos oprimidos com os quais lutou por muito tempo.
Entre os partidos comunistas, o Libertação está particularmente atento às questões de casta, em parte porque as batalhas que travaram pelos trabalhadores agrícolas foram simultaneamente lutas pela dignidade dos dalits (aqueles anteriormente considerados “intocáveis”), que constituem a maior parte do proletariado nós habitantes rurais. Como observou o líder anti-casta Jignesh Mevani, “na eleição de Bihar, [o Libertação] não apresentou um único candidato da casta superior, mudando a noção popular da liderança brâmane … na esquerda.”
Esses lampejos de esperança não significam que um ressurgimento da esquerda seja inevitável. Apesar das enormes devastações sociais, econômicas e de saúde da pandemia, Modi ainda goza de ampla popularidade – em parte porque, ao contrário de seus colegas reacionários Trump e Bolsonaro, Modi enfatizou consistentemente a gravidade da epidemia, ao mesmo tempo que a enquadrou como uma calamidade natural fora de seu ao controle. Essa retórica obscurece não apenas as décadas de desinvestimento neoliberal na saúde pública (que o governo do BJP aprofundou), mas também o próprio anúncio desastrosamente míope e abrupto de lockdown por Modi (que deixou sem trabalho milhões de trabalhadores migrantes, os obrigando a realizar árduas jornadas de volta às suas aldeias natais).
Porém, de maneira hábil, Modi aplicou a linguagem do sacrifício compartilhado, invocando a mitologia hindu e comparando os cidadãos que lutam contra a COVID aos guerreiros do antigo épico Mahabharata. Os resultados da eleição de Bihar sugerem que sua imagem não foi arranhada pela maneira com que lidou com a pandemia, embora o estado seja o lar de muitos trabalhadores migrantes cujas vidas foram destruídas pelo súbito lockdown. E, pelo menos na frente eleitoral, não surgiram alternativas convincentes em nível nacional para o BJP.
No entanto, como observou certa vez a filósofa Isabelle Stengers, “a esperança é a diferença entre probabilidade e possibilidade”. A greve geral, o movimento dos agricultores, a eleição de Bihar – todos oferecem a possibilidade, senão a probabilidade, de lutar contra o domínio da direita indiana e de navegar pelas ambiguidades da política de classes da Índia para costurar uma coalizão por mudanças transformadoras.
Sobre o autor
Thomas Crowley é doutorando em Geografia na Rutgers University e autor do livro Fractured Forest, Quartzite City: A History of Delhi and Its Ridge.
A greve geral da semana passada na Índia apresentou alguns desses componentes: o apelo dos sindicatos nacionais em resposta às políticas anti-trabalhadores do BJP; as reivindicações com comparecimento massivo (250 milhões de pessoas, neste caso); e a natureza limitada da greve. Mas como estamos em 2020, a paralisação de 26 de novembro também teve uma qualidade diferente. Em março, o governo usou a pandemia como desculpa para reprimir e limpar os últimos resquícios de protestos generalizados contra suas leis de cidadania discriminatórias. E então a visão de pessoas nas ruas em protesto foi uma exibição impressionante.
Ainda mais importante, a greve geral convergiu com uma marcha lançada por um amplo grupo de organizações de agricultores, todas planejando chegar à capital Delhi. As redes sociais foram repentinamente inundadas com imagens de agricultores usando tratores e caminhões para derrubar as barreiras erguidas pela polícia para mantê-los fora da cidade. Em um vídeo, um manifestante explicou enfaticamente a um policial nas barricadas: “isso aqui é uma revolução, senhor”.
O governo, reconhecendo a determinação dos manifestantes, concedeu-lhes permissão para realizar um protesto em um ponto distante de Delhi, longe dos centros de poder da cidade. Embora alguns agricultores tenham ido parar no local oficial do protesto, a maioria rejeitou a oferta e permaneceu na periferia, com alguns dizendo que trouxeram alimentos e mantimentos suficientes para ficar por meses. Não era apenas um ato simbólico de um dia. A partir de terça-feira, o governo central começou a se reunir com líderes sindicais dos agricultores, mas os manifestantes dizem que continuarão acampando na periferia até que suas reivindicações sejam atendidas.
Em muitos aspectos, a marcha de Delhi foi a continuação dos protestos que eclodiram em setembro, quando o Legislativo Nacional controlado pelo BJP aprovou três projetos de lei polêmicos que pretendiam abrir o setor agrícola a grandes interesses financeiros e corporativos. Os agricultores temem que a legislação seja um prelúdio para o governo desmantelar o antigo sistema de preços mínimos de suporte (MSP), que fornece alguma estabilidade aos agricultores ao estabelecer o preço pelo qual o governo compra uma variedade de safras.
O governo talvez tenha pensado que poderia fazer passar os projetos de lei sorrateiramente em meio ao caos da COVID (a Índia tinha acabado de ultrapassar o Brasil em casos da COVID naquele mês), mas a aprovação das leis gerou um clamor generalizado, à medida que os agricultores condenavam o aprofundamento das reformas neoliberais no setor agrícola. Os protestos se espalharam por todo o país, mas foram mais fortes em Punjab e Haryana, ricos estados do norte que já foram o marco zero para a Revolução Verde da Índia. Os líderes do protesto geralmente vinham de ricas origens camponesas, embora as manifestações obtivessem amplo apoio de todas as classes do setor agrícola.
Os movimentos dos agricultores sempre foram um tópico preocupante na esquerda marxista, inclusive na Índia. Voltando a Lenin, Kautsky e ao próprio Marx, os esquerdistas têm debatido a “questão agrária”, às vezes com a suposição de que o camponês é uma relíquia histórica, um resquício do feudalismo fadado a “desaparecer”, à medida que as relações capitalistas penetram no mundo agrário. Contudo, as muitas décadas de desenvolvimento capitalista na Índia têm colocado em questionão essa suposição, com o campesinato permanecendo obstinadamente uma categoria central da economia do país.
Muitas vezes divididos em categorias de camponeses ricos, médios e pobres, todos esses grupos estão unidos em seu papel de proprietários de terras e produtores de commodities para o mercado, embora aqueles na extremidade mais pobre do espectro muitas vezes combinem esse trabalho com trabalho assalariado, inclusive nas fazendas de outros camponeses. Como os economistas Amit Basole e Deepankar Basu observam em um documento de trabalho de 2011, “a coexistência de trabalho assalariado e da produção de pequenas mercadorias, em que trabalhadores sem terra, agricultores marginais e pequenos agricultores participam de ambos, em um como trabalho livre e no outro como proprietário-produtor, tem complicado a tarefa da política revolucionária.”
Essas complicações surgiram na década de 1980, quando a Índia começou a se mover em direção ao neoliberalismo. À medida que os termos de troca passavam a desfavorecer a agricultura, “movimentos de novos agricultores” surgiram em todo o país, principalmente em torno das demandas por preços mais altos para mercadorias agrícolas. Muitos marxistas da época os consideraram movimentos compostos por camponeses ricos que exploravam o proletariado agrário na base. Outros discordaram, reconhecendo a estratificação dentro do campesinato, mas argumentando que a vasta maioria dos agricultores sofria com o neoliberalismo.
Em seu artigo, Basole e Basu analisaram cinco décadas de dados econômicos e demográficos para determinar os mecanismos precisos de exploração capitalista operando na Índia. No setor agrícola, observam, “a diferenciação de classes está ocorrendo, embora de forma diferente do caso europeu. A diferenciação que está ocorrendo na Índia rural é mais entre uma pequena nobreza rural heterogênea e uma pobreza rural heterogênea, do que entre capitalista e trabalhador.”
A extremidade mais pobre desse setor dedica-se ao trabalho assalariado e, portanto, é explorada no sentido marxista clássico. No entanto, muitos pequenos produtores de mercadorias, e não apenas os mais pobres, enfrentam aquilo que Basole e Basu chamam de “extração de excedente por meio de troca desigual”. Nesse ambiente, “os comerciantes conseguem sistematicamente garantir o desvio dos preços […] dos valores de trabalho subjacentes, devido à sua posição de monopólio nesses mercados.”
“Do ponto de vista da classe trabalhadora”, escrevem eles, “é difícil identificar onde termina a extração de excedentes por meio de troca desigual e onde começa a extração por meio do trabalho assalariado”. Além disso, pequenos e grandes agricultores estão presos em ciclos de dívidas, alimentando a terrível crise de suicídios de agricultores na Índia (uma crise que a pandemia apenas exacerbou).
Isso ajuda a explicar por que os atuais protestos dos agricultores, embora liderados principalmente pelo campesinato rico, encontraram apoio generalizado além dos estratos superiores da sociedade agrária. Enquanto classe e casta dividem o campesinato mais amplo, a virada neoliberal criou aberturas para alianças entre classes e castas na esfera agrária. E com a intervenção de sindicatos em sintonia com as necessidades dos mais explorados – trabalhadores agrícolas, proprietários marginais, castas oprimidas – os movimentos de agricultores podem ser pressionados a exigir mudanças mais radicais.
A presença de fazendeiros ricos nesses movimentos, então, deve ser vista menos como uma barreira intransponível para a organização da esquerda do que como um desafio a ser enfrentado com flexibilidade e atenção aos ventos políticos e econômicos mutantes. Nos últimos anos, a esquerda adotou esse tipo de abordagem flexível para a organização agrária; apesar de seus capitais eleitorais em declínio, o Partido Comunista da Índia (Marxista), ou CPM, desempenhou um papel importante em uma marcha maciça de agricultores em 2018, que ajudou a inaugurar a atual rodada de protestos de agricultores militantes.
Mesmo na esfera eleitoral, os partidos comunistas estão, pelo menos em alguns lugares, mostrando flexibilidade e habilidade política semelhantes. Nas recentes eleições no estado de Bihar, não apenas os principais partidos comunistas (o CPM e o Partido Comunista da Índia, ou CPI), mas também o mais radical CPI (ML) Libertação – um partido com raízes no movimento Naxalbari, de inspiração maoísta, que começou a liderar lutas muitas vezes violentas contra sistemas extremamente regressivos de propriedade e exploração – formaram uma coalizão eleitoral com outros partidos anti-BJP.
Flexibilidade nem sempre foi o forte da esquerda indiana. Em 1996, em um evento ainda conhecido como o “erro histórico”, o CPM recusou uma oferta da cadeira do primeiro-ministro de uma coalizão anti-BJP depois que as eleições nacionais produziram um parlamento suspenso. Portanto, as recentes eleições em Bihar representaram um início renovador.
Evitando o purismo ideológico, os três partidos comunistas se juntaram a uma coalizão liderada por Tejashwi Yadav do Rashtriya Janata Dal (RJD – ou “Partido Nacional do Povo”), um partido que tem buscado consolidar os votos das castas inferiores daquele estado com uma mensagem de justiça social. Yadav se recusou a permitir que o BJP definisse os termos do debate ao longo de linhas nacionalistas hindus e, ao invés disso, enfatizou as questões básicas que o BJP não cumpriu, especialmente o emprego. A mensagem ressoou com os eleitores em Bihar, bem como com as campanhas dos partidos comunistas.
No final, a coalizão do BJP venceu a eleição, em parte porque a campanha de Yadav, embora extremamente popular, começou tarde demais. Ainda assim, os partidos comunistas, e especialmente o CPI (ML) Libertação, tiveram um desempenho excepcionalmente bom, com o último ganhando doze das dezenove cadeiras que disputou.
Alguns atribuíram esse resultado ao pragmatismo da esquerda em aderir a uma popular coalizão de oposição, mas outros apontaram para as raízes profundas e quadros dedicados, especialmente do CPI (ML) Libertação. À medida que o partido emergia da clandestinidade e entrava na política eleitoral, manteve suas estreitas conexões de base com os grupos oprimidos com os quais lutou por muito tempo.
Entre os partidos comunistas, o Libertação está particularmente atento às questões de casta, em parte porque as batalhas que travaram pelos trabalhadores agrícolas foram simultaneamente lutas pela dignidade dos dalits (aqueles anteriormente considerados “intocáveis”), que constituem a maior parte do proletariado nós habitantes rurais. Como observou o líder anti-casta Jignesh Mevani, “na eleição de Bihar, [o Libertação] não apresentou um único candidato da casta superior, mudando a noção popular da liderança brâmane … na esquerda.”
Esses lampejos de esperança não significam que um ressurgimento da esquerda seja inevitável. Apesar das enormes devastações sociais, econômicas e de saúde da pandemia, Modi ainda goza de ampla popularidade – em parte porque, ao contrário de seus colegas reacionários Trump e Bolsonaro, Modi enfatizou consistentemente a gravidade da epidemia, ao mesmo tempo que a enquadrou como uma calamidade natural fora de seu ao controle. Essa retórica obscurece não apenas as décadas de desinvestimento neoliberal na saúde pública (que o governo do BJP aprofundou), mas também o próprio anúncio desastrosamente míope e abrupto de lockdown por Modi (que deixou sem trabalho milhões de trabalhadores migrantes, os obrigando a realizar árduas jornadas de volta às suas aldeias natais).
Porém, de maneira hábil, Modi aplicou a linguagem do sacrifício compartilhado, invocando a mitologia hindu e comparando os cidadãos que lutam contra a COVID aos guerreiros do antigo épico Mahabharata. Os resultados da eleição de Bihar sugerem que sua imagem não foi arranhada pela maneira com que lidou com a pandemia, embora o estado seja o lar de muitos trabalhadores migrantes cujas vidas foram destruídas pelo súbito lockdown. E, pelo menos na frente eleitoral, não surgiram alternativas convincentes em nível nacional para o BJP.
No entanto, como observou certa vez a filósofa Isabelle Stengers, “a esperança é a diferença entre probabilidade e possibilidade”. A greve geral, o movimento dos agricultores, a eleição de Bihar – todos oferecem a possibilidade, senão a probabilidade, de lutar contra o domínio da direita indiana e de navegar pelas ambiguidades da política de classes da Índia para costurar uma coalizão por mudanças transformadoras.
Sobre o autor
Thomas Crowley é doutorando em Geografia na Rutgers University e autor do livro Fractured Forest, Quartzite City: A History of Delhi and Its Ridge.
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