Laura Carvalho
Em 2020, o choque de realidade se impôs a tempo de mover as peças na sociedade e no Congresso para que o Brasil se alinhasse ao resto do mundo na resposta à crise pela aprovação do auxílio emergencial, das transferências para estados e municípios e de uma série de outras medidas que custaram ao todo mais de 8% do PIB aos cofres públicos —patamar superior à média de 5,9% do PIB destinada ao combate à crise no conjunto de 183 países da base de dados do Monitor Fiscal do FMI.
Não foram, portanto, as energias cósmicas liberadas pelas sucessivas previsões otimistas do ministro Paulo Guedes que fizeram com que a economia brasileira chegasse a este mês de dezembro com expectativas de queda anual do PIB girando em torno de 5%, em vez dos 6,5% previstos no meio do ano.
A crise só não foi ainda mais profunda no país porque a pandemia provocou uma ruptura temporária na (falta de) agenda do Ministério da Economia, trazendo de volta o papel estabilizador e protetor do Estado brasileiro.
Como tratei no livro “Curto-circuito: O Vírus e a Volta do Estado” (Todavia), lançado em junho, abriu-se nesse contexto uma oportunidade para que esses papéis fossem repensados e aprimorados a curto e a longo prazos, o que envolveria tanto a formulação de um plano de recuperação econômica inclusiva para os próximos anos quanto o redesenho de nossos sistemas de transferências de renda e tributos, de regras fiscais, de saúde e de outras áreas e lacunas sobre as quais a pandemia lançou luz.
O problema é que a equipe econômica teima em considerar que a recuperação não depende em nada de sua atuação. Afinal, se acreditavam que a tal “dinâmica própria de crescimento” não seria afetada nem por uma das maiores crises globais da história, por que raios se preocupariam com os efeitos da retirada abrupta de um auxílio emergencial que injetou mais de 3% do PIB na economia em 2020?
Agravam nosso quadro o fato de a economia brasileira já viver um processo de semiestagnação com elevação das desigualdades desde a crise de 2015-16; o adiamento da retomada de setores de serviços intensivos em mão de obra, em razão das novas ondas de contágio; o fim da estabilidade no emprego garantida aos trabalhadores que tiveram seus contratos suspensos ou reduzidos em 2020; a redução do número de postos de trabalho causada pelo fechamento definitivo de centenas de milhares de pequenas empresas em meio à insuficiência e à inadequação das linhas de crédito criadas nos primeiros meses da pandemia; e, finalmente, a falta de espaço no Orçamento de 2021 até mesmo para a compra em quantidade suficiente de nossa maior, para não dizer única, fonte de esperança de retomada mais robusta: a vacina.
De um lado, há os que enxergam riscos elevados e um potencial descontrole inflacionário associados ao forte aumento do endividamento público em 2020 e defendem, portanto, um retorno imediato à agenda de corte de despesas obrigatórias que vigorava no país desde 2016.
De outro, há os que consideram que um ajuste rápido e prematuro que inviabilize a expansão de gastos sociais em um contexto de desigualdades crescentes e alta fragilidade econômica pode prejudicar nossas possibilidades de recuperação e até mesmo levar o país ao colapso social.
Não à toa, a incompatibilidade entre expandir gastos sociais e preservar o atual desenho do teto de gastos transformou-se em um impasse no Congresso, que passou a ter dificuldades de aprovar o Orçamento de 2021.
Nesse contexto, uma primeira pergunta a ser respondida é: a que tipo de risco estaríamos sujeitos caso optássemos por destinar recursos adicionais para a saúde, para as transferências de renda e para outros itens considerados prioritários em um plano de recuperação pós-pandemia?
A forte alta do endividamento público brasileiro passou longe de fugir à regra em meio à crise causada pela Covid-19 ao redor do mundo: a dívida pública global chegará em 2020 a um recorde de 100% do PIB mundial.
O ministro da Economia, Paulo Guedes (esq.), e o presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto. Pedro Ladeira/Folhapress |
“Eu achava que seria um crescimento em V tipo Nike, uma volta devagar, inclinada, que vai subindo lentamente. Pois bem, o que está acontecendo é uma volta em V mesmo, com uma subida rápida”, vibrava o ministro da Economia, Paulo Guedes, em audiência virtual do Congresso em 29 de outubro.
Resgatada pela Secretaria de Comunicação do governo logo após a recente divulgação do PIB do terceiro trimestre, a frase poderia até nos contagiar, caso o autor não tivesse proferido outra de mesmo gênero logo após a chegada da pandemia ao Brasil, em 16 de março: “Nós temos uma dinâmica própria de crescimento, e o Brasil pode perfeitamente crescer 2% ou 2,5% com o mundo caindo”.
Quatro dias depois, o presidente Jair Bolsonaro assinava o decreto de calamidade pública que permitiu (juntamente com a PEC do Orçamento de guerra aprovada em seguida) que o Brasil se tornasse um dos países emergentes a gastar mais com a resposta à crise causada pela Covid-19, atenuando assim sua profundidade.
Resgatada pela Secretaria de Comunicação do governo logo após a recente divulgação do PIB do terceiro trimestre, a frase poderia até nos contagiar, caso o autor não tivesse proferido outra de mesmo gênero logo após a chegada da pandemia ao Brasil, em 16 de março: “Nós temos uma dinâmica própria de crescimento, e o Brasil pode perfeitamente crescer 2% ou 2,5% com o mundo caindo”.
Quatro dias depois, o presidente Jair Bolsonaro assinava o decreto de calamidade pública que permitiu (juntamente com a PEC do Orçamento de guerra aprovada em seguida) que o Brasil se tornasse um dos países emergentes a gastar mais com a resposta à crise causada pela Covid-19, atenuando assim sua profundidade.
O ministro da Economia, Paulo Guedes (esq.), e o presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 26.nov.2020/Folhapress
Em 2020, o choque de realidade se impôs a tempo de mover as peças na sociedade e no Congresso para que o Brasil se alinhasse ao resto do mundo na resposta à crise pela aprovação do auxílio emergencial, das transferências para estados e municípios e de uma série de outras medidas que custaram ao todo mais de 8% do PIB aos cofres públicos —patamar superior à média de 5,9% do PIB destinada ao combate à crise no conjunto de 183 países da base de dados do Monitor Fiscal do FMI.
Não foram, portanto, as energias cósmicas liberadas pelas sucessivas previsões otimistas do ministro Paulo Guedes que fizeram com que a economia brasileira chegasse a este mês de dezembro com expectativas de queda anual do PIB girando em torno de 5%, em vez dos 6,5% previstos no meio do ano.
A crise só não foi ainda mais profunda no país porque a pandemia provocou uma ruptura temporária na (falta de) agenda do Ministério da Economia, trazendo de volta o papel estabilizador e protetor do Estado brasileiro.
Como tratei no livro “Curto-circuito: O Vírus e a Volta do Estado” (Todavia), lançado em junho, abriu-se nesse contexto uma oportunidade para que esses papéis fossem repensados e aprimorados a curto e a longo prazos, o que envolveria tanto a formulação de um plano de recuperação econômica inclusiva para os próximos anos quanto o redesenho de nossos sistemas de transferências de renda e tributos, de regras fiscais, de saúde e de outras áreas e lacunas sobre as quais a pandemia lançou luz.
O problema é que a equipe econômica teima em considerar que a recuperação não depende em nada de sua atuação. Afinal, se acreditavam que a tal “dinâmica própria de crescimento” não seria afetada nem por uma das maiores crises globais da história, por que raios se preocupariam com os efeitos da retirada abrupta de um auxílio emergencial que injetou mais de 3% do PIB na economia em 2020?
Agravam nosso quadro o fato de a economia brasileira já viver um processo de semiestagnação com elevação das desigualdades desde a crise de 2015-16; o adiamento da retomada de setores de serviços intensivos em mão de obra, em razão das novas ondas de contágio; o fim da estabilidade no emprego garantida aos trabalhadores que tiveram seus contratos suspensos ou reduzidos em 2020; a redução do número de postos de trabalho causada pelo fechamento definitivo de centenas de milhares de pequenas empresas em meio à insuficiência e à inadequação das linhas de crédito criadas nos primeiros meses da pandemia; e, finalmente, a falta de espaço no Orçamento de 2021 até mesmo para a compra em quantidade suficiente de nossa maior, para não dizer única, fonte de esperança de retomada mais robusta: a vacina.
Diante do descolamento do discurso do ministro da Economia da realidade que nos espera, resta saber se o Congresso estará à altura desses desafios e tomará a iniciativa da agenda econômica de 2021 como fez em 2020. Para isso, no entanto, há um obstáculo adicional: ao contrário do que ocorreu quando o vírus chegou ao país, estamos hoje bem distantes de um consenso sobre os rumos apropriados da política econômica para o próximo ano.
De um lado, há os que enxergam riscos elevados e um potencial descontrole inflacionário associados ao forte aumento do endividamento público em 2020 e defendem, portanto, um retorno imediato à agenda de corte de despesas obrigatórias que vigorava no país desde 2016.
De outro, há os que consideram que um ajuste rápido e prematuro que inviabilize a expansão de gastos sociais em um contexto de desigualdades crescentes e alta fragilidade econômica pode prejudicar nossas possibilidades de recuperação e até mesmo levar o país ao colapso social.
Não à toa, a incompatibilidade entre expandir gastos sociais e preservar o atual desenho do teto de gastos transformou-se em um impasse no Congresso, que passou a ter dificuldades de aprovar o Orçamento de 2021.
Nesse contexto, uma primeira pergunta a ser respondida é: a que tipo de risco estaríamos sujeitos caso optássemos por destinar recursos adicionais para a saúde, para as transferências de renda e para outros itens considerados prioritários em um plano de recuperação pós-pandemia?
A forte alta do endividamento público brasileiro passou longe de fugir à regra em meio à crise causada pela Covid-19 ao redor do mundo: a dívida pública global chegará em 2020 a um recorde de 100% do PIB mundial.
No entanto, o último Monitor Fiscal do FMI projeta que, nas economias avançadas, essa dívida será estabilizada mesmo sem a necessidade de cortar gastos públicos ou elevar impostos, já que a previsão é que o custo médio da dívida (juros) continuará sendo inferior à taxa de crescimento do PIB desses países.
A recomendação do fundo de não retornar à austeridade no pós-pandemia acabou destoando do que foi aconselhado no mesmo relatório no pós-crise de 2008-09, dando o sinal verde para que países da Europa, da Ásia e os EUA do presidente eleito Joe Biden implementem seus novos pacotes de estímulo fiscal em 2021. Alemanha, França e Coréia, por exemplo, já anunciaram planos substantivos de recuperação verde e inclusiva para os próximos anos.
E no caso dos países periféricos? O FMI deixa claro que as economias com alta proporção de dívida pública denominada em moeda estrangeira se verão obrigadas a realizar um ajuste menos gradual que as demais.
No entanto, se o Brasil nem sequer está endividado em dólares —na verdade, conta com valores muito mais altos de reservas internacionais que de dívida pública externa—, por que o caminho escolhido no nosso caso teria de ser o do ajuste rápido via corte de gastos? A ideia de que com a gente é diferente vem sendo justificada no debate econômico doméstico com base em três elementos.
Primeiro, que a dívida mais alta na pandemia obrigou o governo brasileiro a emitir títulos com prazo de vencimento mais curto, dificultando sua rolagem. Segundo, que o real foi a moeda que mais se desvalorizou em 2020 entre as emergentes, o que seria consequência de uma percepção de risco maior da nossa dívida pelos investidores estrangeiros. Terceiro, que a taxa de inflação ficará acima do centro da meta em 2020 em razão desse aumento na dívida e correria o risco de sair totalmente de controle em 2021.
Começando pela primeira parte: é verdade que o governo encurtou os prazos da dívida, mas também conseguiu, com isso e graças à redução da taxa Selic, diminuir os juros pagos sobre ela. O custo médio da dívida pública federal chegou a ultrapassar 14% ao ano no início de 2016, mas caiu para 8,7% ao ano em agosto de 2019 e, novamente, para 6,1% em setembro de 2020.
Em outras palavras, a elevação de mais de 13 pontos percentuais em relação ao PIB da dívida bruta do governo, desde dezembro de 2019, foi acompanhada de uma redução de seu custo médio, facilitando sua estabilização.
Além disso, a maior percepção de risco dos investidores e a demanda menor por títulos públicos de longo prazo do governo brasileiro se devem também à forte incerteza nos mercados financeiros internacionais em meio à pandemia e, assim, à procura por ativos de maior liquidez. Porém, esse cenário externo já começou a ficar mais favorável com as notícias da vacina, a eleição de Joe Biden e o anúncio de pacotes fiscais que contribuirão para uma recuperação mais rápida da economia global.
Passando ao segundo argumento, não há evidência alguma de que a desvalorização mais forte do real em 2020 seja fruto de uma percepção maior do risco associado à nossa dívida pública. Afinal, se tomarmos o período que vai de 2001 a 2019, o real foi sistematicamente a mais volátil entre 15 moedas de países emergentes, seguido pela lira turca.
Em análise dos desvios padrões normalizados dessas moedas, Rodrigo Toneto mostrou que a volatilidade do real só não foi maior que a média em 4 dos 19 anos considerados —a diferença nessa variação em 2020 em relação a outras moedas ainda é inferior que em outros oito anos da amostra.
Além disso, a desvalorização do real frente às outras moedas foi maior nos primeiros três meses de 2020, antes mesmo dos gastos com a pandemia. Ou seja, a volatilidade maior do real é recorrente e parece ser fruto de fatores estruturais, ligados à institucionalidade de nosso mercado de câmbio, tema que está muito além do escopo desse artigo, e não de riscos conjunturais associados à nossa dívida. Aliás, a redução dos níveis de incerteza nos mercados globais mencionada anteriormente já trouxe uma valorização da moeda brasileira frente ao dólar nas últimas semanas.
Talvez por isso, muitos analistas tenham substituído os temores com a alta do dólar por um suposto risco de hiperinflação ao defender a necessidade de um forte ajuste fiscal já em 2021.
Só que, como destacado pelo próprio Banco Central em seus últimos relatórios, grande parte da aceleração da inflação nos últimos meses decorre da forte alta do dólar até outubro: como de praxe, a elevação dos custos com insumos importados e a maior facilidade de competir com produtos estrangeiros acabam fazendo com que o dólar mais alto seja repassado para preços de bens industrializados domésticos dois ou três meses depois.
Com o dólar se estabilizando, não há qualquer razão para esperar uma nova aceleração da inflação: o fim do choque nos preços de alimentos e a baixíssima inflação de serviços associada à escalada do desemprego e à estagnação dos salários se encarregarão de levá-la de volta para patamares historicamente baixos.
Se os riscos de criarmos uma espiral perigosa de alta do dólar, descontrole inflacionário e insolvência do governo parecem bastante reduzidos, o mesmo não vale para aqueles associados à elevação da desigualdade e do desemprego no primeiro semestre de 2021.
O fim dos pagamentos do auxílio emergencial retirará da economia brasileira mais de R$ 250 bilhões transferidos pelo programa em 2020 —um montante que foi capaz de neutralizar, em média, a queda na renda do trabalho da metade mais pobre da população, segundo os dados da Pnad Covid.
O programa, que nos seus três primeiros meses já havia custado dez vezes mais que o previsto pela equipe econômica em sua proposta original de transferir R$ 200 para um universo muito menor de beneficiários, foi grande o suficiente para criar uma situação um tanto ou quanto paradoxal: os níveis de pobreza e de desigualdade de renda caíram no país em meio a uma das mais graves crises da nossa história.
O problema é que, com o fim do auxílio, a forte elevação da desigualdade na renda do trabalho causada pelo efeito desproporcional da pandemia sobre os trabalhadores menos escolarizados, especialmente em setores de serviços e comércio, virá subitamente à tona, como já sinalizam os maiores índices de pobreza observados desde a redução pela metade do valor do benefício em setembro.
É provável que o Brasil nunca tenha passado por um aumento da desigualdade tão súbito quanto o que pode ser causado pelo fim do pagamento do auxílio em dezembro. E, para piorar, tal efeito se dará sobre um nível de desigualdade que já havia subido de forma expressiva desde a crise de 2015-16.
Diversos elementos já apresentados no início do artigo nos impedem de projetar uma recuperação da economia e uma geração de postos de trabalho no primeiro semestre de 2021 forte o suficiente para neutralizar esse efeito por meio do crescimento da renda do trabalho da base da pirâmide. Muito pelo contrário, o fim do auxílio e a elevação da desigualdade funcionarão como uma âncora para nossas perspectivas de retomada.
Por isso, para além das tendências estruturais do mercado de trabalho que vêm reduzindo o colchão protetor e elevando a volatilidade da renda dos mais pobres, os riscos de colapso social a curto prazo também servem para alimentar o debate sobre diferentes formas de ampliar transferências de renda a partir do ano que vem.
Algumas dessas propostas vieram do próprio governo, que se deparou inadvertidamente com os ganhos de popularidade associados à inclusão dos mais pobres, até então totalmente ausentes de suas preocupações, no Orçamento público.
No caso das ideias aventadas pela equipe econômica, como demonstrado na Nota de Política Econômica 001 do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, com base nos dados da última Pesquisa de Orçamento Familiar, os recursos para a expansão do valor recebido e do número de atendidos pelo Bolsa Família seriam obtidos por meio da redução de benefícios hoje destinados majoritariamente aos estratos médios da distribuição de renda.
Dadas as peculiaridades da nossa pirâmide distributiva, em que há forte concentração no topo e pouca diferença entre o meio e a base, essas propostas reduzem muito menos a desigualdade que o financiamento da expansão das transferências por uma tributação mais progressiva da renda dos mais ricos, por exemplo.
Em uma de nossas simulações, mostramos que seria possível beneficiar os 50% mais pobres com R$ 125 per capita (o dobro do que paga hoje o Bolsa Família para um universo muitíssimo maior de beneficiários) por meio da tributação maior e progressiva das altas rendas, reduzindo a desigualdade medida pelo índice de Gini em 8,9% (ante uma redução de apenas 0,4% na proposta que remaneja recursos de outros benefícios como abono salarial, seguro-defeso, salário-família e Benefício de Prestação Continuada).
Mesmo sendo neutras do ponto de vista do seu impacto direto no Orçamento, medidas desse tipo contribuiriam também de forma mais substantiva para a recuperação da economia, pois os mais pobres consomem uma parcela da renda muito maior que a dos mais ricos.
No entanto, para que um eventual aumento em nossa arrecadação possa ser utilizado para expandir gastos sociais, precisaríamos alterar o desenho um tanto ou quanto peculiar de nosso teto de gastos. Afinal, diante do crescimento das despesas previdenciárias a cada ano (ainda que em ritmo menor pelos efeitos da reforma), o desenho estático do teto já não deixa quase nenhum espaço para a realização de despesas não obrigatórias, levando os analistas mais atentos a darem como certo o seu colapso.
Como costuma ser o caso com as regras rígidas demais, já se criaram meios para driblar essa restrição por meio do uso de fundos extra-teto e outros artifícios cogitados atualmente pelo governo.
O que é melhor para as expectativas dos investidores? Um redesenho que estabeleça de forma transparente um limite para o crescimento dos gastos a cada quatro anos, compatível com um alvo para a razão dívida-PIB e justificado publicamente com base no crescimento esperado do PIB, da arrecadação e dos juros pagos, como adotado em outros países? Ou a manutenção de um teto sem credibilidade, apenas para inglês ver, às custas de manobras recorrentes para cumpri-lo?
Em suas recentes recomendações para o Brasil, o FMI sugeriu preservar o teto de gastos para ancorar a confiança dos investidores e evitar uma retirada rápida dos estímulos fiscais de 2020, se a situação da economia se deteriorar. Como notado por quem conhece mais profundamente o formato e a atual situação do nosso teto, esses objetivos já não são compatíveis.
Diante desse impasse e das incertezas que permeiam a macroeconomia, optar no Brasil pelo tipo de ajuste que o Monitor Fiscal do FMI propõe para países endividados em dólar (com riscos potenciais muito maiores que os nossos) parece nos deixar com boa margem de segurança: “Uma opção para reduzir a queda no consumo e no produto no curto prazo incluiria, por exemplo, elevar transferências focalizadas para proteger os mais vulneráveis, financiadas por impostos progressivos sobre a renda”, sugere o relatório para essas economias.
No caso brasileiro, o aumento progressivo da alíquota efetiva de tributação poderia ser obtido por meio do fim da isenção, no Imposto de Renda da Pessoa Física, sobre lucros e dividendos e do fim das deduções de gastos com saúde e educação privadas, bem como da criação de faixa adicional com alíquotas mais altas de tributação no topo —medidas que hoje já contam com uma boa dose de concordância entre economistas.
Dadas as propostas de remanejamento de recursos aventadas até aqui pela sua equipe econômica, o presidente Jair Bolsonaro não estava equivocado quando anunciou que não quer nem mais ouvir falar de seu próprio programa social, o Renda Brasil, porque não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
No entanto, nem os conflitos crescentes dentro do seu governo acerca dos rumos da política econômica e nem o desejo de capitalizar politicamente um programa mais amplo de transferência de renda fizeram com que o presidente aventasse a alternativa mais apropriada para um país rasgado pela desigualdade: a de tirar dos mais ricos para dar aos mais pobres.
Ao debater as melhores formas de transição do auxílio emergencial para um Bolsa Família ampliado e, ao mesmo tempo, diferentes projetos de reforma tributária, o Congresso pode fazer diferente e evitar que o Brasil caminhe na contramão do mundo nesse pós-pandemia.
A recomendação do fundo de não retornar à austeridade no pós-pandemia acabou destoando do que foi aconselhado no mesmo relatório no pós-crise de 2008-09, dando o sinal verde para que países da Europa, da Ásia e os EUA do presidente eleito Joe Biden implementem seus novos pacotes de estímulo fiscal em 2021. Alemanha, França e Coréia, por exemplo, já anunciaram planos substantivos de recuperação verde e inclusiva para os próximos anos.
E no caso dos países periféricos? O FMI deixa claro que as economias com alta proporção de dívida pública denominada em moeda estrangeira se verão obrigadas a realizar um ajuste menos gradual que as demais.
No entanto, se o Brasil nem sequer está endividado em dólares —na verdade, conta com valores muito mais altos de reservas internacionais que de dívida pública externa—, por que o caminho escolhido no nosso caso teria de ser o do ajuste rápido via corte de gastos? A ideia de que com a gente é diferente vem sendo justificada no debate econômico doméstico com base em três elementos.
Primeiro, que a dívida mais alta na pandemia obrigou o governo brasileiro a emitir títulos com prazo de vencimento mais curto, dificultando sua rolagem. Segundo, que o real foi a moeda que mais se desvalorizou em 2020 entre as emergentes, o que seria consequência de uma percepção de risco maior da nossa dívida pelos investidores estrangeiros. Terceiro, que a taxa de inflação ficará acima do centro da meta em 2020 em razão desse aumento na dívida e correria o risco de sair totalmente de controle em 2021.
Começando pela primeira parte: é verdade que o governo encurtou os prazos da dívida, mas também conseguiu, com isso e graças à redução da taxa Selic, diminuir os juros pagos sobre ela. O custo médio da dívida pública federal chegou a ultrapassar 14% ao ano no início de 2016, mas caiu para 8,7% ao ano em agosto de 2019 e, novamente, para 6,1% em setembro de 2020.
Em outras palavras, a elevação de mais de 13 pontos percentuais em relação ao PIB da dívida bruta do governo, desde dezembro de 2019, foi acompanhada de uma redução de seu custo médio, facilitando sua estabilização.
Além disso, a maior percepção de risco dos investidores e a demanda menor por títulos públicos de longo prazo do governo brasileiro se devem também à forte incerteza nos mercados financeiros internacionais em meio à pandemia e, assim, à procura por ativos de maior liquidez. Porém, esse cenário externo já começou a ficar mais favorável com as notícias da vacina, a eleição de Joe Biden e o anúncio de pacotes fiscais que contribuirão para uma recuperação mais rápida da economia global.
Passando ao segundo argumento, não há evidência alguma de que a desvalorização mais forte do real em 2020 seja fruto de uma percepção maior do risco associado à nossa dívida pública. Afinal, se tomarmos o período que vai de 2001 a 2019, o real foi sistematicamente a mais volátil entre 15 moedas de países emergentes, seguido pela lira turca.
Em análise dos desvios padrões normalizados dessas moedas, Rodrigo Toneto mostrou que a volatilidade do real só não foi maior que a média em 4 dos 19 anos considerados —a diferença nessa variação em 2020 em relação a outras moedas ainda é inferior que em outros oito anos da amostra.
Além disso, a desvalorização do real frente às outras moedas foi maior nos primeiros três meses de 2020, antes mesmo dos gastos com a pandemia. Ou seja, a volatilidade maior do real é recorrente e parece ser fruto de fatores estruturais, ligados à institucionalidade de nosso mercado de câmbio, tema que está muito além do escopo desse artigo, e não de riscos conjunturais associados à nossa dívida. Aliás, a redução dos níveis de incerteza nos mercados globais mencionada anteriormente já trouxe uma valorização da moeda brasileira frente ao dólar nas últimas semanas.
Talvez por isso, muitos analistas tenham substituído os temores com a alta do dólar por um suposto risco de hiperinflação ao defender a necessidade de um forte ajuste fiscal já em 2021.
Só que, como destacado pelo próprio Banco Central em seus últimos relatórios, grande parte da aceleração da inflação nos últimos meses decorre da forte alta do dólar até outubro: como de praxe, a elevação dos custos com insumos importados e a maior facilidade de competir com produtos estrangeiros acabam fazendo com que o dólar mais alto seja repassado para preços de bens industrializados domésticos dois ou três meses depois.
Com o dólar se estabilizando, não há qualquer razão para esperar uma nova aceleração da inflação: o fim do choque nos preços de alimentos e a baixíssima inflação de serviços associada à escalada do desemprego e à estagnação dos salários se encarregarão de levá-la de volta para patamares historicamente baixos.
Se os riscos de criarmos uma espiral perigosa de alta do dólar, descontrole inflacionário e insolvência do governo parecem bastante reduzidos, o mesmo não vale para aqueles associados à elevação da desigualdade e do desemprego no primeiro semestre de 2021.
O fim dos pagamentos do auxílio emergencial retirará da economia brasileira mais de R$ 250 bilhões transferidos pelo programa em 2020 —um montante que foi capaz de neutralizar, em média, a queda na renda do trabalho da metade mais pobre da população, segundo os dados da Pnad Covid.
O programa, que nos seus três primeiros meses já havia custado dez vezes mais que o previsto pela equipe econômica em sua proposta original de transferir R$ 200 para um universo muito menor de beneficiários, foi grande o suficiente para criar uma situação um tanto ou quanto paradoxal: os níveis de pobreza e de desigualdade de renda caíram no país em meio a uma das mais graves crises da nossa história.
O problema é que, com o fim do auxílio, a forte elevação da desigualdade na renda do trabalho causada pelo efeito desproporcional da pandemia sobre os trabalhadores menos escolarizados, especialmente em setores de serviços e comércio, virá subitamente à tona, como já sinalizam os maiores índices de pobreza observados desde a redução pela metade do valor do benefício em setembro.
É provável que o Brasil nunca tenha passado por um aumento da desigualdade tão súbito quanto o que pode ser causado pelo fim do pagamento do auxílio em dezembro. E, para piorar, tal efeito se dará sobre um nível de desigualdade que já havia subido de forma expressiva desde a crise de 2015-16.
Diversos elementos já apresentados no início do artigo nos impedem de projetar uma recuperação da economia e uma geração de postos de trabalho no primeiro semestre de 2021 forte o suficiente para neutralizar esse efeito por meio do crescimento da renda do trabalho da base da pirâmide. Muito pelo contrário, o fim do auxílio e a elevação da desigualdade funcionarão como uma âncora para nossas perspectivas de retomada.
Por isso, para além das tendências estruturais do mercado de trabalho que vêm reduzindo o colchão protetor e elevando a volatilidade da renda dos mais pobres, os riscos de colapso social a curto prazo também servem para alimentar o debate sobre diferentes formas de ampliar transferências de renda a partir do ano que vem.
Algumas dessas propostas vieram do próprio governo, que se deparou inadvertidamente com os ganhos de popularidade associados à inclusão dos mais pobres, até então totalmente ausentes de suas preocupações, no Orçamento público.
No caso das ideias aventadas pela equipe econômica, como demonstrado na Nota de Política Econômica 001 do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, com base nos dados da última Pesquisa de Orçamento Familiar, os recursos para a expansão do valor recebido e do número de atendidos pelo Bolsa Família seriam obtidos por meio da redução de benefícios hoje destinados majoritariamente aos estratos médios da distribuição de renda.
Dadas as peculiaridades da nossa pirâmide distributiva, em que há forte concentração no topo e pouca diferença entre o meio e a base, essas propostas reduzem muito menos a desigualdade que o financiamento da expansão das transferências por uma tributação mais progressiva da renda dos mais ricos, por exemplo.
Em uma de nossas simulações, mostramos que seria possível beneficiar os 50% mais pobres com R$ 125 per capita (o dobro do que paga hoje o Bolsa Família para um universo muitíssimo maior de beneficiários) por meio da tributação maior e progressiva das altas rendas, reduzindo a desigualdade medida pelo índice de Gini em 8,9% (ante uma redução de apenas 0,4% na proposta que remaneja recursos de outros benefícios como abono salarial, seguro-defeso, salário-família e Benefício de Prestação Continuada).
Mesmo sendo neutras do ponto de vista do seu impacto direto no Orçamento, medidas desse tipo contribuiriam também de forma mais substantiva para a recuperação da economia, pois os mais pobres consomem uma parcela da renda muito maior que a dos mais ricos.
No entanto, para que um eventual aumento em nossa arrecadação possa ser utilizado para expandir gastos sociais, precisaríamos alterar o desenho um tanto ou quanto peculiar de nosso teto de gastos. Afinal, diante do crescimento das despesas previdenciárias a cada ano (ainda que em ritmo menor pelos efeitos da reforma), o desenho estático do teto já não deixa quase nenhum espaço para a realização de despesas não obrigatórias, levando os analistas mais atentos a darem como certo o seu colapso.
Como costuma ser o caso com as regras rígidas demais, já se criaram meios para driblar essa restrição por meio do uso de fundos extra-teto e outros artifícios cogitados atualmente pelo governo.
O que é melhor para as expectativas dos investidores? Um redesenho que estabeleça de forma transparente um limite para o crescimento dos gastos a cada quatro anos, compatível com um alvo para a razão dívida-PIB e justificado publicamente com base no crescimento esperado do PIB, da arrecadação e dos juros pagos, como adotado em outros países? Ou a manutenção de um teto sem credibilidade, apenas para inglês ver, às custas de manobras recorrentes para cumpri-lo?
Em suas recentes recomendações para o Brasil, o FMI sugeriu preservar o teto de gastos para ancorar a confiança dos investidores e evitar uma retirada rápida dos estímulos fiscais de 2020, se a situação da economia se deteriorar. Como notado por quem conhece mais profundamente o formato e a atual situação do nosso teto, esses objetivos já não são compatíveis.
Diante desse impasse e das incertezas que permeiam a macroeconomia, optar no Brasil pelo tipo de ajuste que o Monitor Fiscal do FMI propõe para países endividados em dólar (com riscos potenciais muito maiores que os nossos) parece nos deixar com boa margem de segurança: “Uma opção para reduzir a queda no consumo e no produto no curto prazo incluiria, por exemplo, elevar transferências focalizadas para proteger os mais vulneráveis, financiadas por impostos progressivos sobre a renda”, sugere o relatório para essas economias.
No caso brasileiro, o aumento progressivo da alíquota efetiva de tributação poderia ser obtido por meio do fim da isenção, no Imposto de Renda da Pessoa Física, sobre lucros e dividendos e do fim das deduções de gastos com saúde e educação privadas, bem como da criação de faixa adicional com alíquotas mais altas de tributação no topo —medidas que hoje já contam com uma boa dose de concordância entre economistas.
Dadas as propostas de remanejamento de recursos aventadas até aqui pela sua equipe econômica, o presidente Jair Bolsonaro não estava equivocado quando anunciou que não quer nem mais ouvir falar de seu próprio programa social, o Renda Brasil, porque não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
No entanto, nem os conflitos crescentes dentro do seu governo acerca dos rumos da política econômica e nem o desejo de capitalizar politicamente um programa mais amplo de transferência de renda fizeram com que o presidente aventasse a alternativa mais apropriada para um país rasgado pela desigualdade: a de tirar dos mais ricos para dar aos mais pobres.
Ao debater as melhores formas de transição do auxílio emergencial para um Bolsa Família ampliado e, ao mesmo tempo, diferentes projetos de reforma tributária, o Congresso pode fazer diferente e evitar que o Brasil caminhe na contramão do mundo nesse pós-pandemia.
Sobre a autora
Professora livre-docente do Departamento de Economia da USP, é autora de "Curto-circuito: O Vírus e a Volta do Estado" e “Valsa Brasileira: Do Boom ao Caos Econômico", publicados pela Todavia.
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