11 de dezembro de 2020

O último herói civil?

No último domingo, 6 de dezembro, Tabaré Vázquez, o primeiro presidente da Frente Ampla do Uruguai, morreu em sua casa aos 80 anos.

Rodrigo Alonso

Jacobin


Se um tempo se define pelos dirigentes que produz, o ciclo histórico que se inicia com a recuperação democrática em 1985 e termina com a derrota do terceiro governo da Frente Ampla em 2019, tem em Tabaré uma figura-chave que o pinta e recobre quase que inteiramente.

Foi o primeiro prefeito frenteamplista de Montevidéu (1990-1994), um marco no processo de acumulação de forças da esquerda rumo ao controle do governo nacional que finalmente obteria, também da mão de Vázquez, em 2004. Durante os anos 1990, em plena oposição frenteamplista e social às políticas neoliberais, foi herdando do general Seregni herdou a direção do reagrupamento e da ascensão das forças de oposição ao neoliberalismo que a Frente Ampla (FA) ia integrando em torno de si.

Nesse processo, o arco de setores sociais que deu origem aos batllismos do século XX foi rearticulado na FA. Com a crise de 2002 e a derrocada eleitoral do Partido Colorado em 2004, completa-se essa transição, o que deixa a Frente como a força política mais representativa do Uruguai, reunindo um vasto conjunto de atores e forças sociais.

Paralelamente a essa ampliação da base histórica da esquerda, está se processando a moderação ideológica da FA, permitindo que ela se integre gradativamente como ala esquerda do novo consenso liberal-democrata da fase pós-ditadura. Vázquez, como Seregni, foi fundamental nessa mudança progressiva de tonalidades da esquerda para o progressivismo. Hoje os fatos falam dos poderes e dos limites dessa virada, mas a verdade é que foi lá que se rebaixou o teto do acúmulo de forças que poderiam reunir o Frenteamplismo.

O período de governo da FA (2005-2019), no qual Tabaré participou como presidente entre 2005-2009 e 2015-2019, foi o batllismo por outros meios. Foi um período de “prosperidade” econômica e reformas sociais progressistas, que deu origem a um forte processo de agregação social e amortecimento político. O reverso dos anos noventa.

Essas duas faces do ciclo histórico pelo qual passa a liderança de Vázquez: o momento da resistência antineoliberal e a fase governamental de expansão e prosperidade dos batlistas, fazem do mito de Tabaré, um herói civil - meio redentor, meio gestor - onde a razão popular pode colocar sua esperança de redenção e a razão cidadã o anseio por um país de oportunidades e integração.

Tabaré é o primeiro presidente, pelo menos desde a recuperação democrática, que não vem de famílias patrícias. Filho de uma casa da classe trabalhadora no bairro de La Teja, em Montevidéu, ele teve que abandonar o ensino médio durante anos para ajudar na manutenção de sua casa. A própria trajetória de vida de Tabaré metaforiza o que significou o processo de incorporação das classes não patrícias ao governo que liderou. Sem representar isso como uma ameaça estratégica aos setores dominantes, no ciclo que decorre entre a saída da ditadura cívico-militar e a última derrota da Frente Ampla em 2019, processou-se uma assimilação dos segmentos médios e populares a um esquema de coparticipação nas diferentes instâncias do poder governamental e eleitoral.

A etapa de agregação social, de incorporação dos setores populares à distribuição do produto econômico e de nova coparticipação política que o governo progressista inaugura, e que por ora nos permite nos alegrar em nossa excepcionalidade política em uma América Latina em crise, é o que está e fechando desde meados do último governo da Frente Ampla (2015-2019) liderado por Tabaré, onde os indicadores econômicos e sociais começam a estagnar. Essa mudança de fase, de uma fase expansiva e agregadora de demandas, para uma fase de platô e de desagregação e aumento do conflito distributivo, ganha maior clareza com a morte do ex-presidente. O dilema do estágio que está se abrindo é que ocorre com essa agregação de demandas e coparticipação na época da carência e vacas magras.

As palavras de Carlos Quijano no semanário Marcha por ocasião da morte de outro batllista, Luis Batlle Berres (1897-1964), resgatado da história por José López Mercao [2]: “Morre quando o enigma ainda não foi resolvido, quando a tarefa se torna cada vez mais urgente”. Qual teria sido o lugar de Tabaré nesta encruzilhada? Nunca saberemos.

Há quem a figura do líder concreto nos comove menos do que a metáfora que representa e as pessoas que a choram.

Dentro do mito tabaré está o anseio meritocrático de mobilidade social ascendente. O fato de muitos terem escolhido as "ceibalitas" (laptops cedidos gratuitamente pelo governo a alunos e escolas do ensino médio) para resumir seu legado, símbolo de igualdade de oportunidades desde o início, fé um exemplo disso. Mas não só. Em políticas como o Plano Ceibal ou outras, percebe-se um horizonte difuso de uma República de iguais. Se é realista propor isso sem mudar os próprios fundamentos do Uruguai, é outra discussão.

Na imensa caravana que acompanhou seus restos mortais ao cemitério de La Teja, houve mais do que um luto pela morte de um líder. Naquela momentânea comunhão de aplausos e punhos erguidos, gesto que Tabaré não costumava fazer porque era muito para seu estilo um tanto liberal e monástico, as pessoas se reconheciam como parte de algo grande que vem de longe, talvez vivenciando aquela confusão e fraca força messiânica e redentora que bate no popular de que fala Benjamin. Ter heróis, neste caso um herói civil temperado, e despedir-se deles como merecem, é uma forma de contestar o espaço da história e da memória, de se enraizar em uma terra. E isso hoje é mais necessário do que nunca.

Na etapa que se abre, de carências e tensões, onde ressurgiu a velha coalizão anti-batllista (novamente liderada pela linhagem herrerista) para varrer com o que puder, inclusive nós, as repercussões da morte de nosso moderado Presidente, um sóbrio médico oncologista, maçon, apenas ligeiramente socialista, lembra-nos que não estamos sozinhos nem somos poucos. E no reverso desta solidão de agora, um ponto de luz nos aguarda.

Há um fino fio vermelho, um pouco desbotado, que liga a história do Uruguai. É o desejo de construir uma pequena República integradora, baseada em um pacto de iguais, que garanta o direito a uma vida digna para seu povo; uma República como pacto de direitos fundamentais, não como pacto de elites em defesa da propriedade, como tem sido interpretada por renomados dirigentes políticos contemporâneos que se dizem herdeiros do Batllismo sem merecê-lo.

Apesar de sua capacidade contraditória de representar o ímpeto de mudança e sua contenção, com os limites e poderes do povo que o elevou como seu líder, Tabaré puxou esse fio. Aí está seu legado.

Sobre o autor

Economista. Integrante do Comitê Editorial da publicação Hemisferio Izquierdo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...