30 de abril de 2020

Emitindo moeda, o Estado cria poder de compra que antes não existia

Grupo de economistas afirma que argumento da falta de recursos não cabe na pandemia e que emissão de moeda traria benefício social

Monica de Bolle
André Roncaglia
Fábio Terra
Gabriel Galípolo
Igor Rocha
Julia Braga
Luiz Gonzaga Belluzzo
Paulo Gala

Folha de S.Paulo

Homem usa máscara em mercado de rua no Rio de Janeiro. Mauro Pimentel/AFP.

Colocar a economia acima da vida é reconhecer o fracasso da humanidade.

Para evitar a morte pelo Covid-19 é preciso que apenas as pessoas na linha de frente e nos serviços essenciais saiam de casa. O desemprego e a fome podem matar mais do que o vírus, é verdade. Mas este não precisa ser o nosso destino. Colocar a saúde contra a economia é criar divisão onde pode haver cooperação.

As medidas anunciadas até aqui pelo governo vão na direção correta. Com a atividade econômica parada, acionar os canhões fiscais e monetários do Estado para manter as famílias em casa é a única e necessária saída.

Mas, como manter milhões de pessoas em casa? O governo não está quebrado? O dinheiro não acabou?

Não. Diferente de famílias e empresas, o Estado pode emitir moeda ou pode se endividar em uma escala bem diferente de famílias.

Emitindo moeda, o Estado cria poder de compra que antes não existia. Endividando-se, toma emprestado de quem tem dinheiro sobrando e transfere para quem não tem como consegui-lo. Emitindo ou endividando-se, o Estado injeta dinheiro na economia, e é disso que precisamos urgentemente.

Estados Unidos, Japão, Canadá, Reino Unido estão emitindo. Além disso, estão se endividando, todos estes países possuem dívida pública acima de 100% do PIB, a nossa está abaixo de 80%. Eles estão entre os dez mais ricos do mundo, assim como nós. O que nos impede de agir como eles? Nada, a não ser nosso descrédito em nós mesmos.

E a inflação? Não acontecerá. Com a atividade econômica parada, estamos longe dela agora e no médio prazo. Apenas como exemplo, mesmo com a enxurrada de liquidez ofertada pelos bancos centrais das maiores economias do mundo, no dia 20 de abril os contratos futuros do petróleo foram negociados em valores negativos pela primeira vez na história. Além disso, as nossas autoridades econômicas e políticas são responsáveis e quando a atividade econômica privada estiver reabilitada, será hora de retirar os esforços estatais.

A emissão de moeda reduzirá os juros e o custo da dívida pública, ajudando a reduzir os gastos públicos. Porém, pode ampliar a saída de dólares do Brasil o que, no médio prazo, pode impactar a inflação. Temos instrumentos para lidar com o câmbio agora, e a atividade econômica está tão deprimida que mesmo a recente forte desvalorização do Real não foi capaz de gerar repasse significativo na inflação. No médio prazo, com a economia em melhor condição, centraremos esforços em outros objetivos. Eles não são o foco agora.

O Estado não enfrenta os limites do orçamento familiar, e ele é o único que consegue, agora, dar vida aos orçamentos familiares e empresariais. Ele já vem agindo, medidas já foram tomadas, mas o momento de exceção exige muito mais.

Dizer que não há fontes de recursos é faltar com a verdade. Nossas regras fiscais são autoimposições que nos protegem dos excessos em tempos normais. Apegar-se a elas em meio a uma calamidade sem precedentes equivale a mentir para a população e para os estados e municípios. É discutir a vã filosofia enquanto o país pega fogo. Superar a crise de saúde pública não exige que mergulhemos em uma depressão econômica.

O Estado detém os meios para manter a coesão social e proteger o pacto federativo. A maioria de prefeitos e governadores enfrenta desafios reais que requerem auxílio decisivo e imediato. O oportunismo de algumas corporações do Estado pode ser corrigido por meio de lei complementar ou compromissos diretos com entes federativos.

Nossa segurança sanitária e econômica é um recurso comum, cuja exaustão é acelerada pela disputa política. O momento exige confiança mútua entre os três poderes, União, estados e municípios, e toda a sociedade.

A política econômica não é dogma, não tem fórmula única e requer vigilância e capacidade de iniciativa. Ela depende crucialmente do governo federal, que é o maior ente do setor público brasileiro. A União precisa ajudar a todos, inclusive estados e municípios, que estão na linha de frente do combate efetivo ao coronavírus.

Em momentos de crise, o que mais devemos temer é o próprio medo de agir. Se quisermos sair desta crise, precisamos impedir que a calamidade sanitária se converta em caos social. É hora de a economia servir à sociedade.

A União tem o poder e os instrumentos para coordenar os setores essenciais e para garantir o pão nosso de cada dia. A cura não precisa ser pior que a doença. Até agora talvez tenha sido e, se assim continuar, é porque escolhemos. ​

André Roncaglia de Carvalho, professor da Universidade Federal de São Paulo e pesquisador do Cebrap; Fabio Terra, professor da Universidade Federal do ABC e da Univerdidade Federal Fluminense; Gabriel Galípolo, mestre em Economia pela PUC-SP; Igor Rocha, doutor em Estudos do Dsenvolvimento pela Universidade de Cambridge; Julia Braga, professora da Universidade Federal Fluminenese; Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor da UNICAMP e da FACAMP; Monica De Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora do Peterson Institute for International Economics; Paulo Gala, professor da FGV-SP

29 de abril de 2020

Socialistas devem apoiar os trabalhadores - não a classe dominante chinesa ou americana

A pandemia do COVID-19 provocou uma escalada perigosa nas tensões entre a China e os Estados Unidos. Mas nossa lealdade não deve ser com a classe dominante de nenhum país - deve ser com os trabalhadores de ambos os países.

Uma entrevista com
Eli Friedman

Entrevistado por
Ashley Smith

Jacobin

O secretário de Estado Mike Pompeo fala enquanto o presidente Donald Trump ouve durante uma entrevista coletiva sobre a COVID-19 em 20 de março de 2020 em Washington, DC. (Alex Wong / Getty Images)

Tradução / A pandemia do COVID-19 provocou uma escalada perigosa nas tensões entre a China e os Estados Unidos. Mas nossa lealdade não deve ser com a classe dominante de nenhum dos dois países – deve ser com os trabalhadores de ambos os países.

Em meio à pandemia e à recessão global, a classe dominante dos EUA intensificou sua “nova Guerra Fria” com a China.

O presidente Donald Trump e seus companheiros têm usado repetidamente termos racistas como o “vírus chinês”, elevaram as teorias de conspiração, alegando que um laboratório em Wuhan intencionalmente lançou o COVID-19 para devastar os EUA e aumentou o impasse militar de Washington com Pequim ao implantar uma flotilha de navios de guerra no Mar da China Meridional. Joe Biden atacou Trump por ser brando com a China e lançou um anúncio profundamente sinofóbico no início deste mês.

Do outro lado do Pacífico, o governo de Xi Jinping tentou transformar a pandemia – que ele tratou mal inicialmente – em proveito próprio. Pequim enviou testes, ventiladores e máscaras para muitos outros países, tentando se projetar como uma potência global benevolente, ao mesmo tempo em que se recusa a conceder direitos trabalhistas básicos aos seus trabalhadores.

Ashley Smith conversou recentemente com Eli Friedman (EF), autor do artigo “Insurgency Trap: Politics Labour in Post Socialist China” (Armadilha da Rebelião: Política Trabalhista na China pós-socialista) , sobre a resposta de Pequim à COVID-19, a consequência doméstica e geopolítica da pandemia, e por quê os socialistas devem rejeitar o nacionalismo, seja chinês ou americano.

Ashley Smith

Trump estimulou o racismo anti-chinês ao chamar o coronavírus de “vírus chinês”, e seu secretário de Estado, Mike Pompeo, divulgou várias teorias da conspiração que culpavam um laboratório chinês, em Wuhan, por liberar o vírus. Qual é a verdadeira explicação para o surgimento do vírus e qual tem sido o impacto do racismo de Trump?
EF

Há um debate sobre onde e como um ser humano contraiu o vírus pela primeira vez, e não posso comentar sobre a ciência. Certamente, os primeiros casos identificados do que veio a ser chamado COVID-19 estavam em Wuhan, e essa cidade também experimentou a primeira propagação comunitária no mundo.

Portanto, o vírus de fato apareceu pela primeira vez na China e terei mais a dizer sobre como os profissionais médicos e os funcionários do governo responderam a essas informações. Mas a decisão de Trump e da maioria do Partido Republicano de se referir a ele como o “vírus chinês” (ou “vírus Wuhan” ou, mais ofensivamente, “Kung Fu”) é claramente um esforço para desviar a culpa, de suas próprias falhas catastróficas.

Como evidenciado pelo relativo sucesso de muitos países, principalmente os da Ásia, houve realmente tempo para se preparar para a chegada do coronavírus após sua disseminação inicial na China. Os EUA não fizeram isso, e é, em grande parte, culpa do governo federal.

A rejeição racializada (que revelam distinção racial) das próprias falhas dos Estados Unidos não é novidade para o projeto Trumpiano. Os latinos e muçulmanos suportam o peso dessa política há anos, e o povo chinês também está diretamente na mira. Existem grandes consequências da retórica do “vírus da China”, tanto nacional quanto internacionalmente.

Internamente, houve um aumento maciço de incidentes racistas contra chineses e outros asiáticos, incluindo ataques verbais e físicos. Na China, confirma-se para muitos cidadãos a posição do Partido Comunista de que os EUA são fundamentalmente anti-China, o que, por sua vez, torna mais provável a intensificação do conflito nacionalista. E, apesar de alguma resistência dos democratas a isso, Joe Biden parece ter decidido que a xenofobia anti-chinesa é uma estratégia vencedora em 2020.

Esta é realmente uma situação extremamente perigosa.

Ashley Smith

Como o estado chinês reagiu à pandemia? E como Pequim usou seu sucesso posterior para projetar seu poder internacionalmente como uma alternativa aos EUA?
EF

Os EUA não têm o monopólio da má administração do surto. Mas as especificidades do manuseio incorreto do governo chinês são obviamente muito diferentes. O problema fundamental foram os esforços das autoridades locais para encobrir o surto, o mais famoso esforço foi tentar silenciar denunciantes como o Dr. Li Wenliang (que mais tarde morreu de COVID-19).

Isso reflete uma dinâmica de longa data na política chinesa, na qual os governos locais tentam impedir que os superiores tenham conhecimento dos problemas locais, por medo de serem punidos. Também é evidente que o governo central sabia do surto muitas semanas antes de reconhecê-lo publicamente.

Parece provável que, se os avisos iniciais dos médicos em Wuhan catalisassem uma ação imediata, o surto teria tomado um caminho completamente diferente, uma questão que tenho certeza de que ficaremos pensando por um longo tempo. Também é importante observar que o governo chinês não foi totalmente transparente a respeito dos primeiros dias do surto e, dado o quão intensamente politizado o assunto se tornou, o governo chinês quase certamente continuará a manter um alto nível de controle de informações.

Após a confusão inicial que permitiu que o coronavírus viajasse por toda a China e pelo mundo, o governo chinês tomou uma ação decisiva e, finalmente, eficaz. Mesmo considerando que os dados relatados certamente contêm imprecisões de motivação política, é evidente que eles fizeram um trabalho melhor ao gerir a propagação do que na maioria da Europa ou nos EUA. O governo tem se comprometido a encobrir seu fracasso inicial enquanto se concentra em esforços mais eficazes para a contenção do vírus.

É difícil dizer quão eficaz será essa estratégia. Muitos outros países em diferentes partes do mundo e com formas variadas de governo foram igualmente ou mais competentes em sua resposta à epidemia. O mais vexatório para o Partido Comunista Chinês (PCCh) foi o sucesso de Taiwan, com apenas seis mortes relacionadas ao COVID até agora.

Embora Taiwan seja excluída da Organização Mundial da Saúde, tem sido bastante ativa no cenário mundial na tentativa de compartilhar suas experiências, além de fornecer milhões de máscaras cirúrgicas – um esforço que ganhou elogios da União Europeia e denúncias de Pequim. Tudo isso enfraquece o argumento de que a China está singularmente mais bem posicionada para liderar a resposta à epidemia. Certamente, a direita norte-americana está obcecada com o surto inicial, com o senador Tom Cotton do Arkansas promovendo a noção insana de que o governo chinês tomou uma decisão consciente ao deixar a propagação do vírus correr solta em nível mundial.

A pista (alameda) para exercer liderança global nisso é bastante larga. Dada sua capacidade industrial, a China poderia e deveria fornecer equipamentos médicos para outros países duramente atingidos. Isso será cada vez mais importante à medida que o vírus se expande da Europa e América do Norte para a África e América Latina. Se o governo chinês aparecer nos países pobres com ventiladores gratuitos ou baratos, equipamentos de proteção individual e voluntários médicos, sem restrições, devemos aplaudir. Eu não acho que isso seja provável, mas eu adoraria provar que estou errado.
Ashley Smith

Qual o impacto da recessão global e da pandemia na economia chinesa? A China será capaz de sair desta crise como ocorreu na Grande Recessão?

EF: O impacto na economia da China foi profundo. Depois da talvez maior expansão capitalista que o mundo já viu na geração passada, a economia encolheu 6,8% no primeiro trimestre do ano. Portanto, embora estejamos apenas no início da crise, é aparente que isso será bem diferente de 2008-9, quando gastos massivos com estímulos permitiram à China manter um crescimento relativamente alto.

Como era de se esperar, a resposta à última crise (2008-2009) molda os contornos desta crise atual, bem como as ferramentas disponíveis para o Estado. Embora a China tenha escapado relativamente ilesa da última crise (2008-2009), ela o fez através de um enorme aumento no investimento financiado pela dívida. Muito disso foi empregado produtivamente, pois eles construíram a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, as principais redes de metrô em várias cidades e ampliaram aeroportos e portos marítimos.

Mas havia também elefantes brancos e construção excessiva em certos mercados imobiliários. Parte do motivo pelo qual a China ainda não divulgou planos de gastos na escala que vimos nos EUA ou no Japão deve-se à preocupação com uma crise financeira.

Notavelmente, embora o consumo doméstico tenha realmente aumentado nos últimos anos, o Estado não conseguiu atingir seu objetivo declarado de criar uma grande classe média com capacidade de alto consumo. Isso se deve em grande parte ao problema político gerado pela repressão política dos trabalhadores e pelas moribundas instituições oficiais de representação trabalhista.

Dada a profundidade da crise em todo o mundo, a China provavelmente não pode exportar seu caminho de volta à saúde econômica. Os investimentos no exterior associados à iniciativa Belt and Road1 também estão enfrentando grandes tormentas. Sem a aura de legitimidade revolucionária que Mao Zedong e Deng Xiaoping desfrutavam, e nem mesmo uma simulação de processo democrático, o Partido Comunista tem sido altamente dependente de melhorias materiais para justificar seu governo. Essa crise vai colocar muita pressão no pacto básico entre o PCCh e a sociedade que existe desde pelo menos 1989.

AS

Como os trabalhadores reagiram em meio a essa crise? O que isso significará para o movimento trabalhista no país?
EF

Como tem sido o caso em todo o mundo, os trabalhadores na China estão sofrendo. Com uma taxa de crescimento negativa, não há dúvida de que o desemprego aumentou. A taxa de desemprego oficial de 5,9% é sem dúvida extremamente otimista, pois não inclui em sua totalidade dezenas de milhões de trabalhadores migrantes rurais que constituem a espinha dorsal da classe trabalhadora do país.

Apesar de morar e trabalhar nas cidades, é quase certo que esses migrantes serão excluídos até mesmo dos poucos benefícios aos desempregados oferecidos aos residentes urbanos. E são precisamente aqueles trabalhadores nos setores onde o emprego tem sido robusto nos últimos anos – serviços, entretenimento, transporte, trabalho baseado em plataforma digital e construção – que têm menos probabilidade de ter um contrato de trabalho e acesso a proteções sociais.

O governo central pediu que os migrantes fossem incluídos no seguro-desemprego e fez da proteção do emprego uma prioridade. Mas, repetidamente, temos visto uma retórica progressiva de Pequim sem esforços concomitantes para financiar os mesmos programas que eles estão pedindo. O centro não alocou fundos para a expansão dos benefícios aos desempregados, e não estou otimista de que este anúncio recente ajude significativamente os trabalhadores migrantes.

É difícil dizer que impacto isso terá sobre a inquietação dos trabalhadores. O governo teve sorte porque o surto inicial ocorreu durante o Ano Novo Lunar, quando a maioria dos migrantes deixa as cidades para visitar suas famílias. O governo então prolongou o feriado e várias formas de controle da mobilidade foram mantidas por um longo período de tempo.

Um grande número de empresas privadas simplesmente se recusou a trazer os trabalhadores de volta quando a economia começou a reabrir – a dispersão espacial da força de trabalho provavelmente ajudou a reduzir a inquietação que poderia ter levado a demissões em massa, particularmente no setor manufatureiro duramente atingido.

No entanto, os trabalhadores chineses continuaram com sua antiga disposição de protestar, embora de maneira altamente dividida e politicamente circunscrita. Um exemplo impressionante são os trabalhadores da construção civil em Wuhan que construíram um enorme hospital nos arredores da cidade em apenas alguns dias – um fato que o governo orgulhosamente elogiou como indicativo de sua resposta efetiva.

No entanto, mais tarde foi revelado que os migrantes que trabalhavam dia e noite no canteiro de obras não estavam sendo adequadamente pagos enquanto mantidos em quarentena. Quando centenas de trabalhadores protestaram, eles foram recebidos com violência policial. Se mesmo os trabalhadores neste local simbolicamente importante estão sendo tratados com tal desrespeito, isso não é um bom presságio para o resto do país.

AS

Como a epidemia impactou outras dinâmicas políticas na China? Houve uma repressão mais ampla à dissidência, particularmente em áreas agitadas, como Hong Kong?

EF

O governo chinês certamente está tentando fazer bom uso dessa crise. As forças armadas têm intensificado suas atividades expansionistas no mar da China Meridional, enfurecendo as Filipinas, o Vietnã e outros países. Infelizmente, poucas informações foram extraídas de Xinjiang, embora existam preocupações justificáveis de que o vírus possa causar estragos entre as centenas de milhares de muçulmanos internados nos campos de reeducação da região.2

O governo também está avançando com esforços de longa prazo em Hong Kong, onde o PCCh ainda tem muitas contas a acertar em função da revolta social de 2019. As autoridades de Hong Kong, agindo claramente a mando de Pequim, prenderam recentemente quinze proeminentes ativistas da democracia, supostamente por participarem de assembleias ilegais no ano anterior.

Isso aconteceu logo após uma série de declarações mal feitas, nas quais o governo de Hong Kong esclareceu a base legal do “gabinete de ligação” de Pequim, interferindo nos assuntos locais. Vários oficiais renovaram recentemente os pedidos de promulgação do tão odiado projeto de lei antisubversão do “Artigo 23”, apresentado desde os protestos em massa contra ele em 2003. Isso ocorre no momento em que o tipo de assembleia pública que frequentemente paralisava a cidade no ano passado não é possível, de modo que o estado está tentando aproveitar o momento da dispersão social induzida pelo vírus.

Se for seguro assumir que as crises abrem possibilidades políticas anteriormente impedidas, é igualmente importante fazer um balanço do que o governo chinês não fez. Uma coisa que me impressionou é que, até agora, não houve um esforço para reformular o sistema de saúde fraturado e extremamente desigual do país. As epidemias revelam a natureza social da saúde e teria sido um momento oportuno para Pequim estabelecer um plano nacional de seguro ou, mais ambiciosamente, um sistema de saúde nacional totalmente público.

Embora pareçam ter feito um trabalho melhor fornecendo testes e atendimento a pacientes com COVID-19 do que os EUA (um atendimento reconhecidamente baixo), também é aparente que Pequim está disposta a viver com um sistema de assistência médica parcialmente privatizado, extrema e geograficamente desigual oferecendo cobertura mínima ou zero cobertura para a população rural e trabalhadores migrantes. Fala-se que a expansão da repressão em Hong Kong e a expansão militar no Mar da China Meridional são as áreas em que o Estado deseja avançar nesse momento de vantagem estratégica.

AS

Como o movimento socialista deve se posicionar nessa guerra de narrativas e rivalidades entre os EUA e a China?

EF

Estamos entrando em um período incrivelmente perigoso. Além dos deslocamentos econômicos e sociais provocados pela pandemia, forças poderosas na China e nos EUA pretendem alimentar a animosidade. Enquanto Tom Cotton e Trump propagam a noção de que a China é a única culpada pelas consequências do COVID-19 nos EUA, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, reafirma a alegação infundada de que os militares americanos trouxeram o coronavírus para a China. Dada essa retórica hostil e francamente desequilibrada das elites políticas de ambos os países, formas cada vez mais diretas de conflito estão no horizonte.

Nosso trabalho é reafirmar os valores internacionalistas de forma contínua e vigorosa: tomamos partido dos pobres, das classes trabalhadoras e das pessoas oprimidas de todos os países, o que significa que não compartilhamos absolutamente nada com os estados e as empresas dos EUA ou da China. Se aderirmos a um enquadramento nacionalista da crise, avançaremos em um entendimento de soma zero em que as perdas sofridas pela China são os ganhos obtidos pelos Estados Unidos. Esta política nos coloca no caminho para a guerra, seja ela econômica ou militar. As pessoas pobres de ambos os países têm mais a perder se isso vier a acontecer.

É ainda mais importante que os esquerdistas se manifestem sobre esse assunto, porque os liberais estão muito confusos. Enquanto alguns democratas se opuseram à retórica do “vírus da China”, eles não têm visão de como seria uma forma de interação ética com a China.

Por um lado, eles estão assombrados por uma “política de envolvimento” zumbi que sustenta que a interação incondicional reforçará “partes interessadas” dentro do PCCh. Mas até os Clintonistas incondicionais entendem, em algum nível, que essa ideologia está extinta. Isso, por sua vez, deixou os democratas tranquilos, o que tornou possível a mudança sinofóbica de Biden. Existem poucas coisas mais patéticas e perigosas do que seguir Trump com a xenofobia.

Uma grande reavaliação das relações EUA-China nos apresenta oportunidades. Ao invés de basear o relacionamento entre empresas americanas que exploram mão-de-obra chinesa e consumidores dos EUA que compram mercadorias chinesas, como tem sido o caso da geração passada, devemos exigir cooperação em saúde pública global, mudanças climáticas, desmilitarização e engajamento econômico que privilegie os trabalhadores e os pobres. As elites políticas de ambos os lados do Pacífico detestam reconhecer esses objetivos, precisamente porque sua realização se baseia em cooperação social profunda, em vez de competição e guerra étnico-nacional.

Sobre o autor

Eli Friedman é o autor de Insurgency Trap: Politics Labour in China Post-Socialist. Ele é Professor na Universidade de Cornell.

Sobre o entrevistador

Ashley Smith é um escritor socialista e ativista em Burlington, Vermont. Ele escreveu para várias publicações, incluindo Truthout, The International Socialist Review, Socialist Worker, ZNet, Jacobin, New Politics, e muitas outras publicações on-line e impressas. Atualmente, ele está trabalhando em um livro para a Haymarket Books, intitulado Socialismo e Anti-Imperialismo.

28 de abril de 2020

O coveiro-em-chefe do Brasil

Forrest Hylton

LRB Blog


Na semana passada, um jornalista perguntou a Jair Bolsonaro quantas pessoas no Brasil morreriam de Covid-19. O presidente respondeu que não tinha ideia: 'Eu não sou um coveiro', disse ele. Alguns dias antes, ele havia demitido seu ministro da Saúde, Luiz Enrique Mandetta. Falando cientificamente em suas coletivas de imprensa diárias e agindo consequentemente entre eles, Mandetta eclipsou Bolsonaro. Trabalhando com os governadores estaduais (os principais oponentes políticos do presidente), Mandetta alcançou um índice de aprovação quase o dobro de Bolsonaro e, mais importante, salvou centenas, senão milhares de vidas.

Em 27 de abril, o número oficial de casos de Covid-19 no Brasil é de 63.328 (20.715 em São Paulo) e houve 4.298 mortes (1.700 em São Paulo). Os números reais provavelmente são muitas vezes maiores, e a taxa de mortalidade diária não atingirá o pico antes de maio.

O sucessor de Mandetta, Nelson Teich, vem do setor de saúde privado. Seu primeiro passo foi nomear um general para trabalhar sob seu comando. Mesmo antes do início da crise, Teich havia expressado idéias neo-eugenistas sobre o valor da vida, com base em cálculos de lucros e perdas.

Como ele declara em suas aparições na TV, a principal preocupação de Bolsonaro é a economia; isso e a suposta conspiração contra ele pelos tribunais, pelo congresso e pela mídia. Não importa se todos eles são dominados pela direita e apoiaram o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016.

Bolsonaro ainda não apresentou os resultados dos testes do Covid-19 e continua fungando e tossindo em público, em um caso limpando o nariz no braço antes de apertar a mão de uma mulher idosa. Ele sai frequentemente e nunca usa máscara ou luvas. Supõe-se amplamente que ele tem o vírus e o está disseminando para seus seguidores evangélicos, que não acreditam nele, apesar de acreditar neles. Alguns certamente entendem isso: quando saem às ruas para protestar em favor da abertura de empresas, o fazem não a pé, mas isolados em seus carros de luxo. Outros aparentemente preferem o beijo da morte em comícios em massa. Em 19 de abril, os apoiadores de Bolsonaro se reuniram para exigir uma repetição do golpe de 1968 que fechou o Congresso, os tribunais e a mídia. Um dos divulgadores de uma manifestação em março morreu de Covid-19.

Como Trump, Bolsonaro tentou sequestrar remessas de equipamentos médicos destinados aos governadores da oposição de estados em necessidade, em particular o Maranhão, onde o governador comunista, Flávio Dino, comprou ventiladores de Santa Catarina. Os tribunais decidiram a favor de Dino. Bolsonaro ordenou que o exército e a indústria farmacêutica aumentassem a produção de hidroxicoloroquina e, como Trump, promoveu-a como uma possível cura milagrosa. Depois de se reunir com Bolsonaro em 24 de abril, o Conselho Federal de Medicina do Brasil aprovou seu uso, apesar da falta de evidências científicas.

Na cidade amazônica de Manaus, pessoas pesquisando a eficácia do medicamento receberam ameaças de morte. Uma possível fonte foi a milícia digital administrada pelos filhos de Bolsonaro, que, segundo a polícia federal, podem estar por trás de campanhas de notícias falsas, negando a seriedade do vírus. Em breve, Manaus terá 100 mortes por Covid-19 por dia, já que os hospitais estão em lotados, com 75% dos leitos de UTI já ocupados, e equipamentos de proteção individual estão faltando junto com ventiladores e médicos. O sindicato dos médicos do estado do Amazonas está exigindo que o governador e o vice-governador se demitam por negligência no uso de fundos públicos antes da pandemia.

No estado do Ceará,  violento e atingido pela pobreza, no nordeste, onde Bolsonaro promoveu recentemente greves e motins ilegais da polícia, está previsto um número diário de mortos de 250 em maio. Não graças ao governo federal, em 26 de abril o estado recebeu 90 toneladas de suprimentos médicos, EPIs e máscaras em cooperação com o consórcio dos governadores do nordeste.

Em 24 de abril, o ministro da Justiça, Sergio Moro, renunciou, alegando ter evidências de que Bolsonaro havia violado a lei ao demitir o chefe da polícia federal, mentindo para o Diário Oficial e tentando nomear outra pessoa para interromper a investigação em andamento sobre seus filhos e, em vez disso, iniciar novos contra os governadores do Rio e São Paulo, bem como o chefe do Congresso, Rodrigo Maia (os três são ex-aliados do presidente). Bolsonaro chamou Moro de mentiroso; seus filhos o chamaram de traidor. Um candidato a ser o novo chefe da polícia federal, Alexandre Ramagem, é amigo dos filhos de Bolsonaro. Quando perguntado sobre isso, Bolsonaro respondeu: "E daí?"

Em seu discurso de demissão, Moro relutantemente elogiou os governos do PT de Lula e Dilma por respeitarem a independência do judiciário. Isso confirmou as suspeitas dos seguidores de Bolsonaro de que Moro é um "lixo comunista". Como juiz, Moro liderou a campanha anticorrupção que colocou Lula na cadeia. No ano passado, Glenn Greenwald recebeu uma série de mensagens privadas do Telegram que pareciam mostrar Moro colaborando com a promotoria e violando a lei, ao mesmo tempo que conscientemente fornecia cobertura aos políticos mais corruptos do Brasil. Mais do que o próprio Bolsonaro, Moro era o homem dos Estados Unidos na luta para destruir Lula e o PT. Sem ele, Bolsonaro não poderia ter sido eleito.

Os militares expressaram preocupação com as acusações de Moro contra Bolsonaro. O procurador-geral quer investigá-lo. Alguns dos ex-apoiadores do presidente no Congresso estão considerando processos de impeachment. Ele está ainda mais isolado, desesperado e vulnerável do que antes. É provável que o exército seja o árbitro final de seu destino, mas, neste momento, a questão para um número crescente de figuras importantes, junto com seus aliados políticos de direita, é se o impeachment ou a renúncia oferecem um caminho a seguir. É difícil imaginar o impeachment avançando, e mais difícil imaginar Bolsonaro renunciando. Se ele cair, no entanto, ninguém será capaz de culpar Lula, Dilma e o PT por sua morte: será culpa de Bolsonaro (e de seus filhos) sozinho.

Independentemente disso, à medida que as maquinações avançam, os brasileiros, principalmente os pobres negros e pardos das cidades, continuarão morrendo a uma taxa mais alta do que em qualquer outro lugar da América Latina.

27 de abril de 2020

Não podemos nos contentar com direitos humanos

A ideia de direitos humanos já foi intimamente ligada ao igualitarismo e à política socialista. Na década de 1990, foi usada para justificar o neoliberalismo.

Samuel Moyn

Jacobin

Eleanor Roosevelt segurando um cartaz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Lake Success, Nova York, novembro de 1949. Biblioteca e Museu Presidencial FDR

Entrevista por
Rafael Khachaturian

Samuel Moyn é professor Henry R. Luce de Jurisprudência e professor de História na Universidade de Yale. Entre seus livros estão The Last Utopia: Human Rights in History em 2010, Human Rights and the Uses of History em 2014, Christian Human Rights em 2015 e Not Enough: Human Rights in an Unequal World em 2018. Moyn também escreveu para Jacobin, Boston Review, Chronicle of Higher Education, New Republic, Nation, New York Times e Dissent.

Mais recentemente, Moyn se concentrou em examinar o legado dos direitos sociais, apontando para sua complexa relação com os direitos humanos na era moderna. Embora os direitos humanos tenham sido centrais para a ordem global liberal desde a década de 1990, ele sugere que eles não têm sido veículos particularmente eficazes para políticas igualitárias. Sob as condições atuais de crescente desigualdade econômica e crise capitalista, as demandas por justiça econômica e redistribuição se tornaram mais proeminentes. Neste momento, o trabalho de Moyn nos encoraja a recuperar uma concepção de direitos sociais que pode nos reorientar para um futuro mais igualitário.

Rafael Khachaturian entrevistou Moyn recentemente sobre a política de direitos humanos e sociais dos anos do pós-guerra até o presente. A seguir, uma transcrição editada da conversa.

Rafael Khachaturian

Muitos acadêmicos e intelectuais públicos escreveram recentemente sobre este ser um período de crise. Alguns chamam de "crise da democracia liberal". Outros chamam de crise do neoliberalismo. Qual é sua perspectiva geral sobre o estado da democracia e da política democrática neste momento?

Samuel Moyn

Há um amplo debate sobre como responder a esta pergunta. A democracia é fundada na dificuldade de representar o povo e, em nosso momento contemporâneo, parece que muitas pessoas afirmam erroneamente o quão nova é a crise, pelo menos nos Estados Unidos. Tenho me preocupado principalmente em homogeneizar lugares diferentes, com todas as suas especificidades, como se houvesse apenas uma síndrome. É verdade que lugares diferentes, especialmente do outro lado do Atlântico Norte, compartilham algumas características significativas. Se olharmos para os chamados países populistas, incluindo o Sul global, como a Índia, apenas em alguns poucos, como as Filipinas, vemos um deslizamento para o autoritarismo absoluto — talvez agora, com exceção da Hungria de Viktor Orbán na pandemia.

Eu queria fazer uma verificação antes de abraçarmos o medo de que a democracia esteja morrendo ou que esteja à beira do fascismo e da tirania. Não porque não haja problemas, mas porque os problemas são de longa data, especialmente para classes significativas de vítimas. Como muitos outros, coloquei ênfase em fatores econômicos de longo prazo, de modo que 2016 parece tanto uma consequência das políticas neoliberais quanto um catalisador para sua extensão ainda maior. Estamos realmente vendo as consequências de escolhas de longo prazo, seja na economia ou na postura de guerra dos Estados Unidos após 1989.

Rafael Khachaturian

Em seu livro mais recente, Not Enough: Human Rights in an Unequal World, você escreve que “os direitos humanos se tornaram prisioneiros da era contemporânea da desigualdade”. Antes de chegarmos a essa história, onde estão os direitos humanos hoje? Hoje é diferente dos anos 1990 e 2000, quando o discurso dos direitos humanos era a língua franca da política internacional?

Samuel Moyn

É um momento fascinante que é claramente bem diferente do entusiasmo milenar em torno dos direitos humanos. Acho que estamos vendo uma espécie de depressão dupla. Na década de 1990, os direitos humanos estavam na moda, não apenas como coisas que estavam sendo institucionalizadas, mas quase como a moralidade no fim da história. Tudo o que restava era espalhar o evangelho. Obviamente, os direitos humanos se referem a alguns valores cruciais, sejam apenas liberdades civis ou mesmo direitos econômicos e sociais que começaram a ser buscados em alguns lugares, como o direito à saúde, água ou saneamento.

Mas desde então, notamos algo que passou despercebido na década de 1990, que era que a maioria dos governos estava se comprometendo com um novo tipo de governança economicamente neoliberal. Isso fez com que a fé em torno dos direitos humanos e o desejo de promovê-los fossem companheiros, pelo menos cronologicamente, da vitória das políticas neoliberais, o que, por sua vez, significou expandir a desigualdade em muitos lugares.

Not Enough é realmente uma tentativa de reconhecer essa coincidência e pensar sobre isso. Não estamos reconhecendo o fato deprimente de que houve uma reação negativa por meio da ascensão de partidos e políticos que rejeitam os direitos humanos. Mas também há uma depressão mais profunda, que é que parecia que em um ponto estávamos à beira de respostas definitivas sobre como enquadrar nossas expectativas sobre a boa vida, e o plano não deu certo. Acho que as pessoas estão confusas e tateando por respostas, tendo percebido que os direitos humanos não são a moralidade do fim da história.

Rafael Khachaturian

Apesar do sucesso deles depois da década de 1970, você sugere que os direitos humanos foram insuficientes para sustentar reivindicações sobre igualdade material. É um problema inerente à linguagem dos direitos humanos em si e como eles foram interpretados? Ou a nobre linguagem dos direitos humanos foi varrida pelas transformações sociais mais amplas que vivenciamos desde a década de 1970?

Samuel Moyn

Os direitos humanos nunca tiveram a intenção, nem mesmo no papel, de promover a igualdade distributiva. Eu falo no livro sobre outra dimensão da igualdade que chamo de "igualdade de status", e os direitos humanos estão muito conectados à proposição de que ninguém deve ser tratado de forma diferente por causa do tipo de pessoa que é, de sua raça ou origem indígena, ou de seu gênero. Mas a igualdade distributiva ou material não é realmente mencionada como um direito humano, ou como uma meta dos direitos humanos, em nenhum tratado ou na mobilização de direitos humanos convencional.

O problema, então, é que os direitos humanos são seletivos. Eles identificam algumas preocupações morais, mas deixam a desigualdade distributiva de fora como uma preocupação moral. Agora, poderíamos dizer que alguns direitos — especialmente os direitos econômicos e sociais que estão em vários tratados e perseguidos por vários movimentos — deveriam ter o efeito de aumentar a igualdade material se fossem aplicados. Mas isso seria um tipo de compromisso indireto, e realmente teríamos que descobrir se, de fato, o avanço dos direitos humanos é uma receita indireta para mais igualdade distributiva ou material.

E se os direitos humanos não apenas não mencionam, mas não promovem a igualdade distributiva? Uma possibilidade é que seja aceitável deixar de fora a desigualdade material porque não é errado, desde que os direitos humanos sejam reivindicados, especialmente os direitos mais básicos. Eles incluiriam direitos econômicos e sociais, que fornecem o que chamo de provisão suficiente — por exemplo, todos recebendo assistência médica, água e saneamento suficientes. Podemos imaginar um mundo em que mais pessoas tenham direitos básicos, mesmo com o aumento da desigualdade. E uma resposta é: não importa se há desigualdade restante ou mesmo piorando — ou você poderia dizer, é problema de outra pessoa. Alguns defensores dos direitos humanos abraçam abertamente essa autodefesa. Outros insistem, de forma quase oposta, que os direitos humanos já cobrem a igualdade ou a fornecem (há pouca evidência para essa proposição), ou poderiam se ajustados. O debate entre essas duas possibilidades é o que eu esperava abrir.

Eu mesmo argumento que devemos manter os direitos humanos para o que eles são bons, mas também mantê-los em seu lugar e exigir outros ideais e agentes para promover esses ideais. Como você sugere, os direitos humanos foram institucionalizados desde os anos 1970 ou 1990, quando você quiser começar esta história, em meio à desigualdade galopante em muitas nações. Devemos concluir disso que eles são seletivos ou não são bons em promover objetivos igualitários, e então ter um debate sobre quais são as consequências desse fato.

Rafael Khachaturian

Você se concentra na ideia de direitos sociais como uma contrapartida aos direitos humanos, argumentando que eles nos fornecem algo que estes últimos não podem cumprir por si mesmos. Como os direitos sociais diferem dos direitos humanos? Você os vê como em tensão um com o outro ou como condições necessárias para que ambos sejam bem-sucedidos?

Samuel Moyn

Depende de como definimos nossos termos. No livro, tentei dar uma história da noção moderna de direitos econômicos e sociais. O que isso significa é mostrar o quão diferente as pessoas entenderam o que eles são e o que realizam. Na história recente, especialmente desde 1989, é justo notar que mesmo organizações de direitos humanos muito tradicionais fizeram dos direitos econômicos e sociais parte do que monitoram e das políticas que buscam. Mas o que eu argumento é que, mesmo quando isso aconteceu, os direitos econômicos e sociais estavam disfarçados de provisão suficiente, não em um espírito igualitário. Eles estão lá para garantir algum limite, algum direito que os indivíduos supostamente têm a várias decências da vida.

Há outra noção, um pouco diferente, talvez rival, de direitos econômicos e sociais, no entanto. É mais antiga do que o que chamamos de direitos humanos, especialmente em direitos humanos internacionais — ou seja, direitos trabalhistas. Movimentos trabalhistas e partidos socialistas lutaram por saúde e segurança no local de trabalho e por uma jornada e semana de trabalho limitadas. Mesmo assim, não era apenas por uma questão de provisão suficiente, mas como um meio para um fim de empoderamento do trabalhador. E o direito com o qual eles mais se importavam era o direito de se organizar e agitar, porque eles entendiam que os direitos eram parte de sua campanha para construir poder para desafiar aqueles que controlavam a economia, para obter um acordo mais igualitário para si mesmos, ou mesmo para redefinir os termos de produção, distribuição e troca.

É nesse ponto que os direitos sociais diferiram historicamente do que os direitos humanos passaram a significar hoje, porque antes estavam conectados a uma meta igualitária de empoderar a classe trabalhadora. Os direitos humanos hoje são principalmente voltados para fornecer quantidades suficientes das decências da vida aos mais desfavorecidos. Essa é apenas uma agenda diferente. É nobre, mas não é a única que existe.

Rafael Khachaturian

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 figura com destaque em sua narrativa. Você observa que ela ajudou a consolidar a ideia de direitos sociais como exigindo algum grau de igualdade distributiva. O que esse equilíbrio entre direitos sociais e direitos humanos implicou, especificamente no momento do pós-guerra? Em retrospecto, o que a declaração universal realizou?

Samuel Moyn

Em um livro anterior sobre a história dos direitos humanos, The Last Utopia: Human Rights in History (2010), eu queria fazer um ponto negativo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que as Nações Unidas propuseram em dezembro de 1948. O que me impressionou então é como poucas pessoas pareciam notá-la e como ela não deu origem ao que consideramos política de direitos humanos, incluindo leis de direitos humanos e movimentos transnacionais de direitos humanos.

No novo livro, dei uma segunda olhada naquela época e percebi que, como estava procurando por algo na década de 1940 que era muito cedo para encontrar lá, perdi um ponto mais importante. Quando voltamos e contextualizamos a Declaração Universal na política da década de 1940, ela acaba sendo algo como uma carta para os estados de bem-estar social nacionais que estavam se tornando o objetivo comum do outro lado do Atlântico, e também o objetivo mais alto dos movimentos — não apenas organizações não governamentais, mas sindicatos e partidos socialistas que às vezes estavam chegando ao poder.

A implicação é que, embora a Declaração Universal não mencione novamente a igualdade distributiva como um objetivo, o fato de incluir direitos econômicos e sociais reflete uma crença antiga da década de 1940 de que o objetivo dos estados era criar uma vida boa para seus cidadãos. Isso envolverá alguma provisão suficiente, mas também mais igualdade, distributivamente, do que antes ou no nosso caso desde então. O que eu quero fazer é menos reivindicar a Declaração Universal, mas reexaminar a era do estado de bem-estar social como uma que, apesar de algumas falhas muito grandes, ainda apresentava o objetivo e a conquista da igualdade distributiva mais do que qualquer outra era da história moderna.

Rafael Khachaturian

Os estados de bem-estar do Norte Global durante esse período também tiveram sérias contradições internas. Seria justo dizer que a conquista de direitos sociais foi baseada em exclusões que eram tanto internas, como no caso de mulheres e grupos minoritários, quanto externas, já que o Sul Global não estava integrado à mesma rede de igualdade distributiva?

Samuel Moyn

É completamente justo. Seria errado ser nostálgico de qualquer forma por esses estados de bem-estar, precisamente pelo motivo que você mencionou. Do outro lado do Atlântico, esses novos estados de bem-estar organizaram a justiça em torno do ganha-pão masculino, beneficiando mulheres e crianças apenas na medida em que estavam ligadas a esse ganha-pão masculino, normalmente um trabalhador industrial. Isso significou a exclusão quase universal de mulheres do tipo de igualdade de status que tentamos fornecer desde então, graças à agitação feminista. Também houve exclusões massivas em estados de bem-estar históricos com base em etnia e raça: considere que os programas sociais no New Deal americano eram profundamente racializados.

Finalmente, os estados de bem-estar eram pela igualdade dentro das nações, não entre elas. Na época da Declaração Universal, havia cerca de cinquenta estados. Agora temos duzentos. E muitos dos estados que abraçaram os direitos humanos e o bem-estar igualitário em casa ainda estavam administrando grandes impérios, e não havia um projeto distributivo concedido aos seus próprios súditos imperiais. Então, embora os homens brancos em casa no Norte Global obtivessem alguma provisão suficiente e igualdade distributiva, os súditos coloniais não obtiveram nenhuma das duas coisas. Não era de se admirar que eles buscassem a descolonização e uma espécie de globalização do estado de bem-estar no período subsequente. Infelizmente, uma vez que a descolonização aconteceu, a disparidade econômica entre o que hoje chamamos de Norte e Sul Global realmente piorou. Se a igualdade distributiva é uma meta digna, ela tem que ser resgatada dessas deficiências.

Rafael Khachaturian

A década de 1970 foi um período crítico para a mudança daquela ordem do pós-guerra. Você percebe que a linguagem dos direitos humanos começou sua ascensão naquela época, enquanto a linguagem do socialismo estava começando a declinar. Qual foi o papel da existência de estados socialistas em levar os estados capitalistas ocidentais a aceitar alguma noção de igualdade distributiva? Depois disso, o que aconteceu depois da década de 1970 que permitiu que os direitos humanos fossem desalojados da estrutura nacional em que estavam inseridos e então se tornassem transnacionalizados?

Samuel Moyn

Este é o momento crucial para refletir e tentar entender. Saindo da Segunda Guerra Mundial, as pessoas se comprometeram com modos de justiça nacional, como mencionei, incluindo algum mínimo de igualdade distributiva. Este é o período em que o socialismo está no auge, não apenas atrás da Cortina de Ferro, mas globalmente. Pense em um estado como Israel, fundado no exato momento em que a Declaração Universal é proposta, e a coisa incrível que nunca devemos esquecer é que ele foi fundado por pessoas que poderíamos chamar de nacional-socialistas (n minúsculo, s minúsculo, obviamente). Lá eles excluem muitas pessoas, principalmente os palestinos, mas querem um estado para os judeus que seja socialista e que reflita o espírito da época: inclusivo e igualitário, mas também excludente e hierárquico.

O que acontece na década de 1970 é que, mesmo com o contrato social em casa se desgastando e o socialismo sendo abandonado, especialmente em países capitalistas ocidentais, há uma extensão do olhar para fora. De certa forma, isso foi nobre porque o imaginário nacionalista que prevaleceu em meados do século XX, mesmo que fosse socialista, não era sobre construir um mundo justo. Você teve muitas pessoas que redefiniram o idealismo em termos de direitos humanos, que agora estão muito menos conectados a um projeto de justiça social doméstica e mais conectados a um projeto minimalista de justiça internacional. Não tem componente distribucional, mas é um tipo de programa cosmopolita de fornecer liberdades civis globalmente. É uma escolha importante. Você pode pensar nisso como uma expansão e uma contração do projeto que existia antes.

Temos que observar ambos os lados para entender por que foi tão emocionante para as pessoas irem além do momento nacionalista para o mais cosmopolita. Mas o que foi perdido até mesmo pelos próprios atores é essa contração. Essas são as pessoas — na Anistia Internacional e na Human Rights Watch, por exemplo — que tornam a Declaração Universal famosa pela primeira vez, mas como se apenas a primeira metade importasse, sem a segunda metade que continha direitos econômicos e sociais, muito menos aquele tipo de programa igualitário que deu significado à Declaração Universal em seu próprio tempo.

Rafael Khachaturian

Você abre seu livro com um relato de Zdena Tominová, um membro-chave da Carta 77, o grupo tchecoslovaco que criticou o governo comunista por não defender os direitos humanos. Para aquele grupo de intelectuais dissidentes no bloco oriental, os direitos humanos e os direitos sociais estavam entrelaçados e integrados uns aos outros.

Samuel Moyn

Certo. Era imaginável dizer que os direitos humanos deveriam manter seus vínculos não apenas com os direitos sociais, mas com um programa igualitário ainda mais ambicioso. Só que essa possibilidade, que era hipotética, não venceu na prática. Organizações ocidentais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch simplesmente ignoraram a distribuição, e os Estados Unidos adotaram uma diplomacia de direitos humanos ainda muito estreitamente focada em liberdades civis. Surpreendentemente, a notória Comissão de Direitos Inalienáveis ​​do atual secretário de estado Mike Pompeo quer restringir os direitos humanos que a América defende a um número ainda menor do que o conjunto restrito que ela tem buscado no exterior desde a década de 1970.

Rafael Khachaturian

Você argumenta que a linguagem dos direitos humanos se sobrepôs ao surgimento do neoliberalismo durante esse período. Mas a relação entre eles é bastante complicada. Você critica as alegações de que os direitos humanos são simplesmente uma cortina de fumaça para as políticas econômicas neoliberais. Em vez de dizer que o neoliberalismo causa diretamente a disseminação dos direitos humanos, deveríamos pensar neles como uma condição necessária, mas não suficiente, para o sucesso do neoliberalismo na década de 1980?

Samuel Moyn

Se vamos começar a detalhar as razões pelas quais a economia política mudou na década de 1970 e por que o neoliberalismo prevaleceu, não acho que os direitos humanos estejam perto do topo da lista. Também não está claro o que ganhamos ao insistir que está em algum lugar lá embaixo. Os direitos humanos são parte do mundo que o neoliberalismo trouxe. Mas não parece ser a coisa mais importante, criticamente, atacar ou culpar os direitos humanos por serem um grande fator causal. No entanto, precisamos pensar muito seriamente sobre o que isso nos diz sobre os direitos humanos — que eles são parte da ecologia neoliberal e como ela foi criada.

O socialismo, incluindo agentes de justiça igualitária como sindicatos, não conseguiu sobreviver no novo habitat construído pelo neoliberalismo. Os próprios partidos socialistas se transformaram em uma direção neoliberal. Por outro lado, os direitos humanos não apenas sobreviveram, mas prosperaram, mas especialmente como ideais a serem perseguidos. Os direitos humanos puderam se adaptar a essa mudança porque não eram uma ameaça tão séria ao neoliberalismo. As coisas que os direitos humanos têm tentado promover não eram tão profundamente desafiadoras para a transformação neoliberal da economia política e poderiam até mesmo prometer uma forma "humana" dela.

Rafael Khachaturian

Olhando para o futuro, é possível reincorporar os direitos humanos em projetos igualitários? Há alguma tendência atual que você observou que tornaria isso possível — por exemplo, recuperar os direitos sociais transnacionalmente para lidar com a crise ecológica?

Samuel Moyn

Devemos manter os direitos humanos, mas eles não esgotam as soluções para todos os projetos que devemos perseguir. Um deles seria um projeto igualitário que pode exigir uma agenda completamente diferente. Precisamos criar espaço para uma nova versão de partidos e movimentos progressistas que não sejam dedicados apenas aos direitos humanos, mas também à justiça igualitária. E não podemos cometer o erro do estado de bem-estar social de construir o socialismo em um país, mas precisamos que os progressistas abracem o horizonte global que os cosmopolitas dos direitos humanos ajudaram a imaginar.

Você está levantando uma possibilidade fascinante de que a crise ecológica pode fornecer um novo cenário para pensar sobre essa mudança na agenda. Um dos pensadores que admiro, Pierre Rosanvallon, cunhou a noção de que um "reformismo do medo" impulsionou a mudança social progressiva no passado, na maior parte. Pense nas respostas à Grande Depressão. A razão pela qual os ricos estavam dispostos a aceitar altos impostos e acordos sociais mais justos era que, caso contrário, eles enfrentariam resultados ainda piores. Eles foram pressionados a viver vidas não separadas, e em vez disso a viver entre o resto de nós e em uma situação comum.

Talvez a crise ecológica seja uma ameaça igual ou até maior, o suficiente para forçar os tipos de resultados que as pessoas temiam no passado e que as mobilizaram para fazer reformas cruciais. Como muitos na geração jovem de reformadores estão dizendo, e como o tema do Green New Deal reflete, a catástrofe ambiental é algo que pode nos ajudar a aumentar a consciência sobre a justiça social em geral e forjar a possibilidade de escolhas diferentes das que prevaleceram ultimamente.

Colaborador

Samuel Moyn é professor Henry R. Luce de jurisprudência na Faculdade de Direito de Yale e professor de história na Universidade de Yale.

Gigantes da tecnologia estão usando essa crise para colonizar o sistema de assistência social

Nos últimos anos, empresas como Google e Facebook usaram o Sul Global como uma base de testes para novas e não regulamentadas formas de coleta de dados. Diante do coronavírus, os mesmos mecanismos estão sendo implementados em todo o mundo - com a coleta de dados com fins lucrativos se tornando cada vez mais central na gestão dos estados de seus sistemas de bem-estar.

João Carlos Magalhães e Nick Couldry


Um sinal de "curtir" fica na entrada da sede do Facebook em 18 de maio de 2012 em Menlo Park, Califórnia. Stephen Lam / Getty.

Tradução / Na infinidade de prognósticos sobre como a pandemia do coronavírus transformará o mundo, uma previsão se destaca: retornaremos a um renovado Estado de bem-estar social. O jornal The Economist disse: “O Estado grande está de volta”. Invertendo o lema de Thatcher, Boris Johnson observou que “existe sim essa coisa de sociedade”. Argumenta-se que a pandemia poderia superar o neoliberalismo, triunfando onde a crise financeira de 2008 fracassou.

Em certa medida, a mudança parece já estar em andamento. Governos estão resgatando empresas, nacionalizando folhas salariais e redirecionando a produção industrial para necessidades sanitárias urgentes. Ideias há muito tempo discutidas e rechaçadas, como as garantias mínimas de renda, de repente se tornaram realidade em países como a Espanha. Alguns afirmam (ou esperam) que a natureza coletiva da atual catástrofe pode promover o ressurgimento da solidariedade social, revivendo um certo “espírito” da Segunda Guerra Mundial.

Mas se um novo bem-estar social vai surgir desta crise, será um “bem-estar” bem diferente daquele imaginado no período pós 1945. Ele será fortemente impulsionado por empresas privadas, que usarão suas ferramentas e plataformas, cujo objetivo final é gerar lucro. Fundamentalmente, esse bem-estar social será baseado em formas opacas e intrusivas de dataficação. Com isso, queremos dizer não apenas a intensificação da vigilância digital – o que, como foi tantas vezes dito, já está acontecendo – mas dois processos interconectados: “a transformação da vida humana em dados por meio de processos de quantificação e a geração de diferentes tipos de valor a partir dos dados”. Um sistema de bem-estar dataficado consolidará as grandes empresas de tecnologia (Big Tech) como instituições essenciais no funcionamento básico do Estado e da sociedade. Se isso acontecer, não veremos um retorno ao mundo que existia antes do neoliberalismo, como alguns esperam, mas o surgimento de uma nova ordem social centrada no que Nick Couldry e Ulises Mejias chamaram recentemente de colonialismo de dados.

Relações entre público e privado

É preciso contextualizar esse processo para entendê-lo. O entrelaçamento da dataficação e do bem-estar social não é novo, e muitas vezes representa uma ameaça aos próprios direitos humanos que esses arranjos deveriam proteger.

Uma excelente introdução a essas questões foi publicada em outubro de 2019 por Philip Alston, professor de direito da New York University e relator especial da ONU. O relatório da Alston demonstra que, tanto nos países ricos quanto nos pobres, a seguridade social é cada vez mais impulsionada por “dados e tecnologias digitais que são usados para automatizar, prever, identificar, vigiar, detectar, direcionar e punir”. Essas tecnologias envolvem o desenvolvimento de sistemas de identificação biométrica, como o Aadhaar na Índia, e de sistemas automatizados em países como Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos, que avaliam quem é elegível para determinados programas de assistência social e quanto deve ser pago aos beneficiários.

As evidências examinadas por Alston sugerem que as consequências negativas superam largamente as positivas. Apesar de alguns ganhos em eficiência, esses sistemas são propensos a produzir erros e injustiças e a reduzir a capacidade dos cidadãos de compreender e negociar a injustiça dessas decisões computacionais. Eles também geralmente dependem dos dados coletados em condições desiguais, comprometendo a própria ideia de consentimento, sem falar na constante ameaça de tais dados serem acessados ​​ou hackeados para fins comerciais, criminais e políticos. Esses sistemas também arriscam, como diz Virginia Eubanks em seu extraordinário estudo sobre a dataficação do bem-estar social nos Estados Unidos, criando uma “distância ética” entre as classes, enquanto reproduz antigas “hierarquias de valor humano”. Mesmo onde esses danos específicos estão ausentes, o direito das populações de viverem livres da vigilância contínua e da experimentação baseada em dados tem sido corroído.

A situação não é muito melhor quando consideramos o bem-estar social em escala global – o que geralmente é chamado de “desenvolvimento internacional” e ajuda humanitária. “Em nome do desenvolvimento”, afirmam os pesquisadores Linnet Taylor e Dennis Broeders, sistemas difíceis de entender ​​e práticas injustas de coleta de dados foram amplamente adotados.

Populações vulneráveis ​​têm sido usadas como campo de teste para novas tecnologias de extração e desenvolvimento de dados. Um exemplo é o surto de Ebola de 2014, quando atores da comunidade humanitária tiveram acesso a registros telefônicos detalhados de cidadãos da Libéria. Os registros foram praticamente inúteis – mas as organizações que pressionaram pelo acesso puderam “ganharam comercialmente” com isso, “por meio da vantagem competitiva sobre outras organizações humanitárias ou por meio de testes de produtos comerciais”.

Como o caso do Ebola demonstra, Estados são apenas um dos diversos atores nas parcerias público-privadas consideradas necessárias para fornecer soluções “inovadoras” de bem-estar social. Programas e projetos são geralmente desenhados e executados por organizações que ou trabalham em mercados competitivos, como ONGs, ou são, elas próprias, empresas com fins lucrativos. Esses arranjos emergem da percepção de que os governos não possuem a expertise humana, a capacidade tecnológica e os dados necessários para “solucionar” questões sociais complexas, como pobreza, desigualdade e saúde.

Nessas iniciativas, a dataficação do bem-estar e do desenvolvimento social depende de uma típica racionalidade neoliberal, e sua crença de que as empresas privadas devem preencher o vazio deixado por Estados ineficazes, tanto no Sul quanto no Norte Global.

Inteligência Artificial para o bem social?

Uma lógica semelhante afeta projetos em todo o mundo que, no jargão dos “empreendedores sociais” e consultores digitais, foram denominados “Inteligência Artificial (IA) para o bem”. As Big Tech aderiram ansiosamente ao hype. O Facebook lançou seu “Fórum sobre o Bem Social” em 2017, oferecendo “ferramentas e iniciativas para ajudar as pessoas a manterem-se seguras e com o apoio do Facebook”. A empresa tem criado várias iniciativas para fornecer conectividade , e seu controverso programa Free Basics ainda está em expansão, embora exija que os usuários concedam seus dados em troca de uma conexão simplificada (uma razão pela qual foi banido na Índia).

Depois de “Lucy”, um projeto lançado no Quênia em 2014 que prometeu usar IA para “resolver questões de saúde, educação, água, saneamento, mobilidade humana e agricultura” – e amplamente criticado por suas soluções vagas e interesse comercial – a IBM apresentou uma iniciativa intitulada de “Ciência e Bem Social”. Seu objetivo é nada menos do que “resolver os problemas mais difíceis do mundo” por meio de “ciência e tecnologia”.

Em 2019, o Google.org – a divisão filantrópica do gigante das buscas – redirecionou seu projeto multimilionário Impact Challenge para propostas que tenham a finalidade de ” usar a IA para ajudar a enfrentar os desafios da sociedade“. A Microsoft chama sua iniciativa de “IA para o Bem”. Ela aborda questões como mudança climática, crise humanitária e saúde.

Alguns desses projetos são formas tradicionais de caridade – por exemplo, a doação de dinheiro e de recursos humanos e computacionais para ONGs e pesquisadores poderem desenvolver suas próprias tecnologias. Outros envolvem práticas que intensificam a coleta de dados de populações vulneráveis. Mas todos representam um aumento em massa da capacidade das empresas de intervir na gestão da vida social: o meio apenas melhora sua capacidade de extrair e processar dados.

Considere a “ferramenta de prevenção ao suicídio” do Facebook, que emprega aprendizado de máquina para interpretar vários sinais comportamentais e identificar postagens que sugerem que “alguém pode estar em risco” de se matar: esse projeto simplesmente não poderia existir sem o poder preexistente do Facebook de acessar e analisar todas as ações dos usuários em sua plataforma, por mais pessoais que sejam. Recentemente, o sistema foi patenteado pela empresa.

Na América do Sul, a Microsoft é parceira do Projeto Horus, que diz ajudar governos com o uso de “inteligência artificial na prevenção de gravidez na adolescência e da evasão escolar“. Na Argentina, o projeto coletou “informações completas, constantes, compartilhadas e atualizadas” sobre menores vulneráveis ​​na província de Salta. Esse “banco de dados único”, como argumentaram seus criadores em 2018, alimentou um sistema de aprendizado de máquina que poderia supostamente “prever” quem teria mais chances de parar de frequentar a escola ou engravidar, conclusões que embasariam a ação do governo sobre esses indivíduos. O fato de o projeto ter sido amplamente criticado na Argentina por sua vigilância agressiva e previsões errôneas não impediu que ele fosse incentivado pelo UNICEF e pilotado no Brasil, com a cooperação do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. No país, a iniciativa se concentra em crianças pobres que já estão registradas no Cadastro Único do governo federal – um dos maiores bancos de dados de assistência social do mundo, com informações de mais de 73 milhões de pessoas.

Quando o novo coronavírus surgiu, foi para uma versão desse discurso de “bem social” que as Big Tech se voltaram. Embora Estados tenham se atrapalhado com suas respostas à crise, as empresas reagiram rapidamente e, para todos os efeitos, de forma decisiva. Mark Zuckerberg mencionou a COVID-19 pela primeira vez em 4 de março. Ele disse então que o Facebook não apenas ajudaria as pessoas a “permanecerem conectadas”, mas também forneceria “informações confiáveis ​​e precisas” e contribuiria para os “esforços no sentido de conter o surto”.

Desde então, as notícias não pararam de chegar: o Facebook financiaria “a aquisição de máquinas de diagnóstico para COVID-19 aprovadas pela FDA [agência regulatória norte-americana]”, iniciaria um “Fundo de Resposta Solidária”, “investiria” US$ 100 milhões para ajudar pequenas empresas, lançaria um “Centro de Informações sobre Coronavírus” e permitiria que os pesquisadores realizassem uma “pesquisa sobre sintomas” em sua plataforma, além de várias doações multimilionárias para pesquisas em saúde e iniciativas de fact-checking. O Facebook não está sozinho. O Google também doou muitos milhões de dólares e dados de mobilidade e colaborou com várias autoridades públicas. Ele também criou um portalque registra os sintomas das pessoas, classifica-as para determinar quem precisa do teste drive-thru e exibe os resultados dos testes assim que disponíveis., levando alguns a suspeitar que isso pode ser um golpe para capturar dados. O CEO do Twitter prometeu doar um quarto de sua riqueza, aproximadamente US $ 1 bilhão.

Tomada de território

Não há evidências de que essas organizações não sejam sinceras em seu desejo de ajudar. Nem se pode dizer que o trabalho delas não salvará vidas; muito possivelmente salvará. No entanto, as implicações de suas intervenções são muito mais ambíguas. Dizer que essa crise pode ajudar as Big Tech a recuperar seu prestigio moral, revertendo o “techlash” pós-2016 pode estar correto – mas é também míope. Suas respostas à pandemia estão inerentemente relacionadas à principal forma de criação de valor das empresas: o colonialismo dos dados.

Esta é a grande história aqui: a continuação e a aceleração de uma nova tomada de território de proporções sem precedentes, merecendo o termo “colonialismo”. Há cinco séculos, o colonialismo histórico tomou posse de terras, seus recursos e corpos. Hoje, essa apropriação é direcionada à própria vida humana e ao valor que pode ser extraído dela na forma de dados. Como essa extração de dados funciona apenas por meio do rastreamento contínuo de inúmeros aspectos da vida cotidiana, o direito fundamental dos seres humanos de viver livre da vigilância se torna o dano colateral do avanço corporativo.

Que tipo de “bem-estar” isso produz? Quando se diz que as plataformas emergirão dessa crise como ” utilidades digitais “, geralmente se supõe que essas utilidades estejam relacionadas ao fornecimento de informações e espaços para interação virtual – o cerne dos modelos de negócios das Big Tech. Mas, desde o início, essas empresas foram marcadas por uma agressiva visão expansionista, que coloniza partes cada vez maiores da vida humana para extração de dados.

O objetivo é tomar não apenas um tipo de prática social, mas a própria vida humana. O Google começou como um organizador de banco de dados, mas agora é um conglomerado (Alphabet) que opera em áreas tão diversas como saúde, infraestrutura urbana, transporte e manejo de capital financeiro. O Facebook começou como uma ferramenta de networking para estudantes de universidades norte-americanas de elite, mas agora diz ser capaz de conectar uma “comunidade global” de mais de 2 bilhões de pessoas, e planeja criar uma moeda digital global, suscitando preocupações de que possa “corroer o controle nacional sobre o dinheiro“, há séculos considerado uma prerrogativa dos governos. Não há limites claros sobre quais áreas podem ser exploradas com fins lucrativos, mesmo que certos segmentos da população representem alvos particularmente úteis.

Até que ponto os Estados ricos, enfraquecidos pela crise da COVID-19, aproveitarão as novas oportunidades de provisão de bem-estar baseada em dados, não é, neste momento, exatamente claro. O que é aparente é que a doença apresenta mais uma oportunidade – particularmente importante – para essa expansão. Há alguns meses, as Big Tech teriam sido alvo de críticas se tentassem usar os dados de bilhões de pessoas para rastrear um surto de vírus, como estão fazendo Facebook, Google e Apple. A pandemia parece ter tornado esse trabalho repentinamente desejável.

Há diversas questões sobre os perigos criados por essas iniciativas. No entanto, a novidade reside menos em algum conjunto particular de aplicativos ou dados, ou no que acontecerá com eles após a pandemia, do que na suposição de que é a esse novo tipo de poder corporativo, com sua capacidade global sem precedentes de produzir novas formas de conhecimento para controle social, que devemos recorrer em um momento de crise pública. O resultado é menos que as Big Tech vão oferecer um novo tipo de utilidade pública e mais que os recursos de dados das Big Tech vão se tornar essenciais para a autoridade do Estado e o ordenamento da vida social. Elas não serão apenas “plataformas de mídia sociais”, “mecanismos de busca” e fabricantes de computadores, mas – juntamente com os governos – o próprio lastro do nosso bem estar.

Gestão de população

Durante e após essa crise, veremos um aumento das “parceria público-privado de vigilância” que vem sendo construídas há alguns anos. Saúde e bem-estar são apenas duas áreas afetadas por esse modelo de gestão da população; outros podem ser educação, infraestrutura laboral e aplicação de leis.

Haverá resistência, sem dúvida, e é improvável que essa transformação ocorra de forma homogênea em todo o planeta – desenvolvimentos paralelos também estão em andamento na China, mesmo que com um equilíbrio diferente entre empresas e Estado. No entanto, há poucas evidências de que essa resistência represente um obstáculo real à aceleração de um tipo de colonização que já estava em curso antes mesmo da pandemia.

À medida que o colonialismo dos dados se desenvolve, o resultado será um novo e muito mais complexo tipo de bem-estar social, que só pode ser realizado por meio da corrosão de liberdades fundamentais. Muito foi dito sobre como uma renovada valorização dos serviços públicos de saúde significaria o fim da estridente retórica neoliberal. Essa previsão pode ser surpreendentemente posta à prova quando, ao final desta crise, a linha divisória entre mercado e sociedade que o neoliberalismo sempre atacou tiver sido desmantelada em nome de um “bem-estar social” lastreado por conglomerados globais privados.

Sobre os autores

João Carlos Magalhães é pesquisador de pós-doutorado no Instituto Humboldt de Internet e Sociedade, em Berlim. Ele é PhD pela London School of Economics and Political Science.

Nick Couldry é professor de mídia, comunicação e teoria social na London School of Economics and Political Science e autor (com Ulises A. Mejías) de The Costs of Connection (Stanford UP 2019).

A reabertura da economia nos levará ao inferno

As pessoas precisam desesperadamente voltar ao trabalho e salvar o que podem de suas vidas. Mas Mike Davis argumenta que uma rápida reabertura da economia resultaria em tragédia indescritível para milhões de pessoas.

Mike Davis


Trabalhadores da saúde se preparam com equipamento de proteção individual (EPI) antes de entrar em um prédio residencial em 27 de abril de 2020 em um bairro do bairro do Brooklyn, em Nova York. Spencer Platt / Getty

Tradução / Conforme entramos no quinto mês do surto da COVID-19, milhões de famílias trabalhadoras sentem que foram sequestradas e enviadas ao inferno.

Ao passo que o desemprego (segundo dados oficiais) ultrapassa 30% ou mais, estima-se que 20 milhões de pessoas a mais irá, incontornavelmente, cair abaixo da linha de pobreza. Em uma pesquisa recente do Pew Research, 60% dos latino americanos informaram que perderam seus empregos ou salários, assim como mais da metade de todos os trabalhadores abaixo dos 30 anos. Além dos empregos, milhões perderão tudo que passaram a vida inteira trabalhando para conseguir: casas, pensões, cobertura médica e poupanças.

Muitos de nós já atravessamos uma prévia brutal de colapso econômico: a “Grande Recessão” de 2008-09. Em um período de 18 meses, a maioria das famílias afro e latino-americanas perderam todo seu patrimônio líquido e universitários recém-formados de origem não privilegiada encontraram-se encalhados, talvez para a vida toda, em posições de baixa remuneração na economia de serviços. É por isso que milhões se juntaram para empunhar a bandeira do New Deal de Bernie Sanders. Porém, a ameaça que se apresenta é a de pauperização econômica e fome em uma escala não vista desde 1933.

As pessoas precisam desesperadamente voltar aos seus empregos e salvar o que puderem em suas vidas. Mas dar ouvidos ao canto da sereia dos manifestantes da MAGA [abreviação de Make America Great Again – Faça a América Grandiosa Novamente], marionetes manipuladas por fundos de risco e donos de cassinos bilionários, para “reabrir a economia” resultaria apenas em um resultado: tragédia. Considere esses pontos:

  • Pôr milhões de pessoas de volta ao trabalho sem proteção ou testes seria uma sentença de morte para muitos. Trinta e quatro milhões de trabalhadores possuem mais de 55 anos; dez milhões deles, mais de 65 anos. Adicionalmente, milhões sofrem de diabetes, problemas respiratórios crônicos, entre outras doenças. Irão direto de casa para a UTI e então para a cova.
  • Milhões dos nossos “trabalhadores essenciais” encaram perigos intoleráveis por causa da escassez de equipamento de proteção. Levará semanas, no melhor dos cenários, até que trabalhadores da saúde contem com suprimento adequado. Trabalhadores em armazéns, feiras e fast food não têm garantia sequer de receber máscaras, a não ser que a legislação obrigue. Se isso é uma guerra, a recusa de Donald Trump em usar leis existentes para federalizar a manufatura de máscara e ventiladores é um crime de guerra.
  • A proposta de realizar testes de sangue e emitir certificados de permissão de volta ao trabalho a quem possuir os anticorpos certos é, no momento, mera fantasia. Washington permitiu que mais de uma centena de empresas vendesse kits sorológicos não testados em humanos ou sem certificação da FDA [Food and Drugs Administration – agência norte-americana equivalente à ANVISA]. Os resultados que dão são desorganizadíssimos, uma bagunça. Pode levar semanas ou mais até que trabalhadores da saúde pública contem com diagnósticos confiáveis para usar. Ainda assim, levaria meses para testar toda a força de trabalho e é questionável que um número suficiente de pessoas teria os anticorpos para abastecer de funcionários, com segurança, todas as empresas fechadas.
  • A hipótese mais heróica é que uma vacina esteja disponível na primavera de 2021, embora ninguém saiba por quanto tempo ela é capaz de conferir imunidade. Enquanto isso, centenas de termos de pesquisa e pequenas companhias de biotecnologia estão trabalhando para desenvolver medicamentos que reduzam o risco de falha respiratória e danos sérios ao coração e aos rins. Porém, essa difusão de experimentos científicos não conta com a coordenação nem o financiamento de Washington.

Lockdown indefinido

Em certo sentido, nós estamos vivendo um lockdown indefinido, tendo de lidar com um governo que dá mais prioridade à destruição do Serviço Postal Americano do que à organização de um programa de choque que produza testes, equipamentos de segurança e antivirais que permitirão aos estados norte-americanos retornarem ao trabalho.

Os cúmplices de Trump são monstros como a Amazon, que em duas semanas tornou Jeff Bezos US$ 25 bilhões mais rico, e o United Health Group, a maior companhia de seguros de saúde do mundo, cujo lucro aumentou em US$ 4,1 bilhões nos primeiros três esses da pandemia. Seguradoras médicas estão surfando em uma onda de sorte, pois, a maioria dos seus segurados estão atualmente impossibilitados de agendar operações ou obter tratamento vital.

Uma fúria vulcânica está emergindo rapidamente à superfície desse país e nós precisamos detê-la para defender e construir sindicatos, garantir assistência médica para todos e derrubar os patifes malditos dos seus tronos dourados.

Como chegamos até aqui

No último ano novo, enquanto estávamos brindando nossas taças, abraçados os companheiros e cantando alguns versos de alguma canção escrita há vário séculos por revolucionários escoceses, médicos chineses estavam notificando colegas ao redor do mundo que um rápido crescimento do número de casos de pneumonia aguda, situados ao redor da cidade de Wuhan, era resultado de uma infecção causada por um vírus até então desconhecido.

Dentro de uma semana, sua sequência genética já havia sido identificada e ele foi desvendado como sendo um “coronavírus”. Até 2003, pesquisas sobre essa família de vírus correspondiam principalmente às sérias doenças que causavam em vários animais, incluindo gado e aves. Sabia-se que apenas dois deles eram capazes de infectar humanos e, já que causavam apenas sintomas moderados de gripe, os pesquisadores consideraram insignificantes até então.

Então, em 2003, uma nova epidemia viral começou com um viajante em um hotel de um aeroporto chinês que transmitiu sua infecção para todos com quem interagiu. Dentro de 48 horas o vírus se espalhva para cinco outros países. A Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) – Síndrome Respiratória Aguda Severa – matou uma em cada dez vítimas.

O patógeno da SARS foi identificado como outro coronavírus, transmitido de morcegos para pequenos carnívoros conhecidos como civetas, há muito valorizados na gastronomia do sul da China. A SARS atingiu 30 países e causou intenso pânico internacional. Contudo, ele possuía um calcanhar de Aquiles: era contagioso apenas na fase em que pessoas infectadas apresentavam sintomas como tosse seca, febre e dores musculares. Por ser tão facilmente reconhecível, o vírus da SARS foi finalmente contido.

Um vírus similar, um tipo de maldição da múmia transmitida de ratos para camelos, emergiu em 2012 e matou mil pessoas, a maioria na península arábica. Porém, ele propagava-se sobretudo através do contato direto com camelos e por isso foi descartado como um candidato para engatilhar uma pandemia.

O vírus furtivo

Os pesquisadores tinham esperança que o assassino atual, um vírus conhecido por SARS-COV-2 que compartilha a maioria de seus genes com o SARS original, seria igualmente fácil de identificar através da correlação com os sintomas dos pacientes. Eles estavam terrivelmente enganados.

Após quatro meses de circulação no mundo humano, nós agora sabemos que o vírus, ao contrário dos predecessores, voa nas mesmas asas da influenza: é espalhado facilmente por pessoas sem sinais visíveis da doença. O patógeno atual revelou-se um “vírus furtivo” em uma escala que supera as influenzas e talvez como nada antes vistos nos anais da microbiologia. A marinha testou quase toda a tripulação do infestado porta-aviões Theodore Roosevelt e descobriu que 60% dos contagiados nunca mostraram algum sintoma visível.

Um amplo universo de casos não detectados pode ser considerado uma boa notícia se as infecções produzissem imunidade duradoura, mas não parece ser o caso. As dúzias de testes de sangue que detectam anticorpos atualmente em uso, todas sem certificado pela FDA, estão produzindo resultados confusos e contraditórios, tornando impossível, no momento, a ideia de emitir registros de permissão de volta ao trabalho com base na presença de anticorpos.

Contudo, pesquisas recentes (que podem ser analisadas no website do Instituto Nacional de Saúde, LitCovid) sugerem que a imunidade conferida após infecção é muito limitada e o coronavírus poderia se tornar tão perene quanto a influenza. Se não houver mutações dramáticas, segundas e terceiras reinfecções serão provavelmente menos perigosas aos sobreviventes, mas não existe evidências de que serão menos perigosas para pessoas não-infectadas em grupos de risco. Portanto, a COVID-19 será o monstro em nosso porão por muito tempo.

Eles sabiam que isso estava por vir

Entretanto, a doença não é uma erupção totalmente desconhecida, um asteroide biológico. Ainda que a transmissibilidade seja inesperada para um coronavírus, a pandemia corresponde em muito ao cenário descrito há muito para um surto de gripe aviária.

Há praticamente uma geração, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e boa parte dos governos tem se planejado para detectar e responder a tal pandemia. Sempre houve um entendimento internacional muito claro sobre a necessidade de detecção em estágios iniciais, grandes estoques de suprimentos médicos emergenciais e alta capacidade em leitos de UTI. Mais importante foi o consenso que os membros da OMS em coordenar suas respostas com base em orientações votadas democraticamente. A contenção inicial era crucial: ampla testagem, rastreio de contágios e o isolamento de casos suspeitos. Quarentenas de larga-escala, fechamento de cidades e de setores da economia – essas deveriam ser as últimas alternativas, tornadas desnecessárias dado o planejamento extensivo.

Nesse sentido, depois da chegada da gripe aviária em 2005, o governo norte-americano publicou uma ambiciosa “Estratégia Nacional para a Pandemia de Influenza” baseado na descoberta de que todos os níveis do sistema público de saúde dos Estados Unidos estavam completamente despreparados para um surto de larga-escala. Após o assombro da gripe suína em 2009, a estratégia foi atualizada e, em 2017, uma semana antes da posse de Trump, oficiais da transição do governo Obama e administradores da equipe de Trump conduziram em conjunto uma simulação ampla que testou a resposta das agências e hospitais federais a uma pandemia, a partir de três cenários: gripe aviária, Ebola e Zika vírus.

Na simulação, o sistema, claro, falhou em evitar o surto da doença ou, em decorrência disso, achatar a curva a tempo. Parte do problema foi a detecção e a coordenação. Outra foi o estoque inadequado e cadeias de suprimento com gargalos óbvios, tal como a profunda dependência de poucas fábricas estrangeiras para produzir equipamento de proteção vital. E, por detrás de tudo isso, está a falha em tomar vantagens agressivas de avanços revolucionários no desenvolvimento biológico ao longo da última década, o que resultaria em um arsenal de reserva de novos antivírus e vacinas.

Em outras palavras, os Estados Unidos não estavam prontos e o governo sabia disso.

Desastre em dominó

Por volta do fim de janeiro de 2020, três coisas aconteceram. Primeiro, a OMS rapidamente distribuiu centenas de milhares de kits de teste desenvolvidas por cientistas alemães que foram, contudo, subutilizados visto que cada nação trancou suas portas e ignorou consensos prévios de ajuda mútua.

Segundo, três nações da Ásia Oriental com arsenais médico bem preparados e com sistemas de saúde de pagador único – Coreia do Sul, Singapura e Taiwan – foram bem-sucedidas na contenção do surto com mínima mortalidade e moderados períodos de isolamento social. Após desastres iniciais que permitiram que o vírus escapasse em viagens aéreas e forçada a manter um lockdown em Wuhan, a China se mobilizou em uma escala sem precedente e rapidamente extinguiu todos os focos de COVID-19 fora de Wuhan.

Terceiro, nossos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) decidiram criar seus próprios kits de testes ao invés de usar aqueles distribuídos pela OMS. Porém, as linhas de produção dos CDC’s estavam contaminadas com o vírus e os kits foram inutilizados. Todo o mês de fevereiro, quando ainda era possível evitar um aumento exponencial da infecção através de testes e rastreio de contágio, foi desperdiçado.

Esse foi o primeiro desastre. O segundo foi em março, quando casos severos e críticos começaram a lotar os hospitais. Conforme as instituições começaram a ficar sem respiradores, máscaras N-95 e ventiladores suficientes, elas se voltaram aos seus Estados e então para a Estratégia Nacional de Estoque federal, que havia sido designada especificamente para uso durante um surto como o de COVID-19.

Mas os armários estavam quase vazios. Foram em grande parte se esgotando durante o pânico nacional provocado pela gripe suína em 2009 e várias outras emergências subsequentes. A administração de Trump foi alertada repetidas vezes sobre seu dever estatutário de reabastece-los, mas estava focada em outras prioridades tais como cortar o orçamento dos CDC’s e destruir a Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente [o Obamacare].

Como resultado, milhões de trabalhadores norte-americanos tem ido à luta em hospitais, asilos, trânsito público e depósitos da Amazon sem proteção essencial que custa apenas centavos para manufaturar. Nada é tão emblemático o abandono de deveres do governo Trump frente ao fato de que no mesmo dia em que o presidente se gabava da “superioridade tecnológica e científica sem igual” dos Estados Unidos, o New York Times dedicava uma página inteira a “Como Costurar uma Máscara em Casa”.

Sobre o autor

Republicado de Labor Notes.

Mike Davis é autor de vários livros, incluindo Planeta Favela e Cidade de Quartzo: Escavando o Futuro em Los Angeles.

24 de abril de 2020

Muito barulho por quase nada

É preciso ser muito papalvo para achar que R$ 30 bi do Pró-Brasil quebrarão o país

Nelson Barbosa

Folha de S.Paulo


Ainda em aberto, envolverá a indústria, agronegócio, serviços e turismo na busca de ações do estado para esses setores da economia. Lalo de Almeida/Folhapress

O governo lançou intenção de plano de investimento nesta semana. Falo do plano Pró-Brasil, que tem por objetivo aumentar o investimento e gerar empregos, acelerando a recuperação da economia no pós-crise, seja lá quando isso começar.

Para alguns, a imagem de um general anunciando mais investimento público relembrou o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND 2), do governo Geisel. Já outros fizeram paralelo com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado por Lula em 2007.

Nos dois casos, nossos neoliberais de jardim de infância entraram em pânico e atacaram o chefe da Casa Civil de Bolsonaro, pela suposta incongruência de suas intenções com a estabilidade fiscal. Isso é um exagero por pelo menos três motivos.

Primeiro, no formato atual, o plano Pró-Brasil é uma carta de intenções, inclusive com slides a serem preenchidos. O governo não detalhou várias das ações anunciadas. A iniciativa parece ter sido gestada fora do Ministério de Ideologia Econômica e, por causa disso, sem dados e equipe necessária para fazer uma proposta mais consistente.

Segundo, o valor anunciado de investimento público, de R$ 30 bilhões em três anos, é baixíssimo. Caso a distribuição seja linear, teremos estímulo fiscal de 0,1% do PIB ao ano, por três anos, via investimento com emissão de dívida.

É preciso ser muito papalvo para achar que cifra tão pequena quebrará o país. No formato atual, o Pró-Brasil é uma tentativa de evitar queda maior do investimento do governo.

Terceiro e mais importante, após o pior desta crise, o setor privado estará mais endividado, com elevado desemprego e capacidade ociosa, em um contexto doméstico ainda instável (família Bolsonaro versus impeachment) e situação externa provavelmente incerta (efeitos estruturais da Covid-19 na economia mundial, eleições nos EUA, discordâncias entre europeus e evolução da China pós crise).

É possível, mas altamente improvável, que o setor privado lidere uma rápida recuperação da economia em 2021. Na verdade, é mais provável que ocorra o inverso, caso o governo retome a agenda de forte ajuste fiscal no próximo ano, revertendo as medidas de auxílio financeiro a empresas, família, prefeitos e governadores planejadas para este ano, sem colocar nada no seu lugar.

Nossa história recente indica que consolidação fiscal prematura tende a piorar em vez de melhor a economia. Foi isso que aconteceu em 2011, 2015 e 2017. Sugiro tentar algo diferente agora.

Sim, devemos continuar a agenda de reformas, sobretudo da tributação direta e indireta, bem como da remuneração e da estrutura de carreira de servidores públicos. Porém, essas duas iniciativas não impedem o papel mais ativo do Estado na reconstrução da economia pós Covid-19, via investimento. O programa Pró-Brasil ainda não chegou e talvez nunca chegue a esse estágio.

E, independentemente da opinião de nós, economistas, sobre o Pró-Brasil, parafraseando Churchill, ainda não chegamos ao “fim do começo” da crise atual.

O contágio continua crescendo, a capacidade dos hospitais já se esgotou em várias cidades e a maioria das medidas anunciadas pelo governo (executivo e legislativo) ainda não foi posta em prática.

Há perigo claro e imediato de mais e mais mortes por falta de atendimento médico adequado. Também há risco iminente de quebradeira em massa de famílias e empresas por falta de auxílio financeiro do governo. Nessa situação, é um luxo debater o que o paciente fará quando sair do hospital. Antes disso, precisamos mover o paciente da UTI para o quarto.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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