30 de junho de 2022

Crítica de Pessôa é questionável, mas é bom saber que não se opõe a taxar os ricos

André Singer e Fernando Rugitsky respondem a economista sobre revogação do teto de gastos

André Singer
Professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Lulismo" e "O Lulismo em Crise"

Fernando Rugitsky
Professor do Departamento de Economia da USP e da Universidade do Oeste da Inglaterra, em Bristol


[RESUMO] André Singer e Fernando Rugitsky respondem a críticas feitas pelo colunista da Folha Samuel Pessôa a artigo que publicaram na Ilustríssima e reafirmam a tese de que aumentar o gasto público é fundamental para alavancar a economia e proteger a democracia de ameaças autoritárias.

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Em recente coluna nesta Folha, o economista Samuel Pessôa contesta raciocínios e informações usados por nós em artigo publicado na Ilustríssima sobre a revogação do teto de gastos. Para além de eventuais divergências de fundo, cabe esclarecer as objeções pontuais do colunista, de modo que os termos do debate fiquem equilibrados perante a opinião pública. Como é sabido, o diabo mora nos detalhes.

O primeiro reparo de Pessôa diz respeito aos Estados Unidos. Segundo o colunista, "os números do mercado de trabalho americano" não sustentam a interpretação que adotamos, segundo a qual o bloqueio ao programa American Families Plan, proposto por Joe Biden em 2021, contribui para a sobrevivência do trumpismo. A geração de emprego tem ido bem e a renda começa a se recuperar, diz ele. O verdadeiro risco para os democratas na eleição de meio de mandato seria a inflação, conclui.


A visão de Pessôa é parcial. A fragilidade do Partido Democrata nas eleições deste ano deve ser explicada à luz das condições de vida deterioradas de boa parte da população, não apenas por baixos salários, como também pelas mazelas do sistema de saúde, endividamento e precariedade dos postos de trabalho.

A atual escalada inflacionária —que, diga-se de passagem, tem origem na pandemia e na Guerra da Ucrânia— sem dúvida derruba ainda mais a popularidade do presidente. Todavia, não atua no vácuo, e o artigo que assinamos visava destacar tal pano de fundo, que levou Biden a propor, assim que assumiu, um vasto projeto de gastos públicos, que incluía o plano familiar barrado no Congresso.

A inflação, corretamente apontada por Pessôa como relevante fator eleitoral, reforça, aliás, a importância do American Families Plan, o qual poderia atenuar efeitos da alta dos preços sobre grupos vulneráveis.

Diante de um mercado de trabalho em que os proventos, em termos reais, estão caindo, medidas na direção do Welfare State ajudariam a atravessar a onda inflacionária. Por isso, o senador Bernie Sanders tem defendido que o partido reapresente no Congresso as propostas bloqueadas. "Está na hora de mostrar de que lado estamos", escreveu no jornal britânico The Guardian.

No que se refere ao Brasil, Pessôa afirma que "não é verdade" haver um estudo, conforme dissemos, da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostrando "que o gasto público teria estimulado o crescimento entre 2006 e 2014".

Aqui, a redação do colunista induz a um erro quase ofensivo, pois o próprio Pessôa admite, na frase seguinte, a existência de um estudo que estima impulso fiscal positivo no período 2003-2014 (intervalo usado em nosso artigo). Para comprová-lo, basta consultar o Estudo Especial número 17 do IFI, publicado em 22 de dezembro de 2021, verificando o gráfico B1 da página 19.

Neste ponto seremos obrigados, pela opção de Pessôa e a exiguidade de espaço, a usar certo jargão econômico que pode parecer pouco claro ao leitor não especializado. Em dois parágrafos elípticos, o colunista expressa uma interpretação questionável do significado do impulso fiscal naquele período.

Os números por ele empilhados de forma apressada indicariam que, ao fazer a economia brasileira operar acima de sua capacidade, os gastos do governo teriam produzido um crescimento artificial (e inflacionário), que viria a ser revertido, portanto anulado.

Ocorre que a identificação da capacidade de crescimento de uma economia ou, para usar o termo técnico, de seu produto potencial, é sabidamente controversa. Mais: no caso concreto, os dados do mercado de trabalho não sustentam a ideia de que a economia estivesse com "pleno emprego", especialmente no início do período mencionado pelo articulista.

Em que pesem as confusões geradas pela coluna, ficamos felizes ao perceber no final da mesma que Pessôa se coloca como aliado para tornar o sistema tributário mais progressivo e, mediante tal mudança, revogar o teto de gastos. Persistir apostando na austeridade já se provou economicamente contraproducente e politicamente ameaçador para a própria democracia.

A expansão fiscal que mantém o gasto constante?

Corte de impostos e aumento de gastos serão positivos para o nível de atividades no segundo semestre

Nelson Barbosa


Governo tenta conter o efeito da alta de preços dos combustíveis sobre a inflação - Luo Jinglai/Xinhua

A falta de planejamento do governo gerou mais uma proposta de emenda constitucional, a "PEC da emergência eleitoral", para reduzir preço de combustível, transferir renda adicional aos mais pobres e criar o "bolsa caminhoneiro".

As três medidas fazem sentido econômico e poderiam ter sido adotadas de modo previsível, dentro de um plano de reconstrução econômica pós pandemia, caso o governo Bolsonaro tivesse se preocupado em planejar a saída da crise em vez de decretar repetidamente o seu fim.

Somando corte de imposto e aumento de gasto, o atual pacote orçamentário deve injetar 0,5% do PIB na renda disponível do setor privado, com impacto positivo sobre o nível de atividade econômica no segundo semestre.

Por enquanto estimo que as medidas "emergenciais" de Bolsonaro elevarão o gasto primário federal para 18,6% do PIB em 2022. Um aumento de 0,4 ponto em relação à projeção oficial de abril, quando o governo enviou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 ao Congresso.

O novo gasto de 18,6% do PIB é alto ou baixo? A resposta depende da base de comparação.

Para quem acredita no teto Temer de gasto, 18,6% do PIB é alto. A despesa primária federal deveria ter caído para 17% do PIB neste ano segundo a proposta original de Temer. Já para todos os demais economistas 18,6% do PIB é um valor neutro, pois este foi o gasto realizado em 2021.

Em outras palavras, o desgoverno Bolsonaro criou uma grande confusão legislativa para praticar o mesmo gasto do ano passado. Um mínimo de bom senso teria deixado espaço para novas medidas de estabilização sem alterar a Constituição. O governo Bolsonaro não tem bom senso.

No último ano completo do governo Dilma, 2015, o gasto primário federal também foi de 18,6% do PIB quando levamos em consideração o ajuste decorrente de anos anteriores (0,8% do PIB) determinado pelo TCU.

Depois, em 2016, o governo Temer elevou o gasto primário para 19,9% do PIB, mas com promessa de reduzi-lo nos anos seguintes. Houve redução? Inicialmente sim, mas em relação ao praticado pelo próprio Temer em 2016. Comparado ao praticado pelo governo Dilma segundo o TCU, Temer aumentou o gasto público.

Em números, o gasto primário federal foi de 19,4% do PIB, em 2017, e 19,3% do PIB, em 2018. Os dois valores ficaram acima dos 18,6% do PIB registrados no último ano completo de Dilma. Dizer que Temer reduziu gasto é uma das falácias do golpe de 2016, mas prossigamos.

Em 2019 e antes da Covid, Bolsonaro assumiu o governo e elevou a despesa primária federal para 19,5% do PIB. No ano seguinte a pandemia nos atingiu, Bolsonaro chamou a doença de gripezinha, sua equipe econômica disse que R$ 5 bi resolveriam o problema, mas a conta foi cem vezes maior.

Segundo o monitor de gasto do Tesouro Nacional, as ações emergenciais criadas pelo Congresso elevaram a despesa primária federal de 2020 em R$ 524 bi, aumentando o gasto primário total para 26,1% do PIB naquele ano.

As ações de 2020 foram corretas, pois amenizaram a crise e possibilitaram a recuperação em V da economia. O problema foi o governo Bolsonaro achar que a pandemia acabaria rápido e não ter plano de reconstrução para 2021 e 2022.

Entramos 2021 com o governo prometendo grande contração fiscal e depois voltando atrás. Começamos 2022 da mesma forma e agora estamos na fase de Guedes e cia voltarem atrás com novas medidas "temporárias". Juntando os dois anos, o despreparo administrativo do governo Bolsonaro prejudicou a recuperação da economia e aumentou a incerteza sobre 2023.

29 de junho de 2022

Quando as mulheres venceram a batalha pelo aborto na França

Em 1971, com o aborto na França ainda ilegal, 343 mulheres francesas se organizaram para declarar que haviam feito um. Foi um ato de desafio que quebrou tabus de longa data - e deve ser defendido hoje.

Vincent Chabany-Douarre


Manifestantes do Movimento de Libertação das Mulheres Francesas confrontam as forças de segurança em Paris em novembro de 1972, durante o julgamento de Chevalier. (AFP/Getty Images)

Tradução / No outono de 1971, Marie-Claire Chevalier percebe que está grávida. Ela não quer esse filho: ela tem 16 anos, foi agredida sexualmente por um colega de classe e vem de uma família da classe trabalhadora com pouco dinheiro para subsistência. Mas em 1971, os abortos são ilegais na França, a menos que a vida de uma mulher esteja em perigo.

A mãe-solo de Marie Claire, Michèle, estica seu magro salário para conseguir um aborto clandestino à filha. O procedimento quase mata a jovem, mas ela sobrevive. Algumas semanas depois, Marie-Claire é presa, assim como Michèle. O estuprador de Marie-Claire, que foi pego roubando um carro e esperava aliviar sua sentença, a denunciou às autoridades.

O julgamento começa em 1972. As Chevaliers são representadas por Gisèle Halimi, que recentemente fora notícia por defender Djamila Boupacha, uma combatente da libertação argelina que foi torturada e agredida sexualmente por soldados franceses. Há muitas mulheres no julgamento, apoiando Marie-Claire e testemunhando em seu favor, explicando por que elas também fizeram abortos ilegais. Essas mulheres não têm nenhum problema em admitir o que continua sendo um ato criminoso: toda a nação já sabe que interromperam uma gravidez.

Quem são essas mulheres e por que seu aborto já era um assunto de registro público? Poucos meses antes do julgamento de Marie-Claire, elas faziam parte de um coletivo de 343 mulheres francesas, que foram à mídia para contar a toda a França que haviam feito um aborto. Ao fazer isso, elas se denunciaram como criminosas e incitaram um Estado abusivo a puni-las. Mas, mesmo assim, elas venceram.

Embora o aborto na França tenha sido proibido no século XVI, a aplicação rigorosa da lei só começou com a Primeira Guerra Mundial. A guerra devastou a França e, com uma série de políticas nativistas, os políticos franceses procuraram reconstruir a população do país. Assim, em 1920, 314 deputados, todos homens, eleitos por um corpo eleitoral exclusivamente masculino, decidiram que qualquer mulher considerada culpada por fazer um aborto seria punida com três anos de prisão e uma pesada multa de 5.000 francos.

Essa repressão chegaria ao clímax na década de 1940. O hiperconservador regime ditatorial de Vichy encorajou avidamente a denúncia e a vigilância. No chão de fábrica, em leitos de hospital, nas ruas de suas próprias aldeias: nenhum lugar era seguro para as mulheres que procuravam interromper uma gravidez indesejada. Em 1940, 1.255 mulheres foram consideradas culpadas pelos tribunais franceses por terem feito um aborto, o dobro do registrado em 1938. Em 1944, em média, mais de dez mulheres foram condenadas todos os dias por essa acusação.

Embora o período do pós-guerra tenha marcado o fim de anos de dificuldades econômicas e lutas, ele trouxe pouco apetite por mudanças radicais. O aborto ainda era um tabu vergonhoso. Uma lei de 1955 permitia aos médicos interromper a gravidez apenas se a vida de uma mulher estivesse em perigo significativo, mas uma reação liderada pelos católicos ameaçou que houvesse mais progressos. A pílula anticoncepcional tornou-se disponível em 1967, mas as mulheres com menos de 21 anos precisavam da aprovação por escrito de seus pais. As únicas áreas onde o aborto e a contracepção foram relaxados foram Guadalupe, Martinica e La Réunion, onde pânicos racistas sobre o crescimento populacional levaram o Estado a abrandar a lei de 1920.

E, no entanto, algo estava se formando. Os protestos de 1968, nas palavras do jornalista Patrick Rotman, impulsionaram a França do século XIX ao XX. Nesse período, o feminismo encontrou novo vigor e, em 1970, nasceu o Mouvement de Libération des Femme (MLF) [em tradução livre Movimento de Libertação das Mulheres]. O MLF não estava interessado em concessões: elas protestaram, agitaram através de rádios e meios de comunicação franceses como Elle, e jogaram carne crua em líderes anti-aborto.

Mesmo com toda a proibição, o aborto não havia desaparecido. Mulheres ricas foram para a Inglaterra, Holanda e Suíça. Mulheres pobres faziam abortos clandestinos na França. O procedimento era muitas vezes traumático. A atriz Bulle Ogier, em sua autobiografia J’ai Oublié [Eu Esqueci, em tradução livre], conta como sua amiga quase morreu de sepse depois de interromper uma gravidez com uma agulha de tricô. Quando Ogier fez um aborto, ela foi agredida sexualmente pelo médico que o fez. O mesmo aconteceu com a cantora Brigitte Fontaine, no final da década de 1950, durante seu segundo aborto. Quanto à sua primeira interrupção de gravidez em 1956, Fontaine recebeu instruções claras: se algo der errado, não volte. Durante duas semanas, ela se automedicou com uísque para uma febre de 41 graus. Em 1958, Nadine Trintignant, a famosa diretora, conseguiu o dinheiro emprestado e foi para a Suíça: o médico a chamou de prostituta.

Essas histórias eram como segredos, sussurradas em círculos íntimos, mas nunca divulgadas na esfera pública. Isto, até 1971, quando o MLF foi abordada pela jornalista do Nouvel Observateur, Nicole Muchnik. Muchnik e seu editor-chefe queriam que as famosas integrantes da MLF anunciassem publicamente seus abortos. Eles argumentaram que, se figuras públicas respeitadas como Catherine Deneuve ou Françoise Sagan se manifestassem, quebrariam o tabu sobre o aborto e influenciariam a opinião pública – e o silêncio finalmente terminaria.

Esta era uma proposta perigosa. Embora as prisões por aborto fossem menos comuns do que na década de 1940, elas ainda eram frequentes. 289 mulheres foram condenadas por terem feito aborto em 1960, 720 em 1966 e 340 em 1970. Mas o manifesto também era cheio de potencial. Essas prisões prosperaram no silêncio e na vergonha. O aborto só acontecia com “pessoas estranhas”, com “mulheres más”. Se as mulheres do MLF se mantivessem juntas, o Estado francês teria uma escolha: prender essas celebridades amadas ou reconhecer a crueldade de suas leis.

A reação no MLF não foi unânime. A socióloga Christine Delphy deu as boas-vindas ao plano, mas participantes da base do MLF estavam relutantes. Eles não gostavam da ideia de fazer uma aliança com a imprensa burguesa e relutavam em fazer das mulheres ricas as figuras de proa de um movimento onde as mulheres pobres mais sofriam. Eventualmente, o MLF concordou, mas a lista teria que incluir muito mais do que apenas celebridades. Também apresentaria ativistas do MLF, de todas as idades, de todas as classes. Algumas seriam nomeadas, outras permaneceriam anônimas. Eles usariam as famosas assinaturas como escudos. Antecipando a reação, a advogada Gisèle Halimi fundou o Choisir, um grupo de ação, para defendê-las.

O manifesto foi escrito coletivamente no apartamento de Simone De Beauvoir em Paris. Agnès Varda assinou, assim como a física nuclear Annie Sugier, a tradutora Emmanuelle de Lesseps e a filósofa Monique Wittig, entre outras. Algumas, como a jornalista Yvette Roudy, colocaram o nome sem ter feito um aborto, por solidariedade.

Em 5 de abril de 1971, a capa do Nouvel Observateur dizia, em letras maiúsculas sobre fundo preto:

A lista das 343 francesas que tiveram a coragem de assinar o manifesto “EU FIZ UM ABORTO”.

Um pequeno texto explicava que um milhão de mulheres na França faziam abortos todos os anos, em condições perigosas. O manifesto exigia abortos livres e seguros e afirmava que cada signatária havia infringido a lei ao fazer um aborto.

Nenhuma das mulheres foi presa. Ainda assim, muitas pagaram por terem falado sobre seus abortos. Segundo Claudine Monteil, a signatária mais jovem, algumas perderam o emprego. Algumas foram ameaçadas. Algumas foram alijadas por suas famílias. A mãe de Claudine era uma acadêmica de renome, uma mulher educada e com visão de futuro. Mas quando ela leu o nome de sua filha naquela lista, durante uma viagem de trem, ela caiu em prantos na frente dos outros passageiros. Ela pensou que a vida de Claudine tinha acabado.

Mas Claudine não se arrependeu. Ao longo de quarenta e oito horas, o aborto passou de um segredo indescritível a uma palavra no rádio, falada em jantares de família em toda a França. Algo palpável havia mudado. Como observou a historiadora Bibia Pavard, pela primeira vez na história francesa, foram as mulheres que lideraram a conversa sobre o aborto e o enquadraram como um ato de libertação e autonomia. Mais tarde naquele ano, a revista alemã Stern publicou uma carta onde 374 mulheres alemãs, incluindo a atriz Romy Schneider, fizeram a mesma declaração. Médicos e ginecologistas franceses posteriormente publicaram cartas reconhecendo que haviam realizado a operação.

O manifesto influenciou a opinião pública durante o julgamento de Marie-Claire em 1972 e o juiz absolveu a jovem. O terceiro ato do manifesto veio alguns anos depois: em 1975, o governo francês aprovou a primeira lei do país legalizando o aborto. Foi um primeiro passo tímido. As mulheres elegíveis tinham que estar “em perigo”, receber aconselhamento médico e pagar do próprio bolso. Mas foi um marco – uma pequena chama, acesa pela faísca das 343 mulheres que deram um passo à frente em 1971.

Em 1974, Claudine Monteil, a mais jovem das 343, disse a Simone de Beauvoir que elas haviam vencido. Beauvoir a advertiu: uma crise e os direitos das mulheres seriam derrubados. Durante toda a sua vida, disse Beauvoir à Claudine, você deve permanecer vigilante.

Quando os Estados Unidos revogaram Roe v. Wade em junho de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron imediatamente anunciou sua intenção de consagrar o aborto na Constituição francesa. A esquerda francesa já havia proposto essa ideia em julho de 2018. Mas o partido do presidente, então maioria na assembleia francesa, votou contra. Vários membros do gabinete de Macron foram acusados ​​de agressão sexual. Alguns de seus principais aliados, como o deputado Eric Woerth, expressaram recentemente que, ao formar uma coalizão na Assembleia Francesa, o partido do presidente preferiria trabalhar com a extrema direita do que com a esquerda.

Por isso, precisamos permanecer vigilantes.

Sobre o autor

Vincent Chabany-Douarre é historiador. Ele aponta a necessidade urgente de que suas leitoras e leitores doem à Brigid Alliance (em tradução livre Aliança Brígida) e à National Network of Abortion Funds (em tradução livre, Fundo Nacional de Redes de Apoio ao Aborto).

28 de junho de 2022

Como a esquerda está construindo a paz na Colômbia

Durante anos, o regime de direita da Colômbia colocou em risco o acordo de paz de 2016. Mas agora o primeiro presidente esquerdista do país se comprometeu com a plena implementação - incluindo a justiça econômica, o diálogo político e as demandas de paz por igualdade social.

Mariela Kohon


O candidato presidencial Gustavo Petro e sua candidata a vice-presidente Francia Marquez do Pacto Historico comemoram após o dia da eleição presidencial em 29 de maio de 2022 em Bogotá, Colômbia. (Guillermo Legaria / Getty Images)

Tradução / Em junho foram eleitos na Colômbia Gustavo Petro e Francia Marquez pelo Pacto Histórico (PH). Sua vitória é uma imenso avanço para a política progressista em toda a América Latina e seu significado na região não pode ser subestimado.

A Colômbia é às vezes referida como a “democracia mais antiga” da América Latina, geralmente por aqueles que não compreendem sua história complexa e violenta, ou por aqueles que têm um interesse direto em ocultá-la. Esta é a primeira vez que a Colômbia elege um governo de esquerda, que vem depois de uma longa e difícil luta para criar um espaço político progressista diante de décadas de repressão brutal sistemática.

Um legado de violência

Adifícil jornada até este ponto é melhor evidenciada pelo fato de que inúmeros candidatos presidenciais foram assassinados ao longo da história da Colômbia, desde Jorge Eliécer Gaitán em 1948 até Jaime Pardo Leal em 1987. Um partido político inteiro, a União Patriótica (UP) – fundada em 1985 durante uma longa insurgência armada, para dar vozes de esquerda a uma via democrática em busca de mudança – foi vítima de “genocídio político” entre seu início e 2018. A Jurisdição Especial para a Paz (conhecida pela sigla em espanhol JEP) – o tribunal de paz transitório criado pelo Acordo de Paz de 2016 – descobriu que 5.733 membros da UP foram assassinados nessa época.

A escala da repressão sofrida pela esquerda e pela sociedade civil não pode ser minimizada. Cerca de 3.000 sindicalistas foram assassinados. Mesmo após a assinatura do Acordo de Paz, mais de 1.300 mil ativistas políticos e sociais foram assassinados – 80 dos quais só este ano.

Francia Marquez vem do Sudoeste, do Distrito de Cauca na Colômbia, uma das regiões mais afetadas pelo conflito, com um número assombroso de líderes assassinados. Em seu discurso após as eleições, ela mesma, sobrevivente de uma tentativa de assassinato em 2019, prestou homenagem aos ativistas assassinados, agradecendo-lhes por “abrirem o caminho para o futuro, por semearem a resistência e a esperança”.

Esta eleição veio poucos dias antes de outro momento histórico para a Colômbia, no qual a Comissão da Verdade, um mecanismo criado pelo Acordo de Paz, divulgará seu relatório. Por todas estas razões, esta vitória deve ser vista em seu contexto histórico. E esse contexto histórico faz com que a eleição de Petro, ex-guerrilheiro e Márquez, uma líder de comunidades afro-colombianas, ativista ambiental e feminista, fortaleça especialmente aqueles que estão envolvidos no apoio à luta pela paz e justiça social no país.

A agitação de 2019-2020

Na história mais imediata, esta vitória só foi possível graças a uma luta mais determinada. Os protestos aconteceram em todo o país em uma escala sem precedentes em 2019 e 2020. Os jovens, os protagonistas desses protestos, ajudaram a quebrar os níveis históricos de abstenção nesta eleição: a participação foi de 58%, bem acima da média recente de 48%, refletindo a esperança renovada que o PH criou. A mãe de Dilan Cruz, um jovem assassinado pela polícia militar durante esses protestos, falou no comício da vitória de Petro e Márquez.

Embora tenha sido esta onda de ação popular que levou Petro e Márquez à vitória, a capacidade de construir alianças com o centro e partes da centro-direita também provou ser um fator importante, e será fundamental para a sobrevivência do governo.

Por exemplo, Petro obteve o apoio de figuras de alto nível da época de Juan Manuel Santos, o ex-presidente cujo o governo negociou o Acordo de Paz de 2016 com as FARC-EP. Estes políticos se tornaram importantes apoiadores de sua plataforma. Como resultado, nos dias seguintes a sua vitória, Petro renovou esforços para criar um “acordo nacional”, construindo um diálogo em todo o espectro político, inclusive convidando o ex-presidente de extrema-direita Álvaro Uribe a falar.

Marquez também desempenhou um papel crucial na mobilização de apoio ao PH entre os movimentos sociais de massa como a primeira vice-presidente negra em um país onde as comunidades negras e indígenas foram historicamente marginalizadas e desproporcionalmente afetadas pela desigualdade e exclusão sociopolítica. Ao receber suas credenciais como vice-presidente eleita, Marquez disse que isso em si foi um ato de justiça racial e justiça de gênero. Ela se comprometeu a fazer do combate à desigualdade racial estrutural e de gênero uma parte central do programa do PH para o governo e liderará um novo Ministério da Igualdade.

O Acordo de Paz

Omapa eleitoral mostra uma forte sobreposição entre aqueles que votaram em Petro e aqueles que votaram a favor do Acordo de Paz em 2016, tornando esse acordo um dos fatores cruciais para essa vitória histórica. No centro do acordo está o objetivo de criar um espaço democrático, abrindo a participação política e dando esperança à crença de que a Colômbia pode ser mudada por meios democráticos. Foi também este Acordo de Paz que abriu o caminho para a mobilização popular vista nas ruas entre 2019 e 2020.

Em sua essência, o conflito entre as FARC e o Estado colombiano – que o acordo buscava acabar – foi impulsionado pela terrível desigualdade da Colômbia e pela falta de espaço político para a oposição. O acordo, portanto, delineia importantes reformas estruturais para lidar com essas causas fundamentais. Mas muitos passos ainda precisam ser feitos para concretizar o acordo, prejudicado nos últimos 4 anos por uma sabotagem sistemática da extrema direita que se opõe ao processo.

Como resultado, o programa econômico da PH prioriza o desenvolvimento da produtividade doméstica em detrimento das indústrias puramente extrativistas, combatendo a desigualdade social através da reforma fiscal progressiva e protegendo o meio ambiente através da transição verde. Inclui a extensão dos serviços sociais como o acesso à saúde e à educação. A paz também depende da implementação da reforma agrária e da substituição de cultivos prevista no acordo a fim de corrigir a injustiça histórica no acesso à propriedade da terra, investindo no campo e dando aos camponeses opções além do cultivo da coca.

Petro se comprometeu em alcançar uma paz “completa”, tanto implementando o acordo de 2016 quanto abrindo negociações com as demais organizações guerrilheiras. O ELN, com quem o presidente Duque interrompeu as negociações em janeiro de 2018, já declarou sua disposição para entrar em diálogo. Outro grupo liderado por alguns ex-membros das FARC, que deixaram o processo atual desiludidos com seu processo, também fizeram uma declaração expressando esperança.

Desafios à frente

No entanto, Petro e sua ampla coalizão enfrentam enormes desafios. Apesar da disposição das demais forças de esquerda para entrar em diálogo, um teste fundamental para o novo governo será enfrentar os grupos paramilitares de direita e as organizações violentas de tráfico de drogas que ainda aterrorizam partes da Colômbia.

Nos últimos meses, vastas áreas do norte do país foram fechadas pelos grupos paramilitares do Clã do Golfo, faltando ao Estado a capacidade e talvez até mesmo a vontade de enfrentá-los. O Acordo de Paz inclui medidas para desmantelar esses grupos armados – responsáveis pelo assassinato de tantos líderes sociais – mas o próprio dia das eleições foi um lembrete sombrio da brutalidade enfrentada pelos militantes. Duas testemunhas eleitorais e militantes do PH, Roberto Rivas e Ersain Ramírez, foram mortos.

Ex-combatentes das FARC também são assassinados, com mais de 315 assassinatos desde que depuseram suas armas e cumpriram com suas obrigações no acordo de 2016. Outras organizações guerrilheiras precisarão ver resultados e ter certeza de que não arriscarão o mesmo destino.

Também será necessário fazer mudanças nas forças de segurança, já que o Exército e a polícia são responsáveis por algumas das piores atrocidades da Colômbia. Durante uma recente comitiva da Justiça para a Colômbia composta por sindicalistas e parlamentares britânicos, irlandeses e espanhóis, os defensores dos direitos humanos falaram da necessidade urgente de pôr um fim à doutrina militar de combate ao “inimigo interno”, que tem levado consistentemente a sociedade civil a se deparar com a violência do Estado. As greves e manifestações de 2019-20 levaram ao assassinato de 44 manifestantes pela polícia.

Quando nossa delegação viajou para Putumayo, no sul da Colômbia, ouvimos testemunhos assustadores de sobreviventes e parentes de vítimas de um massacre do Exército. Soldados haviam atirado em 11 civis em uma festa comunitária e depois os apresentaram como guerrilheiros dissidentes mortos em combate.

Este acontecimento fez lembrar o caso dos chamados “falsos positivos”, que viram soldados matarem 6.400 civis entre 2002 e 2008, e depois os apresentaram como guerrilheiros mortos em combate para inflar números e receber promoções e bônus. A reforma adequada das forças de segurança foi algo que o governo anterior não conseguiu incluir no Acordo de Paz final – portanto, esse é um grande desafio para o novo governo.

Aqueles justificadamente cheios de esperança por esta grande vitória também terão que controlar suas expectativas. Antes de 2016, o processo de paz dividiu o establishment, e nem todos os defensores de Petro são de esquerda. Como disse o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica em sua mensagem de felicitações ao povo colombiano, Petro “não pode fazer mágica”.

Sem uma maioria no Congresso, fazer as mudanças legislativas propostas exige que Petro continue a construir alianças, algo que ele já parece estar fazendo. Em seu discurso de vitória, ele deu um tom realista: “Vamos desenvolver o capitalismo”, disse Petro aos apoiadores, “não porque o amamos, mas porque primeiro temos que superar a pré-modernidade, o feudalismo… temos que criar uma democracia”. E com mandatos presidenciais que duram apenas quatro anos, fazer mudanças duradouras, incluindo organização e planejamento a longo prazo para o próximo governo, será crucial.

Uma mudança progressista

Reconhecendo os desafios futuros, Petro e Márquez desempenharão um papel importante consolidando uma nova onda de governos progressistas na América Latina. A mudança está em movimento em todo o continente: vimos a vitória socialista na Bolívia derrubando um golpe de extrema direita e a eleição de Gabriel Boric no Chile; a esperança está se consolidando com uma aparente vitória de Lula nas próximas eleições no Brasil, e uma série de outros governos de esquerda estão liderando o caminho da região.

Os efeitos desta mudança ainda não podem ser superestimados. A Colômbia é há muito tempo a principal base dos Estados Unidos na América Latina, um fiel aliado de Washington em suas relações hostis com a Venezuela e Cuba. Quando o regime de Duque se recusou a implementar acordos protocolares assinados no caso do fracasso das conversações de paz com o ELN, generosamente acolhido pelo governo cubano, estabeleceu-se um precedente perigoso para os processos de paz em todo o mundo.

Talvez surpreendentemente, então, dada a história de interferência sangrenta dos EUA e a falta de respeito pelos governos de esquerda democraticamente eleitos na América Latina, o governo Biden foi rápido em reconhecer Petro, com os dois falando apenas dias após o resultado. Petro também anunciou que conversou com o presidente venezuelano Maduro, e reabrirá a fronteira comum.

Mais amplamente, a comunidade internacional tem estado muito quieta por muito tempo em relação aos abusos ocorridos na Colômbia. A retórica hipócrita e inconsistente do governo britânico sobre os direitos humanos no exterior ficou exposta por sua atitude em relação à Colômbia, e os sindicatos britânicos e colombianos têm se manifestado em nossa oposição ao acordo de livre comércio Reino Unido-Colômbia. Para aqueles comprometidos com a paz e a justiça social na Colômbia, então, este é um momento entusiasmante e emocionante, e um momento que se propõe a aumentar o apoio a organizações como a Justiça para a Colômbia.

Talvez o mais crucial, agora, é o momento de prestar homenagem a todos aqueles que perderam suas vidas durante esta luta, que não estão mais conosco e que foram brutalmente silenciados no caminho. Há muitos com os quais gostaríamos de compartilhar este momento maravilhoso. Em vez disso, é em sua honra que celebramos o presente – e ansiamos por um futuro melhor e mais brilhante na Colômbia.

Colaboradora

Mariela Kohon é oficial internacional sênior do TUC, ex-assessora no processo de paz da Colômbia e vice-presidente de Justiça da Colômbia.

A esquerda ao poder no Paraguai?

As eleições de 2023 constituem uma oportunidade para as forças da esquerda derrubarem o nefasto Partido Colorado.

Norma Flores Allende e Laurence Blair


Manifestação em Assunção contra o presidente Mario Abdo Benítez em 17 de março de 2021. (Foto: Jorge Saenz/AP)

Tradução / O som do helicóptero anunciava o inevitável: a polícia estava de volta, desta vez pronta para atirar para matar. Após um tenso impasse, os corpos de repente começaram a cair. Foi um confronto de facões, cavalos e rifles de alta potência de um lado contra velhas espingardas enferrujadas do outro, enquanto as mulheres e crianças fugiam de suas tendas. A terra vermelha testemunhou um massacre de 11 camponeses e 6 policiais que, dez anos depois, ainda não foi totalmente investigado.

22 de junho marcou uma década desde que Fernando Lugo, um ex-bispo de esquerda que liderou o único governo progressista do Paraguai, foi removido em um rápido golpe parlamentar após esse banho de sangue rural. Os assassinatos de 15 de junho de 2012 ocorreram em meio a uma ocupação por agricultores sem-terra em Marina Kue, em Curuguaty, leste do Paraguai. Eles foram seguidos por mais assassinatos de líderes camponeses e um julgamento cheio de irregularidades.

As forças conservadoras também usaram o despejo fracassado de Marina Kue como pretexto para impugnar Lugo, em um processo que durou apenas algumas horas. Governos progressistas em toda a América Latina chamaram isso de golpe; até mesmo os governos conservadores do Chile e Colômbia chamaram de volta seus embaixadores.

Golpes e lawfare

Os acontecimentos no Paraguai em 2012 seguiram o que aconteceu em Honduras três anos antes, quando outro presidente progressista, Manuel Zelaya, foi derrubado. Eles inauguraram uma era de golpes “soft” e lawfare em toda a região. A ex-presidente Dilma Rousseff comentou sobre o destino de Lugo em 2015 antes que ela também fosse destituída, em um rápido processo de impeachment que até mesmo seu substituto de direita mais tarde admitiu ter sido um golpe.

A década passada, desde 2012, foi sombria para o povo paraguaio, com um terço de sua população ainda vivendo na pobreza. Os conservadores evangélicos sufocaram qualquer progresso em relação aos direitos reprodutivos e LGBTQ, o crime organizado transnacional se aprofundou no país e a destruição do mundo natural do Paraguai pela agroindústria está se acelerando. Os ativistas urbanos e as comunidades indígenas e camponesas que resistem enfrentam uma repressão feroz.

“O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.”

Em abril de 2023, o país votará em um novo presidente e congresso. O conservador Partido Colorado, que está atualmente no poder e disputa a presidência desde a década de 1940, está dividido por lutas internas entre diversas facções. Com Lugo fora da disputa devido ao limite de mandatos, uma série de rivais à direita, centro e esquerda espera tirar vantagem da situação.

Se a oposição puder superar os profundos obstáculos estruturais e divisões internas para recuperar o poder, ela poderá deter essas tendências sombrias e unir-se a uma luta regional com outras forças progressistas. A uma década do golpe e a menos de um ano das eleições, a questão é se a esquerda paraguaia pode replicar o triunfo eleitoral de Lugo sem ele nas urnas.

Sem paz, sem progresso

O Paraguai não é estranho à violência. Entre 1864 e 1870, a Guerra da Tríplice Aliança, formada por Argentina, Brasil e Uruguai, quase exterminou a população local. O século seguinte não foi melhor: guerras civis, revoluções, golpes e contragolpes foram pontuados por outro conflito exaustivo, desta vez contra a Bolívia. O autoritarismo infeccionou nas profundas feridas da instabilidade política. O primeiro partido nazista fora da Alemanha foi fundado no Paraguai em 1929.

Duas ditaduras militares, a do general Higinio Morínigo (1940-48) e a do general Alfredo Stroessner (1954-1989), governaram de mãos dadas com o partido político que governa o Paraguai até hoje. A duradoura hegemonia do Partido Colorado, também conhecido como Asociación Nacional Republicana (ANR), tem suas origens em uma sangrenta guerra civil. Em 1947, os colorados saíram vitoriosos, com o Paraguai se transformando em um Estado de partido único. O regime aniquilou toda a oposição; o Partido Comunista e a esquerda em geral se esconderam, e um grande número de pessoas foi forçado ao exílio, incluindo a maioria dos intelectuais do país.

A ditadura de Stroessner, apoiada pelos Estados Unidos, propagandeou o slogan “Paz e Progresso”. A realidade foi um regime totalitário que durou 35 anos – a ditadura mais longa da América do Sul – enquanto dava asilo a nazistas e franquistas, assassinava mais de 400 pessoas e sujeitava cerca de 19 mil pessoas à tortura.

Um legado de Stroessner para a política paraguaia hoje são os “colorado seccionales“: escritórios locais do partido que ainda estão presentes em praticamente todos os bairros de todas as cidades. Eles fornecem abertamente esmolas, remédios, empregos, contratos públicos e eventos esportivos para comprar votos e convocar, em ações físicas e digitais, os soldados de infantaria conhecidos como hurreros.

Esse controle social feroz, quase único na América Latina, instalou uma cultura política clientelista que cooptou a pequena classe média e enriqueceu aqueles que Tomás Palau chama de empresaurios: oligarcas capitalistas compadres próximos ao regime e seus sucessores. A queda de Stroessner não significou o fim do sistema autoritário que ele criou. Uma anedota popular conta que o ditador exilado, vendo uma foto do primeiro gabinete pós-transição do Paraguai, comentou: “Sou o único ausente”.

Uma esquerda no suporte de vida

Se o Partido Colorado se tornou dominante, a esquerda paraguaia sofre com múltiplas fraquezas estruturais – que por sua vez são difíceis de separar do legado do autoritarismo – que o diferencia regionalmente. Movimentos de massa (e, em menor grau, resistência armada) forçaram os regimes militares do Brasil, Chile e Uruguai a restaurar a democracia e criaram uma geração de líderes pós-ditaduras de esquerda (Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, José Mujica) e centro-esquerda (Ricardo Lagos). No Paraguai, por outro lado, Stroessner foi derrubado apenas por um golpe palaciano em 1989 liderado por seu genro, general Andrés Rodríguez, que foi então legitimado em uma eleição nominalmente livre, mas injusta.

A continuidade subsequente do Colorado privou as forças progressistas de visibilidade, financiamento de campanha e experiência governamental além do truncado interregno de Lugo – que foi possibilitado apenas pela divisão do voto do Colorado entre dois candidatos e pelo jeito único de Lugo. Segundo Fernando Martínez, cientista político paraguaio da Universidade de Buenos Aires, o “fenômeno” de Lugo se baseou em uma aliança incomum entre os fiéis católicos rurais, os movimentos sociais de esquerda e o establishment do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA).

“A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos EUA (10,3%).”

“Lugo chega magicamente às pessoas, sobretudo aos pobres que estão distantes das estradas de asfalto das cidades”, lembra o colunista político Alfredo Boccia. A esquerda paraguaia ganhou poder em 2008 “por um atalho”, acrescenta. Hoje esse atalho não existe mais. Lugo representava um milagre, mas também uma espécie de maldição. Sua vitória personalizada privou a esquerda “de um processo de coordenação, debate, crescimento e construção de poder que não pode ser feito da noite para o dia”.

As universidades sul-americanas há muito fornecem um campo de treinamento para movimentos e políticos antiestablishment. O social-democrata chileno Gabriel Boric e sua chefe de comunicação comunista Camila Vallejo são apenas os exemplos mais recentes. No entanto, no Paraguai, os partidos tradicionais cooptam líderes universitários, até mesmo de ensino médio, como meio de colher novos eleitores.

Os operadores políticos costumam fazer dois ou três cursos de graduação sucessivos, diz David Riveros García, um ativista anticorrupção, “para que permaneçam na universidade para projetar influência política para si ou para seu partido. É uma loucura, mas acontece muito”. Quando os subornos falham, a repressão é empregada. Vivian Genes, estudante de arquitetura e organizadora da Universidade Nacional de Assunção (UNA), foi presa sem julgamento no ano passado junto com vários outros militantes durante protestos massivos contra a corrupção no Partido Colorado.

A etnicidade também não fornece uma estrutura organizadora para a política no Paraguai, como na vizinha Bolívia, onde a maioria indígena tem consistentemente devolvido ao Movimento ao Socialismo (MAS) o poder desde 2005. A maioria dos paraguaios é mestiça e fala um pouco de guarani e políticos falam da boca para fora sobre a herança indígena do país. No entanto, poucas pessoas se identificam com as comunidades indígenas marginalizadas de hoje, que somam apenas 120.000 pessoas e estão muito dispersas geograficamente (e em 19 povos distintos) para formar uma bancada indígena sólida.

Os partidos indigenistas nascentes precisam estar sob o guarda-chuva do movimento de esquerda mais amplo, argumenta Mario Rivarola, um artesão Mbyá Guarani e organizador da Organização Nacional de Aborígenes Independientes (ONAI). “Se os progressistas não se unirem”, acrescenta, os colorados “continuarão governando o Paraguai como sempre, com a extrema direita e a extrema corrupção. Não haverá um programa político para os pobres ou para nós indígenas”.

Enquanto os países vizinhos têm federações trabalhistas combativas que definem os parâmetros das políticas públicas, os sindicatos paraguaios são fracos e fragmentados. A taxa de sindicalização do Paraguai, de apenas 6,7%, está bem abaixo do Brasil (18,9%), Argentina (27,7%), Uruguai (30,1%), Bolívia (39,1%) ou mesmo dos Estados Unidos (10,3%). A economia é carente de empregos de manufatura ou mineração. Sete em cada dez pessoas trabalham na economia informal atomizada, vendendo chipa na beira da estrada ou atendendo famílias ricas. Apenas 0,6% dos empregados do setor privado são sindicalizados.

De acordo com a pesquisa de Ignacio González Bozzolasco, os trabalhadores frequentemente relatam a repressão sindical, incluindo intimidação por parte dos gerentes. Paradoxalmente, o baixo limite necessário para formar um sindicato setorial (trinta pessoas) significa que os patrões podem facilmente diluir o trabalho organizado por meio de recortes flexíveis. À medida que as empresas brasileiras aceitaram ansiosamente o convite de 2014 do ex-presidente Horacio Cartes para “usar e abusar do Paraguai” e sua (não sem relação) mão de obra barata, os últimos anos viram uma explosão no negócio têxtil. Essa forma de industrialização pouco qualificada nos moldes da América Latina dificilmente produzirá uma figura como Lula, que se formou no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, ou gerará condições para ações grevistas abrangentes como as que estabeleceram pisos salariais no Uruguai.

Os camponeses, normalmente sem o título da terra que trabalham, representam o setor político mais agitado, organizando marchas regulares, ocupações e manifestações, mas sofrem igualmente de desunião e repressão. Na década de 1970, a polícia de Stroessner desmantelou violentamente as Ligas Agrarias Cristianas, comunas camponesas autônomas e utópicas que haviam desafiado a dominação do Partido Colorada no campo. Seus herdeiros modernos, como a Federación Nacional Campesina, Conamuri e a Organización de Lucha por la Tierra, ajudam pequenos agricultores a reivindicar corajosamente terras públicas ocupadas ilegalmente pelo agronegócio, apesar de enfrentarem duras punições judiciais.

“No nível da luta social e em termos eleitorais, nos últimos 25 anos os camponeses têm sido o principal grupo social que oferece ideias transformadoras”, diz Najeeb Amado, secretário-geral do Partido Comunista Paraguaio (PCP). Mas a mídia corporativa e o governo são rápidos em pintar essas organizações com o mesmo pincel que o Ejército del Pueblo Paraguaio (EPP), um minúsculo grupo guerrilheiro ativo no norte.

Após as esperanças frustradas dos anos de Lugo, alguns movimentos rurais são ambivalentes em relação à política eleitoral, e seu poder está diminuindo à medida que pequenos proprietários familiares são forçados, muitas vezes sob a mira de armas, a migrar para a cidade ou para o exterior. Quanta chance a esquerda realmente tem, Boccia se pergunta em voz alta, em um país com uma população rural desenraizada e sem um proletariado urbano com qualquer poder real?

Engolir o sapo

O ano de 2023 pode, no entanto, fornecer uma brecha rara na notória “unidade granítica” dos Colorados. As duas facções rivais dominantes dentro do partido estão atualmente em guerra. O ex-presidente Horacio Cartes não é um Colorado por convicção, mas um latifundiário e plutocrata que se juntou ao partido há apenas uma década. Por outro lado, o presidente Mario Abdo Benítez – filho do carregador de malas de Stroessner – representa uma vertente mais estatista e tradicionalista do coloradismo.

No entanto, os analistas concordam que suas diferenças não são realmente sobre ideologia, mas sim sobre uma luta por riqueza e poder. Há meses, o governo Abdo Benítez vem informando que a fortuna de Cartes pode derivar de uma vasta operação internacional de contrabando de cigarros e lavagem de dinheiro em aliança com narcotraficantes: uma suspeita há muito compartilhada pela Agência Antidrogas dos EUA (DEA) e vários relatórios independentes. Cartes e seus funcionários insistem que tais alegações são politicamente motivadas e que a razão pela qual o magnata do tabaco reduziu suas viagens ao exterior não é o medo de ser preso como seu colaborador próximo Dario Messer, mas sim porque ele está cansado de viajar.

“No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance.”

Limites de mandato na Constituição paraguaia fazem com que nem Cartes nem Abdo Benítez possam concorrer no ano que vem, e seus sucessores nas primárias do Partido Colorado são profundamente sem inspiração. Santiago Peña, o tecnocrático de Cartes, foi derrotado nas primárias de 2017 por Abdo Benítez. Hugo Velázquez, o atual vice-presidente, é um veterano do partido perseguido por suas próprias alegações de corrupção.

As apostas para seus patronos rivais são tão altas que o perdedor das prévias em dezembro pode concorrer no ano que vem de qualquer maneira, dividindo ainda mais o voto do Partido Colorado e abrindo uma brecha para a esquerda, como aconteceu em 2008, quando a máquina partidária se uniu a um candidato e o vencedor saiu baqueado de toda confusão.

O desafio para a oposição, então, é reduzir o número de figuras centradas na personalidade em uma chapa unificada que possa tirar proveito das lutas internas do Partido Colorado. Dentro da crescente aliança centrista da Concertación, os pré-candidatos incluem Soledad Núñez, uma mulher de 39 anos que foi ministra da Habitação de Cartes, e Sebastián Villarejo, ex-vereador municipal do conservador Patria Querida (PPQ).

As diatribes da deputada Kattya González contra a corrupção são populares no TikTok, mas muitas vezes se transformam em estroessnerismo requentado sobre lei e ordem e valores “familiares”. No entanto, o PLRA, a segunda força política do Paraguai depois dos Colorados, provavelmente insistirá em mais uma vez impor seu líder sério Efraín Alegre, que concorreu à presidência e perdeu em 2013 e (mais estreitamente) em 2018. Os outros provavelmente se contentarão com cargos do primeiro escalão no gabinete e no Congresso.

O bloco de esquerda Ñemongeta por una Patria Nueva votou em Esperanza Martínez da Frente Guasú como sua candidata. Médico, especialista em saúde pública e senador que expandiu maciçamente a assistência médica gratuita como ministro da Saúde de Lugo, Martínez é uma figura de fala mansa em uma cultura política estridente. Mas seu apelo é óbvio depois que a pandemia revelou o estado abissal dos hospitais do Paraguai devido ao subfinanciamento e aos furtos do Partido Colorado.

Para o bem ou para o mal, parece provável uma chapa com Alegre e Martínez. Pode ser uma fórmula vencedora em 2023 – um arranjo semelhante chegou a alguns pontos percentuais da vitória em 2018 – mas há riscos. No Paraguai, as eleições presidenciais são vencidas com maioria simples em um único turno: ou seja, a oposição só tem uma chance. Se uma figura como González, o grosseiro e habilidoso ex-goleiro José Luis Chilavert, ou Euclides Acevedo – um social liberal que até recentemente era ministro das Relações Exteriores – decidir concorrer fora da emergente aliança Concertación-Ñemongeta, eles dividem fatalmente o voto da oposição.

Lugo, agora senador pela Frente Guasú, vai apostar em Martínez e na Concertación. Mas a bênção do ex-clérigo pode ser mista. Sua imagem foi manchada graças a escândalos sexuais que surgiram quando ele estava no cargo e à tentativa conjunta com Cartes de permitir que ambos concorressem a um segundo mandato por meio de uma emenda constitucional secreta, que levou manifestantes a incendiar o Congresso em março de 2017.

Mesmo que essa coalizão desajeitada seja vitoriosa, seus líderes podem lutar para realizar as mudanças significativas que o povo paraguaio tanto precisa, como a redistribuição de terras, os grandes aumentos de impostos e gastos recomendados até mesmo pelo Banco Mundial e pelo FMI, além de sérias reformas anticorrupção e o fortalecimento de movimentos que defendem os direitos reprodutivos e uma política de drogas mais inteligente. “Todos sabemos que o Partido Liberal é uma organização de direita”, diz Rivarola, que classifica Alegre como “traidor” por aderir à deposição de Lugo em 2012, “mas temos que engolir um pouco o sapo e a víbora para ganhar um espaço no poder para manter a organização. Acho que as pessoas vão se unir contra um inimigo claro: o Partido Colorado”.

Um jardim em um campo de soja

Um velho ditado cunhado pelo escritor Augusto Roa Bastos afirma que o Paraguai é uma ilha cercada de terra. Fica atrás de seus vizinhos em termos de direitos e liberdades, e é o único país sul-americano a manter relações com Taiwan e não com a China. Mas não está isolado das correntes políticas regionais. Com o Brasil provavelmente devolvendo Lula ao poder em outubro, o Paraguai pode ser o último de seus vizinhos a seguir a tendência de esquerda – parte maré rosa 2.0, parte anti-incumbência – varrendo a América do Sul.

Para conseguir isso, a desajeitada coalizão Concertación, incluindo a Ñemongeta, terá que unir com sucesso a oposição fraturada do Paraguai contra o Partido Colorados. Fazendo a ponte entre o campesinado sitiado e as classes médias urbanas espremidas, pode-se enfatizar como os colorados não apenas entregaram mais de oito milhões de hectares de terras agrícolas estatais a seus comparsas – uma área maior que o Panamá – mas estão ocupando ilegalmente pelo menos uma dúzia de parques públicos em Assunção, a capital, com seus escritórios partidários.

Também pode aproveitar o orgulho nacional feroz na resistência heróica do Paraguai nas guerras da Tríplice Aliança e do Chaco, enfatizando que o neoliberalismo do Partido Colorado deixou o país indefeso contra violentos cartéis transnacionais de drogas, os abusivos proprietários estrangeiros cortando suas florestas e diplomatas brasileiros tentando enganar o Paraguai pagando um preço injusto por sua abundante fonte de energia hidrelétrica.

“Os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.”

Expor a corrupção do governo pode ser uma tática de campanha eficaz. No entanto, os progressistas devem tomar cuidado para não deslegitimar o próprio gasto público, quando o estado do Paraguai quase não existe em muitos lugares, exceto para fornecer milícias armadas e uniformizadas para os barões do gado e da soja. A corrida será acirrada e observadores internacionais independentes precisarão ajudar a oposição a proteger cada voto.

Um Paraguai progressista seria um pontapé na cara dos direitistas latino-americanos e internacionais que há muito se inspiram em sua mistura de economia laissez-faire e governança autoritária: veja a recente visita do líder de pesquisa argentino Javier Milei, ou a onda de anti-vaxxers alemães e neonazistas que estão colonizando o campo do país. Também pode representar um desafio para os Estados Unidos, cuja a expansão da embaixada em Assunção, argumenta Amado, do Partido Comunista, ilustra o papel de longa data do Paraguai como ponta de lança dos interesses norte-americanos no Cone Sul.

Qualquer que seja o resultado em 2023, os movimentos sociais divididos, mas teimosos, continuarão sua luta contra as probabilidades. E é provável que os camponeses, embora perseguidos e exilados, continuem sendo os mais perspicazes na articulação de seus objetivos políticos e materiais.

Dez anos depois do golpe, a resposta ao refrão comum – “O que aconteceu em Curuguaty?” — permanece obscuro. Em 2018, no entanto, os 11 camponeses injustamente presos foram finalmente libertados e sua comunidade permanece no local. Em uma comemoração anterior ao massacre de 2012, Karina Paredes, que perdeu 2 irmãos na saraivada de balas, mostrou aos visitantes a aldeia florestal, seus pomares florescentes e hortas familiares, resistindo em meio a um horizonte infinito de soja. “Estamos muito orgulhosos”, disse ela. “Esses são os frutos da luta.”

Sobre os autores

Norma Flores Allende escreve para o jornal paraguaio Hína e para a mídia internacional, incluindo Tidningen Global (Suécia).

Laurence Blair reporta sobre o Paraguai para a mídia internacional, incluindo o The Guardian

Sob o capitalismo, a colonização do espaço significa a destruição da Terra

Mais de 50 anos atrás, o filósofo alemão Günther Anders alertou que as viagens espaciais corriam o risco de serem usadas para poder e lucro. Contra o "provincialismo" do capitalismo espacial, ele queria que a visão do espaço sideral expandisse significativamente nossos horizontes na Terra.

Srećko Horvat

Jacobin
Astronauta James McDivitt, Gemini 4, 1965. (NYPL/Unsplash)

Em fevereiro de 2022, o Adam Smith Institute publicou um relatório alegando que a lua deveria ser privatizada para ajudar a acabar com a pobreza na Terra. De acordo com o relatório, a lua deveria ser dividida em parcelas de terra e atribuída a vários países para que alugassem para empresas, o que impulsionaria o turismo espacial, a exploração e descobertas científicas.

Por enquanto, felizmente, há um tratado que impede tais planos. O Tratado do Espaço Exterior foi elaborado pelas Nações Unidas em 1967 com a ideia de proibir países e indivíduos de possuírem propriedades no espaço. Ele também proíbe a militarização do espaço exterior e proíbe testes de armas e bases militares lá.

O Adam Smith Institute sustenta, no entanto, que “com mais países e empresas competindo na corrida espacial do que nunca, é vital que deixemos de lado o pensamento ultrapassado da década de 1960 e abordemos a questão dos direitos de propriedade extraterrestre o mais cedo possível”.

Até certo ponto, essa visão já é uma realidade. Em 2020, a NASA lançou um esforço para permitir que empresas minerem recursos, anunciando que apoiaria a extração privada na lua.

“Esse é um pequeno passo para os recursos espaciais, mas um salto gigante para a política e a criação de precedentes”, disse Mike Gold, ex-chefe de relações internacionais da NASA, resumindo a nova fronteira do capitalismo. Enquanto isso, uma legislação semelhante permitindo a privatização de recursos extraterrestres está sendo introduzida em Luxemburgo, Índia, China, Japão e Rússia.

Também em 2020, a NASA mudou sua política para permitir que astronautas particulares fossem à Estação Espacial Internacional. Em abril de 2022, a primeira equipe totalmente privada de astronautas começou uma missão de uma semana aclamada como um “marco na aviação espacial comercial”. Da mesma forma, a SpaceX de Elon Musk e a Blue Origin de Jeff Bezos têm lançado seus próprios voos privados para o espaço.

Em suma, a comercialização e privatização do espaço aceleram. Turismo espacial, mineração de asteroides e internet de satélites espaciais não são mais ficção científica. Eles se tornaram uma fonte potencial para “crescimento futuro” e “progresso”.

Para que serve a lua?

Se houve um filósofo do século XX que voltou seu olhar crítico para a exploração espacial humana, esse filósofo foi Günther Anders.

Nascido como Günther Stern em 1902 em Breslau, Polônia (hoje Wrocław), ele foi aluno de Ernst Cassirer, Edmund Husserl e Martin Heidegger, e trabalhou pela primeira vez como jornalista (foi durante esse período que começou a assinar seus artigos como “Anders” — que significa “diferente” em alemão — em vez de “Stern”). Com sua esposa Hannah Arendt, ele percebeu a realidade iminente do hitlerismo. Em 1931-32, eescreveu seu romance profético distópico e antifascista, A Catacumba Molossiana (Die molussische Katakombe), que concluiu enquanto estava exilado em Paris em 1933, quando Hitler chegou ao poder. (No entanto, ele só seria publicado em 1992, o ano de sua morte). Ao longo de sua carreira, escreveu extensivamente sobre tecnologia, a era atômica, Auschwitz e Hiroshima — e também a lua.

Em 1969, Anders estava entre os seiscentos e cinquenta milhões de pessoas que assistiram ao pouso na lua — o primeiro evento de TV verdadeiramente global do século XX. Enquanto a maioria ficou hipnotizada pela famosa declaração de Neil Armstrong — “Este é um pequeno passo para o homem, um salto gigante para a humanidade” — ele teve uma visão diferente. Em seu livro The View from the Moon: Philosophical Reflections on Space Travel [A vista da lua: Reflexões filosóficas sobre viagens espaciais], ele comentou que foi um salto gigante para a humanidade apenas na medida em que se saltou “para longe da estrada que leva a um futuro melhor”.

Embora pareça que uma nova Guerra Fria está nascendo, nosso futuro nas estrelas é hoje menos definido pela disputa entre países (Estados Unidos x URSS) do que por empresas privadas (SpaceX x Blue Origin, etc.).

Foi Anders quem nos alertou com seu “catastrofismo profilático” sobre as perspectivas de apropriação do espaço. No segundo volume de seu The Obsolescence of Man: On the Destruction of Life in the Epoch of the Third Industrial Revolution [A obsolescência do homem: Sobre a destruição da vida na época da Terceira Revolução Industrial], ele fez uma afirmação sobre o papel mutável da ciência. Argumentou que a missão da ciência moderna não é mais “procurar o segredo” — isto é, a essência secreta ou oculta de algo — mas descobrir os tesouros secretos que podem ser apropriados.

Anders coloca a questão: “Para que serve a lua?” Sua resposta é simples, mas assustadora: matéria-prima. Ele vai ainda mais longe, dizendo que ser matéria-prima é o criterium existendi hoje. É uma tese metafísica fundamental.

Anders argumenta que a jornada lunar “não foi o destino, mas o ponto de partida”. O que era apresentado como a descoberta humana da lua, era na verdade um “auto encontro com a Terra”.

As imagens do universo captadas pelo telescópio James Webb recentemente inventado despertaram entusiasmo em todo o mundo. Para Anders, quanto mais sublime o universo parecia, mais trágica era a destruição contemporânea do nosso planeta. Quanto mais a tecnologia avançava, maiores eram as chances de destruição e autodestruição.

Para Anders, a visão do telescópio não nos permite, como humanos, parecer maiores. Pelo contrário, ele escreve, é “como se o universo estivesse olhando de volta para nós através de um tubo como punição, nos encolhendo tanto quanto se expandiu com nossa visão telescópica”.

Filósofos a bordo

Se aceitarmos a formulação de Anders sobre o “auto encontro com a Terra”, o que vemos no espelho hoje? O que representa nossa “Nova Era Espacial” contemporânea?

Cinquenta anos atrás, Anders descreveu o fenômeno do “provincialismo”: homens que voam para o espaço para se tornarem famosos — ou poderosos — na Terra. É difícil não pensar em uma figura como Jeff Bezos enviando William Shatner (Capitão Kirk de Star Trek) neste contexto.

Por meio da exploração do espaço, o homem se tornou “mais provinciano do que ele mesmo”, escreveu Anders, porque as viagens espaciais que deveriam “ampliar nosso mundo” tiveram exatamente o efeito oposto — ou seja, ainda mais fixação na Terra. Em um futuro próximo, os planetas ocupados provavelmente servirão primeiro como bases para a extração de recursos valiosos que tornarão os mais ricos da Terra ainda mais ricos. “O futuro já começou”, escreveu Anders. “Mas a serviço do passado.”

Ele alegou que havia considerado dar a Der Blick vom Mond (A vista da lua) o título alternativo de A obsolescência da Terra. No entanto, ele decidiu o contrário, porque implicaria que nosso planeta está obsoleto e que teríamos que deixá-lo e encontrar outros planetas habitáveis. Isso estava longe da intenção de Anders.

Para figuras como Musk e Bezos — os novos ocupantes do espaço — é precisamente essa noção de obsolescência da Terra que se tornou o criterium existendi. Precisando de novos recursos para extração, acumulação e lucro, eles buscam colonizar o espaço, mesmo que o preço seja a destruição da Terra.

A vista da lua que os astronautas da Apollo tiveram foi assistida simultaneamente por milhões de telespectadores (aproximadamente um quinto da população mundial na época), mas Anders a viu como mais do que apenas um espetáculo midiático. Ele a reconheceu como um evento globalizante e metafísico:

Não apenas eles a encontraram, nós também a experimentamos. E já que permanecemos na Terra, e como criaturas terrestres são a Terra, podemos dizer com toda a justiça: pela primeira vez — e este é um evento histórico de um tipo completamente novo — a Terra, de pé diante de um espelho, tornou-se reflexiva, despertada para a autoconsciência pela primeira vez, ou pelo menos para a autopercepção.

Depois que o piloto do módulo de comando Michael Collins retornou à Terra após a missão Apollo 11 à Lua, ele disse a famosa frase que os voos futuros “deveriam incluir um poeta, um padre e um filósofo, para que pudéssemos ter uma ideia muito melhor do que vimos”.

O candidato perfeito para o filósofo a bordo teria sido Günther Anders. Embora a maior parte de sua obra (incluindo A vista da lua) ainda permaneça bastante desconhecida e não publicada em inglês, é precisamente sua obra sobre tecnologia, apocalipse e exploração espacial que pode nos guiar agora.

Hoje, com imagens de alta resolução das origens do universo, sua pergunta pertinente, “Para que serve a lua?” é tão importante quanto antes, embora possa ser ampliada para o questionamento: “Para que serve o universo?” Qual é a utilidade de descobrir a magia do nosso universo, se continuarmos destruindo o planeta Terra? Qual é a utilidade de Marte se você planeja colonizá-lo com a mesma lógica capitalista de extração e expansão?

Além de descobrir o universo, precisamos redescobrir a Terra e protegê-la da lógica fatal dos novos “exploradores espaciais” ou autoproclamados “ocupantes”.

Embora Günther Anders fosse o candidato perfeito para qualquer missão ao espaço, ele não precisou viajar para a lua para ver melhor a Terra. Mas ele também viu a lua.

Colaborador

Srećko Horvat é um filósofo croata, autor e ativista político.

24 de junho de 2022

Fora Lasso

Soledad Stoessel



O governo neoliberal de Guillermo Lasso não poupou recursos na hora de reprimir a Greve Nacional no Equador, que já conta com 12 dias de protestos. Mas se as esquerdas não transcenderem seu sectarismo e ressentimentos para articular uma grande frente multinacional e popular, será difícil dar uma resposta profunda a essa crise.

"Fora, Lasso, fora” é ouvido nas ruas da capital equatoriana como parte do décimo segundo dia da greve nacional convocada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). Desde o início, o protagonismo da CONAIE foi acompanhado por inúmeras das mais amplas organizações e grupos do campo popular: estudantes, camponeses, sindicatos, transportadores, mulheres, feministas, artistas, trabalhadores informais.

A agenda de dez pontos exigida pela CONAIE foi a plataforma inicial com que lançaram a greve, mas à medida que a mobilização social avançava e a consequente resposta repressiva do Estado, bem como a miopia presidencial para processar esse conflito, a palavra de ordem destituíste ganhava mais força.

Esses tipos de slogans ("¡que se vayan todos!", "fora, presidente, fora!") de setores sociais mobilizados e fartos de representantes políticos distantes da sociedade não são novos no país andino. As três últimas quedas presidenciais (1997, 2000 e 2005) foram marcadas por intensos episódios contenciosos e de mobilização social discursivamente emoldurados por uma aversão à classe política, em particular à figura que encarna a mais alta investidura, o presidente.

Essa repulsa sempre adquiriu uma forma destituinte que se refletiu em um imaginário social peculiar: diante de qualquer crise social, econômica ou política que tenha seu correlato na ativação do poder constituinte (o povo mobilizado), a saída política é a renúncia ou a queda do presidente.

Os imaginários sociais, disse Cornelius Castoriadis, como conjunto de representações, normas, afetos, desejos e significados compartilhados por um grupo social, são fonte de criação. Eles produzem o mundo. Eles têm o poder de operar na realidade, oferecendo tanto oportunidades quanto restrições para as ações dos sujeitos que, por sua vez, podem ter efeitos instituintes e institucionais. Eles podem. Nem sempre acontece. Os imaginários sociais, mesmo os radicais (aqueles que, segundo o filósofo grego, se baseiam em uma imaginação, uma fantasia, projetada de forma autônoma, politizada, com vocação para a mudança), nem sempre produzem novas instituições e práticas sociais e rompem as relações de poder.

Durante la década de mayor estabilidad política en Ecuador —los años correístas— también se activó tal imaginario durante aislados y efímeros momentos. «Fuera, Correa, fuera» vitoreaban clases medias y herederas en constante ascenso social, en rechazo a un gobierno que dinamizaba la economía y la inversión pública y generaba empleo y acceso a la salud y educación pública para toda la población. Los rebeldes privilegiados, una minoría, pedían la cabeza presidencial.

El imaginario de una caída presidencial como forma de resolver la vida (o para impedir que otros vivan una digna, como el caso de los que reclamaban por no encontrar en el mercado productos importados, como la Nutella) aparece y desaparece en coyunturas críticas.

Octubre de 2019 también revivió dicho magma de representaciones destituyentes. La crisis social producida por el gobierno de Lenín Moreno ante el aumento por decreto del precio de los combustibles tuvo su contraparte en el estallido social más importante en lo que va del siglo XXI. Durante los trece días de intensas movilizaciones y de paro nacional, también convocado por el movimiento indígena, el fantasma de la caída presidencial pululó en las calles, en la sociedad civil y en la clase política. El saldo de la violenta represión estatal fueron 11 muertos y varios heridos y desaparecidos.

El conflicto se procesó institucional y políticamente por medio de un diálogo televisado públicamente entre los dirigentes indigenas y el presidente. Moreno y su gabinete (la ministra Romo, sometida a juicio político, y el exministro de Defensa Oswaldo Jarrín), denunciados internacionalmente por cometer crímenes de lesa humanidad, acabó su gobierno luego de cuatro años como si nada hubiera ocurrido.

El «fuera, Lasso, fuera» que ahora se escucha en parte —no todo— del campo popular organizado y movilizado contra el gobierno del banquero es el corolario de dos situaciones: el hartazgo de una sociedad que desde hace cuatro años sufre las consecuencias de un proyecto comandado por un bloque de poder oligárquico y el modo en que el gobierno de Lasso está interpretando y tramitando el conflicto.

Respecto a la primera, los reclamos públicos por parte de las organizaciones movilizadas van desde el rechazo a las políticas de austeridad (recortes presupuestarios en servicios públicos, como salud y educación), al aumento sostenido del precio de los combustibles y de la canasta básica (el video en que un niño pedía al gobierno controlar los precios de los bienes básicos como aceite y verduras porque su madre ya no podía prepararle salchipapas se viralizó al punto de ser un ícono de la resistencia y de reclamo de una vida digna), a la falta de inversión pública, a la privatización de servicios y empresas públicas, al extractivismo en territorios indígenas, hasta la carencia de una política pública eficiente y orientada al bien común.

A esta multiplicidad de demandas iniciales se sumó un repudio mayoritario —con excepción de las contramarchas «por la paz» a las que convocó en Quito el propio gobierno y operadores del imperio mediático privado— al modo en que el Estado, con todo su aparataje represivo, intervino en el conflicto desde el segundo día. Ni bien iniciada la protesta, el máximo dirigente de la CONAIE, Leonidas Iza, fue detenido ilegalmente (en estricto rigor, se trató de un secuestro) durante 24 horas durante las cuales se desconoció su paradero.

Si la protesta lucía ser una expresión más de descontento social, la respuesta gubernamental —violenta y represiva— la elevó a un estallido social sin precedentes, incluso sin parangón con los episodios de octubre. Respuesta gubernamental esperable. Al mes de asumido el gobierno, Lasso, en una ceremonia con las Fuerzas Armadas, se solidarizó con su colega Iván Duque por las denuncias que pesan sobre sus hombros por los crímenes de lesa humanidad cometidos durante las movilizaciones sociales en Colombia durante 2021. Y aprovechó el momento —guiño a las fuerzas del orden, amenaza al campo popular— para bloquear todo intento de ejercicio del derecho a la protesta y a la resistencia en Ecuador.

El quinto día de paro nacional, el gobierno, en un movimiento desesperado, decretó el Estado de excepción en tres provincias con el consiguiente toque de queda desde las 22 horas, la restricción de los derechos fundamentales y el uso progresivo de la fuerza. A las pocas horas, dada la lluvia de críticas (incluso de parte de sus propias filas) respecto a la restricción del derecho a la información, voceros presidenciales anunciaron que había habido un error, que el presidente firmó un borrador y lo remendarían. La ineptitud gubernamental en su máximo resplendor.

A los tres días de dicho torpe decreto, en una jugada macabra (no «maestra», como tildaron algunos twitteros lassistas) el gobierno firmó un nuevo decreto, anulando el previo, para extender la situación de excepcionalidad a tres provincias más, dado el alcance nacional que había adquirido el paro.

Al décimo día de paro nacional, la Alianza de Organizaciones por los Derechos Humanos ya contabilizaba 3 personas fallecidas, más de 90 heridas, 94 detenidas ilegalmente y 4 desaparecidas a causa de la represión gubernamental. Esta escalada de la violencia institucional se acompañó de escasos signos de apertura al diálogo por parte del gobierno nacional. De presidente a presidente, Lasso procuró establecer este «diálogo», adoptando como único interlocutor a Iza, a quien al mismo tiempo tildaba de violento, golpista y conspirador. A esta incompetencia gubernamental se sumaba la ocupación y militarización de espacios humanitarios emblemáticos, como universidades y la Casa de la Cultura Ecuatoriana, que funcionan como centros de acopio y refugio para las poblaciones indígenas movilizadas.

La calle vs. el gobierno; el pueblo vs. la oligarquía; el poder constituyente vs. el poder constituido —anquilosado en su insistencia por perpretar un neoliberalismo autoritario que ni media concesión al pueblo está dispuesto a hacer— no son meras consignas discursivas, como algunos nerviosos antipopulistas querrán proponer para denostar al populismo como estrategia política apoyada en una lógica binaria para alcanzar al poder.

Esta polarización estructural, ahondada por el gobierno nacional, tiene profundas bases materiales. Al tiempo que la sociedad se empobrece (1/3 de los ecuatorianos son pobres) y se sume al desempleo o al trabajo precarizado, al tiempo que las mayorías ya no cuentan con seguridad social y que los jóvenes no logran acceder a la universidad, que los sectores populares viven de remesas familiares (solo en el primer año del gobierno de Lasso salieron del país aproximadamente 91 000 personas) y que las clases medias deben pagar más impuestos, los grupos de poder gozan de la exención del impuesto a la herencia y de facilidades para fugar su capital en paraísos fiscales.

Como nunca en la historia del Ecuador, hoy la oligarquía tiene el poder instrumental y el poder estructural. Maneja los hilos de la economía al mismo tiempo que captura el Estado para sus propias arcas. Ya no fue necesario un intermediario, como lo fue Moreno. Ahora es la propia elite financiera, apoyada por las Fuerzas Militares (no olvidemos que en Ecuador han sido dirimentes en toda crisis política), los medios de comunicación privados y la Embajada la que controla los recursos públicos.

En esta polarización, instituciones democráticas como el parlamento y los partidos políticos brillan por su ausencia en tanto representantes del pueblo. Ante la imposibilidad de algunos partidos políticos de pronunciarse sobre (o encarnar) las salidas políticas-institucionales para procesar el conflicto, las calles se vuelven locus de la representación política.

¿Dicha imposibilidad responde a la falta de proyección política? ¿O a que están atrapados en una camisa de fuerza por posibles y conocidas persecuciones políticas que implantó como antecedentes el gobierno de Moreno? O sin más, ¿los partidos políticos, en una lectura «rational-choista» están sopesando los costos de involucrarse de primera mano para tramitar este conflicto social al que alimentaron varios de ellos, como el prebendalista y corporativista Pachakutik?

En este escenario, el imaginario social destituyente vuelve a reactivarse. Decíamos que un imaginario social solo en determinadas condiciones, según las particularidades de cada coyuntura, como las correlaciones de poder, el acumulado social y los poderes fácticos que sostienen el poder instituido, puede tener efectos instituyentes. ¿Lasso será destituido por medio de los mecanismos constitucionales que puede activar la Asamblea (artículo 130 de la Constitución)?

Dos bancadas parlamentarias (Izquierda Democrática y Partido Social Cristiano, suman aproximadamente 23 votos) ya anunciaron que no apoyarían la destitución, mientras que Iza exhortó a «sus» representantes partidarios (PK) a apoyarla. Por su parte, la bancada mayoritaria, la de UNES (Unión por la Esperanza), el partido correísta, por unanimidad y sin fisuras, puso sus curules a disposición y las firmas de sus asambleístas como gesto de apoyo a la destitución presidencial por medio del artículo 130.2 de la Constitución.

¿El presidente renunciará? En este escenario de radicalización de la derecha ecuatoriana que obtuvo el poder por la vía electoral, sumado a los aliados estratégicos a quienes una posible caída presidencial amenazaría sus posiciones, es difícil que a Lasso lo «dejen» renunciar. ¿El Poder Ejecutivo convocará a la novedosa figura de la «muerte cruzada» (artículo 148)? Meses atrás, ya Lasso había amenazado con hacerlo si la Asamblea continuaba «bloqueando» sus proyectos legislativos. ¿O simplemente el conflicto social se procesará por medio de una negociación política entre la CONAIE y el gobierno, de forma tal de bajar la intensidad de la contienda y cada parte conseguir una victoria, aunque parcial?

El patrón corporativo con que las organizaciones indígenas han negociado sus agendas los últimos años (recordemos la alianza entre la CONAIE, PK y el gobierno de Moreno) puede reactivarse en este escenario. Y, a esta altura, el gobierno puede declararse triunfante si logra ceder a varias de las diez demandas sociales declaradas por la CONAIE y esto es aceptado por la organización. En caso de abrirse este escenario, ¿se conformará el campo popular movilizado con la conquista de algunas de las reivindicaciones esbozadas por la CONAIE, excluyendo al resto de demandas ajenas a la organización indígena?

Como se delinea, el panorama luce más que preocupante. Hoy, en vísperas del doceavo día de paro y movilización nacional, que el conflicto encuentre un cauce democrático e institucional suena quimérico. El recrudecimiento de la represión y violación de derechos humanos a últimas horas de la noche del día once de paro (cuando por la tarde parecía establecerse una tregua para el diálogo), la acefalía gubernamental y el saludo celebratorio de operadores mediáticos y de un alto asesor presidencial a las fuerzas del orden por su «trabajo abnegado y heroico» no auguran nada bueno.

El bloque de poder lejos está de visualizar la urgencia de tramitar democráticamente las demandas legítimas que el campo popular viene exigiendo desde los años en que el neoliberalismo autoritario retornó al país andino, con miras a encarnarse como proyecto de poder excluyente, disciplinador y autoritario. Es acuciante, entonces, la conformación de un gran frente plurinacional-popular (¿un Pacto Histórico a la ecuatoriana?) que pueda trascender las parcelas particularistas y los resentimientos políticos de los representantes del campo popular para proponer una salida democrática a esta crisis social y política sin precedentes.

Sobre a autora

Doutora em Ciências Sociais e professora-pesquisadora da Universidade Nacional de La Plata e FLACSO-Equador.

23 de junho de 2022

A Colômbia pertence ao seu povo

Até muito recentemente, o sucesso de um projeto com essas características parecia um feito impossível na Colômbia. Mas as lutas nunca são em vão e os protestos acumulados dos últimos anos tornaram possível o impensável.

Tamara Ospina Posse


Na Colômbia há um novo ar após o triunfo de Gustavo Petro e Francia Márquez (Foto de Guillermo Legaria/Getty Images)

O último domingo, 19 de junho, será marcado como um marco na história da Colômbia. O triunfo da fórmula progressista encabeçada por Gustavo Petro e Francia Márquez nas eleições presidenciais rompe com um continuum de dois séculos de governos elitistas, em sua maioria de direita e, em alguns casos, criminosos. Estes têm governado principalmente em favor de interesses privados nacionais e transnacionais, de costas para o povo colombiano e latino-americano.

Essa hegemonia, que finalmente começa a rachar para dar lugar a outras expressões políticas mais progressistas e populares, deixou um triste legado ao fazer da Colômbia um dos países mais desiguais e mafiosos, sem falar em seus altos níveis de violência política. Petro e Márquez conseguiram encarnar a esperança e o desejo de milhões de colombianos e colombianas de superar a guerra, o autoritarismo, a exclusão social e a fome.

O Pacto Histórico venceu com 11.281.002 votos (50,44%), tornando-se a fórmula presidencial mais votada da história da Colômbia. Se você olhar o mapa que mostra os resultados por departamento, é óbvio que as regiões que mostraram sua preferência por Petro e Márquez correspondem aos territórios que, historicamente, foram mais atingidos pela violência, exclusão social e abandono do Estado, como a região do Pacífico, os territórios do sudoeste do país, a costa caribenha e a Amazônia, em cujos departamentos venceram com altas porcentagens que em alguns lugares chegaram a 80%.

Outro fato relevante é o resultado em Bogotá, onde conseguiu conquistar 58% dos votos. Lembremos que a capital da Colômbia, que concentra quase 10 milhões de habitantes, foi governada por Gustavo Petro no período 2011-2015, implementando políticas sociais que até hoje continuam sendo criticadas por setores de direita que nunca aprovaram a gestão distrital de Bogotá Humana. De qualquer forma, os resultados parecem mostrar que a maioria dos moradores da capital não pensa o mesmo, pois renovaram seu voto de confiança, desta vez para governar a nação.

A verdade é que a Colômbia elegeu seu novo governo e que o país será liderado pela primeira vez por um progressista como Gustavo Petro, um homem dos setores populares mestiços e com um histórico comprovado de luta política de mais de quarenta anos de serviço. Petro é alguém que conhece a fundo o país, com todas as suas complexidades, problemas e riquezas, e que conseguiu articular uma proposta clara e viável com base nisso: um roteiro para uma era de paz.

Assim, expressa um tipo de liderança organizada por uma política do amor, em correspondência com os setores populares, levanta as bandeiras da justiça social e prioriza o cuidado com o meio ambiente, buscando frear as mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que incorpora, em sua própria história de vida, a luta contra a corrupção. Um democrata radical, que fala da política do amor, do perdão social e que vê a Colômbia como o país que poderia chegar a ser: uma "potência mundial da vida".

Além disso, pela primeira vez, o país terá uma vice-presidente como Francia Márquez: afrodescendente, feminista e ambientalista. Líder social de uma das regiões mais afetadas pelo conflito armado, exclusão e pobreza. Em plena guerra, França exerce liderança desde seus 16 anos na defesa do território, da vida, das mulheres e das comunidades afro.

Até alguns anos atrás, ela ganhava a vida como empregada doméstica nas casas das famílias da elite de Cali. Hoje é advogada, vencedora do Prêmio Goldman, Vice-Presidente da República e, como foi anunciado nas últimas horas, a próxima Ministra da Igualdade.

Em um país profundamente classista, racista e patriarcal, governado nos últimos vinte anos pela extrema direita, a chegada ao poder desta dupla sacode as estruturas podres do poder hegemônico desde seus alicerces e inaugura, indiscutivelmente, uma nova era na história política colombiana.

Da resistência ao poder

Até muito recentemente, o triunfo de um projeto independente com essas características parecia uma façanha impossível em um país governado por um regime corrupto que utilizou sistematicamente a violência, a compra de votos, a fraude eleitoral e a demagogia do terror midiático para se perpetuar no poder eleição após eleição.

Embora desta vez o uribismo tenha implantado todo o seu aparato e até se descobriu um plano para assassinar Petro durante uma de suas viagens de campanha, eles não foram capazes de impedir a vitória popular. Apesar de manter o poder econômico e político, os uribistas perderam em grande parte sua legitimidade. Há uma geração mais informada que não está disposta a suportar mais opressão, como foi demonstrado pelo paro de 2019 e pela agitação social de 2021. Mas chegar a este ponto não foi fácil.

Grande parte da legitimidade do uribismo foi construída sobre o medo dos fantasmas do comunismo, do castrochavismo e do terrorismo. O discurso de ódio foi articulado levantando a falsa tese de que todos os problemas da Colômbia se deviam à existência da guerrilha e que, portanto, era necessário eliminá-la militarmente a qualquer custo.

O caso colombiano é reconhecido entre os estudiosos de conflitos por sua complexidade, múltiplas causas, diversidade de atores, dinâmica territorial e sua longa duração. Essa complexidade facilitou a manipulação midiática da narrativa nacional sobre a guerra e os conflitos sociais, políticos e econômicos que fragmentaram o país. Nunca é demais lembrar que, durante sua presidência, Álvaro Uribe conseguiu até mesmo negar a própria existência do conflito armado e definir a guerrilha, a oposição política, o protesto social e as pessoas e movimentos de esquerda como "ameaças terroristas".

Esse discurso se mantém até hoje e parte da população colombiana continua convencida de que os males do país se devem a líderes de esquerda como Petro. No entanto, nos últimos anos muitos fatos relevantes vieram à tona, rompendo com dogmas absurdos e versões enganosas da realidade habilmente implantadas de cima.

Durante as negociações de paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARC, a sociedade pôde dar passos importantes no reconhecimento de sua própria história. Graças ao trabalho do Centro Nacional de Memória Histórica, por exemplo, as histórias das vítimas até então silenciadas começaram a ser conhecidas. Posteriormente, as versões de paramilitares e soldados que se refugiaram na Jurisdição Especial para a Paz (JEP) revelaram a realidade que o regime quis esconder por todos os meios.

Além disso, os contínuos escândalos de corrupção, ligações com o narcotráfico e violações dos direitos humanos gradualmente minaram a confiança das pessoas no projeto Uribe. Uma parcela cada vez mais numerosa da população, portanto, passou a compreender a magnitude e a dimensão da tragédia colombiana e a urgência de sair desse regime de terror que infelizmente já havia se tornado um costume após décadas vivendo um cotidiano encharcado de sangue.

Apesar da manipulação, repressão e adversidade, a resistência sempre existiu na Colômbia: movimentos sociais e políticos, processos de organização popular e comunitária que trabalharam para transformar a realidade. Aqueles que decidiram lutar pagaram um alto preço por enfrentar o poder criminoso, e a violência e a repressão deixaram feridas profundas que, sem dúvida, levarão tempo para cicatrizar.

Esta será talvez uma das tarefas mais importantes e desafiadoras do novo governo: alcançar uma verdadeira reconciliação nacional que garanta justiça às vítimas e crie condições para evitar novos ciclos de violência. E embora haja muitas dores, hoje cabe-nos finalmente documentar a esperança. Essa esperança que sentimos no domingo passado ao ouvir Francia Márquez dizer ao país que “chegou o governo dos calejados, o governo das pessoas comuns, o governo dos ninguéns e os ninguéns da Colômbia. Vamos, irmãos e irmãs, reconciliem esta nação. Vamos pela paz, decididamente. Sem medo, com amor e com alegria. Vamos pela dignidade, vamos pela justiça social, nós mulheres vamos erradicar o patriarcado do nosso país. Defendemos os direitos da comunidade LGBTIQ+ diversificada. Vamos pelos direitos da nossa Mãe Terra, da 'casa grande', de cuidar da nossa casa grande, de cuidar da biodiversidade. Vamos juntos erradicar o racismo estrutural."

El del Pacto Histórico será un gobierno de transición, enfocado en impulsar algunas reformas estructurales que fueron aplazadas históricamente y que hoy buscan dar un giro al rumbo de nuestro navegar como pueblo, pero para lograrlo deberá enfrentar grandes retos.

No se subsanarán en cuatro años todas las brechas de desigualdad ni se superarán todos los daños causados por una guerra de seis décadas y doscientos años de mal gobierno. Gustavo Petro y su equipo recibirán un país que sufre una profunda crisis política, económica y social, y enfrentarán una oposición férrea y posiblemente violenta de parte de aquellos sectores mafiosos y extremistas que se niegan a perder el poder.

Incluso se teme que un sector de las Fuerzas Militares podría llegar a prestarse para organizar un golpe de Estado, por ejemplo. Allí, y en todos los casos, la ciudadanía activa jugará un rol fundamental en la defensa del gobierno popular. Para eso el vínculo entre las instituciones y las calles debe mantenerse fuerte. Los movimientos sociales y las ciudadanías estamos llamados a acompañar este proceso de cerca, lo mismo que la comunidad internacional.

Por otro lado, aunque el Pacto Histórico consiguió la mayor votación en las elecciones de Congreso del 13 de marzo, la bancada no es mayoritaria, por lo que deberá trabajar necesariamente en lograr acuerdos con otros sectores, en lo que se ha llamado la construcción de un Frente Amplio que permita las mayorías necesarias para una óptima gobernabilidad. También será importante acercarse a esos 10 millones de votantes de Rodolfo Hernández que aún desconfían y sienten miedo del cambio.

Cinco transformações e um eixo transversal

Teniendo claro ese panorama, lo que ha propuesto Gustavo Petro es avanzar con determinación hacia el horizonte trazado, que no es otro que el de la democracia real y profunda, para instalar los cimientos y las bases sólidas de la nueva Colombia. Para lograrlo, su programa de gobierno se enfoca en echar a andar cinco grandes transformaciones y promover un eje transversal: la equidad de género.

Comenzando por esto último, cuando una sociedad empieza a comprender que la paz y el bienestar no son alcanzables sin nosotras se abre un horizonte enorme. Colombia es un país en el cual el machismo es una marca cultural muy presente y profunda, que causa un alto nivel de violencias contra las mujeres. Violencia física, que llega a casi dos feminicidios al día; violencia sexual, que se empieza a sufrir casi desde el momento en que se nace niña, y violencia simbólica, económica, psicológica, que a diario padecemos todas las mujeres en todos los ámbitos de nuestra vida: en nuestros hogares, en la calle, en el trabajo, en la escuela, en la política. Violencia sufrida a mayor escala, finalmente, por las mujeres racializadas, empobrecidas o diversas en cuestiones de sexualidad y de género.

La propuesta programática de Petro y Márquez incluye un enfoque diferencial y de género además de políticas específicas para aliviar la brecha de desigualdad y luchar contra las violencias basadas en género. Ejemplos en ese sentido son la propuesta del Sistema Nacional de Cuidados, la creación de una política integral para la prevención y atención de la violencia contra mujeres y niñas, el feminicidio y la violencia sexual, la creación del Ministerio de la Igualdad, encabezado por una mujer feminista como Francia Márquez, y la bancada paritaria del Pacto Histórico. Todo esto es muy notable, aunque sea solo un inicio. Sin duda marcará una diferencia en la vida de millones de mujeres en Colombia.

Respecto a las cinco transformaciones propuestas, es de destacar que la primera gira en torno a la transición energética, la lucha contra el cambio climático, el cuidado del agua y la biodiversidad. La búsqueda de una sociedad que se desarrolle en armonía con la naturaleza es vista como condición sine qua non para la continuidad de la vida en el planeta. Por esta última razón, ese objetivo no se limita a la política interna. En su primer discurso como presidente electo, el pasado domingo Petro envió un contundente mensaje al mundo: «Queremos que Colombia —y será la prioridad de la política diplomática— se coloque al frente de la lucha contra el cambio climático en el mundo. La ciencia nos ha dicho que como especie humana podemos perecer en el corto plazo, que la vida en esta tierra hermosa puede perecer en el corto plazo. Que las dinámicas de acumulación de un mercado desaforado, que un deseo de codicia y ganancia desaforadas, que un proceso de consumo desaforado está a punto de acabar con las bases mismas de la existencia. No nos lo dicen las izquierdas, no nos lo dicen las derechas, nos lo dice la ciencia. Si la ciencia nos los dice, toca actuar ya».

La segunda transformación está relacionada con la transición de una economía extractivista hacia una economía productiva e incluyente, generando las condiciones necesarias para que el país prospere. Condiciones que incluyen democratizar el acceso al crédito, al conocimiento y a la información; la democratización de la tierra para, a través de una reforma agraria, entregar tierras fértiles al campesinado, al igual que infraestructura y tecnología necesaria, permitiendo a Colombia convertirse en potencia agrícola. Se buscará producir riquezas en el campo, en la industria y en el turismo para poder redistribuir. Producir sobre las bases del conocimiento y de manera regulada sin que se afecte la dignidad humana y respetando la naturaleza.

La tercera transformación implica pasar de ser uno de los países más desiguales del mundo a una sociedad garante de derechos. En este eje hay un fuerte enfoque en la niñez y la juventud, sectores sobre los cuales ya Gustavo Petro, durante su tiempo en la Alcaldía de Bogotá, logró resultados históricos en términos de revertir altísimas tasas de desnutrición, mortalidad infantil e índices de criminalidad, todas problemáticas asociadas directamente a la desigualdad.

El programa contempla cambios estructurales que buscan cerrar las brechas de desigualdad socioeconómica, étnica y de género, garantizando derechos fundamentales a la educación, a la salud, al trabajo, la pensión y la vivienda digna a los sectores históricamente excluidos. La lucha frontal contra el hambre y la justicia tributaria también hacen parte de las metas priorizadas. La creación del Ministerio de la Igualdad tendrá la tarea de dinamizar y articular todos los esfuerzos institucionales en la búsqueda de una sociedad más igualitaria.

La cuarta transformación busca pasar del autoritarismo a la democratización del Estado y la garantía de las libertades fundamentales. Este eje, que también prioriza el saneamiento de las instituciones y la erradicación de la corrupción, contempla cambios radicales en la política de seguridad y la política internacional. La aproximación del nuevo gobierno se desmarca de doctrinas como La Seguridad Democrática de Uribe, altamente militarista y autoritaria, así como de la guerra contra el terrorismo y la guerra contra las drogas adoptadas en el pasado bajo la influencia de EEUU. Estos tres enfoques han sido probados en Colombia durante varios gobiernos y han fracasado en sus objetivos. El narcotráfico sigue en aumento y la violencia persiste en muchos territorios del país. Ya es tiempo de probar otras estrategias de seguridad, así como otras formas de afrontar el problema de las drogas ilícitas.

Otro giro importante es la vocación internacionalista y latinoamericanista del Pacto Histórico. Es sabido que Colombia siempre ha sido un instrumento estratégico de la política exterior de los EEUU para Latinoamérica. Esta fuerte influencia ha generado que Colombia se haya mantenido por mucho tiempo ajena a las dinámicas regionales. La llegada de Petro al poder indica un cambio en la naturaleza de las relaciones con EEUU que, según cuenta Gustavo Petro en su twitter, fueron descritas por el propio presidente Biden como «más igualitarias» y provechosas para ambos pueblos.

Al tiempo que plantea una postura hacia los EEUU amistosa y de estrecha cooperación, Petro también ha mostrado un claro interés en afianzar las relaciones con América Latina. Afirmando que llegó la hora del gran encuentro de las Américas, invitó a todos los gobiernos del continente a avanzar hacia una verdadera integración y a trabajar por una economía descarbonizada. En las últimas horas publicó que ha recibido llamadas de todos los presidentes de Latinoamérica y anunció que, tras hablar con el Presidente de Venezuela, acordaron volver a abrir la frontera entre ambos países, cerrada durante el gobierno de Duque.

«Si Colombia cambia, el mundo cambia»

Frente al tema de la superación de la guerra y la construcción de la paz, que es la quinta y última transición, se contempla la implementación y cabal cumplimiento del Acuerdo de Paz con las FARC y el inicio de negociaciones con la guerrilla del ELN; el desarrollo de una política para propiciar el sometimiento colectivo a la Justicia de las estructuras ilegales dedicadas al crimen organizado. También se contempla impulsar un cambio cultural para la paz, que nos permita transformar la mentalidad moldeada por décadas de violencia; así como un cambio en el paradigma de la lucha contra las economías ilegales, y la reparación efectiva e integral de las víctimas del conflicto armado.

El nuevo presidente de Colombia ha sido insistente en que la política del amor y el cambio verdadero consiste en dejar el odio atrás. Habla de un «perdón social», en términos de reconciliación, para alcanzar lo que él llama «gran acuerdo nacional», un acuerdo en el que se construyan los consensos que nos permitan alcanzar la paz, reconociéndonos en nuestra diversidad cultural, étnica e ideológica.

En rigor, la victoria de Petro se explica, en parte, por una estrategia de apertura ideológica más allá de la izquierda, que ningún otro líder había intentado llevar a la práctica en el pasado. Articulando una propuesta nacional popular suficientemente amplia, logró convocar a sectores políticos y sociales de buena parte del liberalismo y la centro derecha. Durante su campaña, el candidato tendió puentes y estuvo dialogando con actores de todas las vertientes, incluyendo conservadores, invitándoles a adherir a su propuesta de buscar un acuerdo nacional que incluya a toda la sociedad colombiana para pactar el fin definitivo de la guerra y avanzar hacia una era de paz.

Tender estos puentes le ha costado fuertes críticas y cuestionamientos de algunos sectores políticos e intelectuales. Pero lo cierto es que no solo acertó electoralmente, tanto en las elecciones al Congreso como en las presidenciales, sino que parece estar logrando disipar miedos infundados de sectores especialmente hostiles a sus propuestas como el gremio industrial (ANDI) y el banquero (ASOBANCARIA), cuyos voceros ya han sacado comunicados públicos reconociendo los resultados del domingo, con mensajes positivos que abren las puertas al diálogo con el nuevo gobierno.

Petro ha comprendido que la paz no se hace entre iguales sino entre adversarios, es decir, entre quienes no han estado de acuerdo. Con esta convicción se ha atrevido a intentar lo que parecerían dos hazañas épicas en una: unir a la izquierda colombiana y entrar en diálogo con la derecha y el centro, para pactar un futuro común. Y eso en un país en el que la izquierda y la derecha tradicionalmente se han ido a las armas para tramitar sus diferencias.

Así, a pesar del escepticismo y las críticas de algunos sectores, en Colombia hoy se respira un aire nuevo. Solo los pueblos que han vivido la guerra y que tienen memoria de ella pueden comprender lo que significa la esperanza, especialmente cuando tantas veces nos la han arrebatado.

Hace cuatro años, durante la campaña presidencial de 2018 en la que Petro perdió en segunda vuelta frente al candidato uribista Iván Duque, el filósofo esloveno Slavoj Žižek dijo que una victoria de Petro enviaría una poderosa señal de esperanza para el mundo, un mundo que enfrenta una crisis civilizatoria sin precedentes y que necesita con urgencia nuevos modelos que ayuden a transitarla de la forma más pragmática y solidaria posible, lejos del autoritarismo y con suficiente determinación para implantar los cambios necesarios, pero al tiempo con sensatez, capacidad de diálogo y adaptación. Ojalá que en unos años podamos decir que para el mundo entero somos ejemplo de que como humanidad tenemos la capacidad de construir otros mundos posibles y de que llegó el tiempo de hacerlo con determinación.

Sobre a autora

Cientista política, feminista e militante da Colombia Humana e do Colombia Humana Thought Center (CPCH). Tweet em @OspinaPosse.

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