1 de novembro de 2020

A dialética emergentista de Engels

Kaan Kangal

Monthly Review

Retrato de Frederick Engels, Wikimedia Commons, Domínio Público.

Tradução / Por motivos variados e em situações diversas, os cientistas e filósofos da natureza contemporâneos – tanto os marxistas como os não-marxistas – expressaram sua admiração por Friedrich Engels, o cofundador do materialismo dialético e do socialismo científico.

Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1977, escreveu que a “ideia de uma história da natureza como parte integral do materialismo foi defendida por Marx e, com muito mais detalhe, por Engels.” Os desenvolvimentos modernos das ciências naturais levantaram questões filosóficas que os materialistas dialéticos já investigam há muito tempo. Quando Engels estava escrevendo a sua Dialética da Natureza nas décadas de 70 e 80 do século XIX, era visível o surgimento de uma tendência nas ciências da natureza que, “rejeitando a visão de mundo mecanicista”, se aproximou “mais da ideia de um desenvolvimento histórico da natureza”. Engels contribuiu para explicitar aquilo que já estava implícito nas ciências da natureza de seu tempo. Hoje, como em sua época, as ciências da natureza estão ocupadas com a questão de “como o mundo dos processos e o mundo das trajetórias podem de alguma forma serem conectados um com o outro”. Engels pode não ter terminado seu livro, mas aquilo que ele deixou escrito continua a ajudar no enriquecimento de nosso entendimento filosófico da natureza e no aprimoramento de nossa posição frente às ciências naturais de nosso tempo[1].

Em seu prefácio de 1939 para a primeira edição inglesa da Dialética da Natureza, o biólogo J. B. S. Haldane escreveu que as contribuições de Engels para a filosofia da natureza e para as ciências naturais já eram vastamente conhecidas por meio de seu Anti-Dühring. Todavia, a Dialética da Natureza, mais compreensível, havia sido só recentemente – na década de 20 – descoberta e publicada. “Tivesse o método de pensamento de Engels sido mais conhecido, as transformações de nossas ideias sobre a física ocorridas nos últimos trinta anos teriam sido mais tranquilas. Houvessem seus apontamentos acerca do darwinismo sido amplamente conhecidos, eu mesmo teria poupado meus pensamentos de uma grande parcela de confusão”[2].

Comentando o ensaio “O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”, escrito por Engels em 1876 e pertencente à Dialética da Natureza, o paleontólogo Stephen Jay Gould escreve que Engels nos fornece uma “exposição brilhante” de uma teoria avançada da evolução humana em que o trabalho tem papel central. Gould estava impressionado particularmente pela posição assumida por Engels de que a “mão humana não é apenas o órgão do trabalho, é também produto dele. [...] À medida que os humanos aprenderam a dominar seus arredores materiais, Engels argumenta, outras habilidades foram adicionadas à caça primitiva – agricultura, tecelagem, olaria, navegação, artes e ciências, direito e política”[3]. Em outro lugar, Gould afirma que toda a teoria da evolução humana ascende e entra em declínio com a coevolução gene-cultura e que “a melhor defesa da coevolução gene-cultura no século XIX foi feita por Friedrich Engels em seu ensaio memorável de 1876.”[4]

Apesar de não ser ele mesmo um marxista, o biólogo evolutivo Ernst Mayr descobriu que sua própria concepção filosófica da biologia tinha surpreendentemente muito em comum com os princípios do materialismo dialético. Seu texto curto intitulado “Raízes do Materialismo Dialético” abre com uma pequena anedota de Mark Adams, um historiador estadunidense da biologia que foi à União Soviética para conduzir entrevistas com vários cientistas, incluindo Kirill M. Zavadsky. Durante a entrevista, Zavadsky perguntou: “‘Você conhece o Ernst Mayr?’ / Adams: ‘Sim, muito bem.’ / Z: ‘Ele é marxista?’ / A: ‘Não, até onde eu sei.’ / Z: ‘Isso é muito curioso, porque seus escritos são puro materialismo dialético.'”. Intrigado de início pelo comentário de Zavadsky, Mayr mais tarde chegou à conclusão de que ele era de fato partidário de princípios materialista-dialéticos tais como processualidade, interconexão universal e mudança perpétua na natureza. “Não é sabido quantos, talvez a maioria, desses princípios foram formulados independentemente pela história natural e pelo materialismo dialético. [...] O materialismo dialético era, para Engels e Marx, uma filosofia geral da natureza. Ele foi primeiramente alcançado através de uma eliminação do fisicalismo e do cartesianismo. [...] É necessário desenvolver as características e princípios dos vários sistemas ‘provinciais’, tais como a física e a biologia, de modo a construir eventualmente uma Filosofia da Natureza compreensível, que faça igual justiça a todas as ciências.”[5]

Motivado por um espírito parecido, o bioquímico e sinólogo britânico Joseph Needham chamou atenção para a convicção de Engels de que “a natureza é integralmente dialética”, assim como para o fato de que Engels orienta, de forma correta, a sua dialética contra

as concepções estáticas dos cientistas de sua época, que estavam despreparados para a massa de contradições com que a ciência estava prestes a ter de lidar e que não eram capazes de enxergar que a Natureza está cheia de antagonismos e distinções aparentemente inconciliáveis, e que são reconciliadas em níveis mais altos de organização. As regras bem conhecidas da transformação da quantidade em qualidade, da unidade dos contraditórios e da negação da negação todas se tornaram lugares comuns do pensamento científico.[6]

Mario Bunge, um filósofo da ciência argentino, é bem conhecido pela sua hostilidade frente à dialética de Engels e ao materialismo dialético. Tanto publicamente quanto na vida privada, Bunge não esconde a sua posição. Em um encontro com o filósofo marxista soviético Bonifaty M. Kedrov, o velho assunto da dialética surgiu. “O matemático aplicado Mircea Malitza […] nos convidou para uma festa em seu apartamento junto com Tarski, Kedrov e outros. Quando eu disse a Kedrov que uma das minhas divergências do marxismo era que eu rejeitava a dialética”, ele respondeu ironicamente: “Não se preocupe, tovarich Bunge, porque Marx menciona a dialética somente seis vezes em seu Kapital.”[7] Ainda assim, em alguns aspectos, Bunge concedia credibilidade à filosofia marxista, visto que ele admitia que “a dialética nos ensinou a desconfiar da quietude – que pode ocultar o conflito -, e do equilíbrio – que pode ser instável. Ela também nos ensinou que nem toda luta é ruim: algumas podem resultar em coisas novas e melhores.”[8] “O núcleo plausível da dialética é constituído pelas hipóteses (i) de que todas as coisas estão em processo de mudança ou de outro tipo, e (ii) de que em determinados pontos de qualquer processo novas qualidades emergem.”[9] Em outro lugar, ele elogia a insistência de Engels em incorporar o método de G. W. F. Hegel, ao invés de seu sistema, ao materialismo dialético.[10]

Que Engels, o polímata autodidata, continue a inspirar de uma forma ou de outra gerações posteriores de filósofos e cientistas naturais é evidentemente impulsionado pelo fato de que o material de pesquisa que ele usou era muito incompleto e datado. Quando estava preparando os escritos de Marx e Engels para publicação no início da década de 20, Eduard Bernstein se deparou com o problema de se a Dialética da Natureza de Engels deveria ser publicada. Ele pediu a Albert Einstein a sua opinião. Einstein disse que os manuscritos não tinham mérito nenhum a partir da perspectiva da física contemporânea, mas que eles certamente providenciam insights interessantes da biografia intelectual de Engels.[11] Para dar outro exemplo, O Biólogo Dialético,de Richard Lewontin e Richard Levin, foi publicado com esta dedicatória: “Para Friedrich Engels, que errou muitas vezes mas acertou onde era importante.”[12] Finalmente, a filósofa analítica Hilary Putnam ressaltou algo parecido: “Acredito que Engels foi um dos homens com mais conhecimento científico de seu tempo. Ele entendeu muitas coisas de forma equivocada, mas tinha um conhecimento científico geral imenso, e o Anti-Dühring, seu grande livro sobre filosofia da ciência […] é, de muitas formas, um livro sensível de filosofia da ciência, entre outras coisas.”[13]

É de fato uma ironia que Engels tenha previsto muitas das futuras consequências daquelas seções de seu trabalho que precisavam de maior elaboração. Nesse sentido, ele escreveu no segundo prefácio do Anti-Dühring que

há muito em minha exposição que é desajeitado, e muito que poderia ser expresso, hoje, de uma maneira mais clara e definitiva. [...] É possível que o avanço da ciência natural teórica transforme a maioria ou até mesmo a totalidade de meu trabalho em algo supérfluo. Pois que a revolução que está sendo forçada na ciência natural teórica pela simples necessidade de se colocar em ordem as descobertas puramente empíricas – grande parte das quais foram acumuladas – é de tal tipo que tem de trazer o caráter dialético dos processos naturais cada vez mais à consciência até mesmo daqueles empiristas que mais se opõem a ele.[14]

Remetendo-nos, do ponto de vista do presente, às realizações sólidas desse gigante intelectual, a questão principal que deve nos preocupar é: O que é indispensável, ao invés de supérfluo, no trabalho de Engels sobre ciência e filosofia da natureza? Acadêmicos de diversas áreas concordam invariavelmente que o caráter emergentista da dialética de Engels se destaca.

Por exemplo, o historiador polonês Zbigniew A. Jordan argumenta vigorosamente que “a ideia central da evolução emergentista pode ser encontrada no Anti-Dühring e na Dialética da Natureza.” De acordo com a dialética emergentista de Engels, “a realidade material tem uma estrutura de múltiplos níveis; cada um desses níveis é caracterizado por um conjunto de propriedades distintivas e leis irredutíveis; e cada nível emergiu de um nível temporalmente anterior, de acordo com leis que são absolutamente impredicáveis da perspectiva daquelas que operam nos níveis mais baixos.” A ideia de emergência está intimamente ligada à concepção que tem Engels da dialética como sendo a ciência das interconexões entre sistemas coexistentes e interdependentes de corpos físicos. O dito famoso de Engels de que o movimento é o modo de existência da matéria sugere que a matéria tem o poder de gerar novidade e diversidade na natureza. O princípio de que “a matéria é capaz de criar novidade e de produzir formas de organização cada vez mais altas é parte do materialismo dialético desde que ele foi formulado pela primeira vez por Engels.”[15] Como apropriadamente formulou o matemático e filósofo escocês Hyman Levy, a ideia dialética de evolução sugere que “formas de vida complexa de matéria animal ou vegetal emergiram de formas mais simples que se ligam por um número incontável de eras até formas cada vez mais elementares.”[16]

Até mesmo Bunge compartilha a crença de que “o materialismo dialético tem o mérito de enfatizar a novidade qualitativa, ou a emergência”, ou o que Mayr chamou de “uma hierarquia de níveis de organização, onde em cada nível há um conjunto diferente de processos dialéticos que podem estar se desenrolando.”[17] Visto que níveis diferentes de complexidade de movimento constituem uma hierarquia de níveis de organização da matéria, como Ted Benson observa, a natureza deve ser considerada como uma unidade hierarquicamente ordenada e internamente diferenciada. É essa unidade que figura como a condição para a convergência de ciências particulares. O conhecimento unificado pressupõe uma unidade interconectada dos desenvolvimentos históricos diferentes e desiguais das ciências particulares. “O domínio da natureza em que aquilo com que cada ciência lida representa não somente um nível distinto de complexidade de movimento, mas também um estágio definido da história evolutiva do universo.”[18]

Posto de outra forma, é a historicidade da natureza e também os processos que se desenrolam nas ciências particulares que demandam uma revisão crítica da estrutura de nossa ciência. Sempre existe uma necessidade interna à teoria de examinar rigorosamente o aparato conceitual que utiliza. Isso implica também em uma contínua integração de novidades recém emergidas e descobertas no nosso presente corpo de pensamento. Portanto, não é uma surpresa que a dialética de Engels seja muito preocupada com interconexões evolutivas e novidades emergentes na natureza. Em relação a isso, Engels define dialética como a investigação sistemática das interconexões universais na natureza: “É precisamente a dialética que constitui a forma de pensamento mais importante da ciência natural contemporânea, pois que somente ela fornece a analogia, e portanto o método de explicação, para os processos evolutivos que ocorrem na natureza, as interconexões em geral, e as transições de um campo de investigação para o outro.”[19]

Ao apreender as qualidades e leis emergentes dos vários níveis de organização da matéria, a teoria dialética emprega sua própria estrutura conceitual, linguagem científica e método de investigação, e assume uma forma categorialmente aberta.

Em uma passagem em que Engels discute alguns critérios para a distinção e classificação de várias disciplinas científicas, ele sublinha que cada ciência se ocupa com uma forma específica de movimento peculiar ao domínio correspondente de investigação. O objeto da análise pode ser “uma forma singular de movimento ou uma série de formas de movimento que pertencem ao mesmo domínio e passam uma para a outra.”[20] O ponto é que uma tal classificação tem de seguir o arranjo objetivo e a sequência de desenvolvimento inerente às formas de movimento em questão. Não é preciso dizer que a reconstrução lógico-ontológica da sequência dos eventos naturais tem, consequentemente, de assumir uma forma sistemática. “Se eu chamo, antes de tudo, a mecânica das moléculas de física, a física dos átomos de química, e, ainda mais, a química das proteínas de biologia, eu desejo assim expressar a passagem de cada uma dessas ciências para as outras, simultaneamente a conexão, a continuidade e a distinção, a separação discreta.”[21]

Quando o mundo orgânico cresce do inorgânico, ele desenvolve formas específicas de movimento e suas próprias leis específicas. Aquilo que historicamente precede o desenvolvimento do mundo orgânico, ou seja, o inorgânico, persiste numa forma “suprassumida”[22]. Ainda assim, o mundo orgânico é evidentemente diferente do inorgânico. Seu sistema possui muitas propriedades emergentes que não podem ser encontradas no mundo inorgânico. Mais crucial ainda é que os padrões comportamentais de sistemas orgânicos são governados por programas genéticos que contém informação adquirida historicamente.[23]

Nesse contexto, Engels fornece uma ilustração notável que não somente argumenta em favor da interconexão e interpenetração de diferentes esferas como a química e a biologia, mas também se aproxima de uma propriedade emergente que hoje é chamada de autopoiesis, uma característica generativa de sistemas auto-organizados:

No mundo orgânico [...] todas as investigações químicas remontam em última instância a um corpo – a proteína – que, ao mesmo tempo em que é resultado de processos químicos ordinários, é distinto de todos os outros por ser um processo químico permanente e auto-atuante. Se a química tiver sucesso em preparar essa proteína, na forma específica em que ela obviamente surgiu – aquela do assim chamado protoplasma – uma especificidade, ou melhor, falta de especificidade, tal que ela contenha potencialmente dentro de si todas as outras formas de proteína [...], então a transição dialética terá sido provada na realidade, e portanto completamente provada.[24]

A dialética emergentista defende o ponto de vista do “aumento contínuo dos níveis de organização” e complexidade dos mecanismos sistêmicos na natureza. A sucessão de todo e cada nível depende das circunstâncias materiais para a floração de suas propriedades emergentes que são necessariamente únicas relativamente aos níveis precedentes de complexidade. Provisoriamente, níveis diferentes podem ser distinguidos uns dos outros através de seus componentes respectivos.[25] Mas eles são diferenciados propriamente se a interrelação e organização interna de suas partes for levada em conta. Quarks se combinam para formar hádrons tais como prótons e nêutrons, que por sua vez formam átomos, que constituem moléculas, que constroem componentes celulares e partículas coloidais, agregados coloidais dão origem a tecidos e células vivas, e células a órgãos e sistemas de órgãos e assim por diante.

A fricção produz calor, luz e eletricidade; o impacto produz calor e luz, senão também eletricidade – assim, conversão do movimento de massas em movimento molecular. Entramos no reino do movimento molecular, a física, e investigamos com mais profundidade. Mas aqui também descobrimos que o movimento molecular não representa a conclusão da investigação. A eletricidade passa para e surge da transformação química. O calor e a luz também. O movimento molecular se transforma em movimento de átomos – química. A investigação dos processos químicos é confrontada pelo mundo orgânico como um campo de pesquisa, isso quer dizer, um mundo em que processos químicos acontecem, mas, no entanto, sob condições distintas.[26]

O alto nível de complexidade contém também aqueles componentes do nível mais baixo. Todavia, o importante para o emergentismo não é simplesmente determinar quais componentes estão contidos em quais níveis, mas sim determinar como essas partes estão interrelacionadas umas com as outras em níveis específicos de complexidade. Ulteriormente, ao avaliar os vários níveis interagentes de complexidade, o emergentista dialético pena para integrar, ao invés de justapor, as partes de um todo em graus diferenciados de organização da matéria.[27]

[O] organismo é certamente a mais alta unidade, que dentro de si mesma une mecânica, física e química em um todo onde a trindade não pode mais ser separada. No organismo, o movimento mecânico é efetuado diretamente pela transformação física e química, sob a forma da nutrição, da respiração, da secreção etc., assim como o movimento muscular puro. [...] Depois que a transição da química para a vida é feita, então é primeiramente necessário analisar as condições em que a vida foi produzida e continua a existir, isto é, primeiramente a geologia, a meteorologia e o resto. Então, as várias formas de vida elas mesmas, que de fato sem isso são incompreensíveis.[28]

As partes constitutivas de um todo abrangente adquirem seu estatutointegral no fato de que suas propriedades vem a ser por meio de sua interação e interpenetração, que eventualmente acarretam um modo específico de organização peculiar ao todo em questão.[29] Note aqui que as partes não se juntam de modo a fazer um todo ao qual elas pertencem. Ao invés disso, é a própria interação que estrutura a forma em que elas estão interrelacionadas e interpenetradas, resultando nisso que se chama todo.[30]

Enquanto o rival filosófico do emergentismo – ou seja, o reducionismo – assevera que os mecanismos de alto nível de complexidade são diretamente causados pela dinâmica dos níveis inferiores, o emergentismo resiste efetivamente à ideia de que o todo “não é nada além” dos componentes contidos dentro desse todo. O todo é maior que a soma total de suas partes.

Lewontin e Levins apontam cuidadosamente que há uma diferença entre redução e reducionismo. Apesar de ser verdade que a composição e a estrutura de um nível mais baixo podem figurar como um “sintoma das forças agindo em níveis mais altos”, isso não quer dizer que a situação de nível mais baixo é também a causa imediata da interação no nível mais alto. “A redução olha para níveis de análise mais baixos para diferenciar sintomas de forças em níveis mais altos, enquanto o reducionismo afirma que as forças em níveis mais baixos são as causas verdadeiras dos fenômenos superiores.”[31] Isso quer dizer que, porque a composição do nível mais baixo pode codeterminar a forma dentro da qual a interação da organização do nível mais alto pode acontecer, o que co-contribui para a formação de fenômenos de nível mais alto pode encontrar suas raízes nos níveis mais baixos que o precederam. De qualquer forma, fenômenos de níveis inferiores e superiores não são de forma alguma ligados por uma causalidade imediata. Ao invés disso, eles são intermediados por “pontos nodais” hegelianos.

Em um determinado ponto, Engels contrasta as formas superiores e mais complexas de movimento com as formas subsidiárias. Ele observa que alguns cientistas de sua época dão um peso exaustivo para o movimento, o que é acompanhado por uma “mania de reduzir tudo ao movimento mecânico.” Tal tratamento do movimento “apaga o caráter específico de outras formas de movimento”. Relativamente a isso, o foco patente no movimento mecânico não pode compreender que “formas mais altas de movimento” estão “conectadas com um movimento mecânico (externo ou molecular) real” e que “as formas superiores de movimento simultaneamente também produzem outras formas”. Em última instância, isso leva à ignorância quanto à variedade das espécies de movimento e interconexão na natureza. No entanto, “a ação química não é possível sem mudança de temperatura e mudanças elétricas; a vida orgânica sem mudanças mecânicas, moleculares, químicas, térmicas, elétricas etc.”. Uma forma de movimento se manifesta dentro de outra, visto que ambas se interpenetram. Do ponto de vista do centro organizativo de uma esfera material particular de movimento, uma distinção tem de ser feita entre as formas principais e subsidiárias. “Mas a presença dessas formas subsidiárias não esgota a essência das formas principais de cada caso. Algum dia nós certamente ‘reduziremos’ experimentalmente o pensamento a movimentos mecânicos e químicos no cérebro; mas isso esgota a essência do pensamento?”[32]

Essa passagem deixa claro que Engels concebia os elementos de nível inferior como os constituintes históricos da nova organização emergente de nível superior de matéria. Engels concordava que as formas presentes de movimento podem ser remontadas ao registro de seu desenvolvimento passado (redução), mas negava que as propriedades emergentes de nível mais alto podem ser explicadas através das propriedades de nível mais baixo das quais elas emergiriam tomadas sozinhas (reducionismo).

Também é importante ter em mente que foi uma tendência reducionista na filosofia e nas ciências teóricas da natureza durante a segunda metade do século XIX que primeiramente motivou Engels a oferecer uma abordagem alternativa. No começo dos anos 1870, Engels planejou escrever uma resposta concisa a visões materialistas reducionistas contemporâneas, como a ontologia dualística de matéria e força formulada por Ludwig Büchner, ou a redução crua do pensamento humano à substância cerebral e à gordura fosforizada levada a cabo por Carl Vogt e Jacob Moleschott. Mas os ataques planejados por Engels nessa época se transformaram mais tarde em uma abordagem mais ou menos sistemática (Dialética da Natureza) quando a teoria da evolução de Darwin foi rapidamente politizada, tanto na literatura socialista quanto na reacionária liberal. Alertados primeiramente pela Comuna de Paris em 1871, então pela crise econômica de 1873 e, finalmente, pelo sucesso parlamentar do Partido Social Democrata em 1877, biólogos reacionários – tais como Rudolf Virchow, Oscar Schmdit e Ernst Haeckel – tentaram enfraquecer a recepção socialista do darwinismo. Mais forçosamente ainda, Haeckel tentou manter a ideia social darwinista intacta, argumentando que as regras do reino animal se aplicam integralmente à humanidade.

Enquanto que todas as figuras citadas estavam na “lista de alvos” da Dialética da Natureza, Engels também tinha consciência de, e se preparou para responder a, outros debates que se somavam às controvérsias reducionistas. Uma dessas questões era a vívida tendência positivista defendida por figuras como o biólogo neokantiano Matthias Schleiden, que atacava abertamente a filosofia hegeliana e a visão de mundo materialista das quais Rudolf Virchow e Haeckel não podiam se defender. Outra questão crucial que acompanhava as disputas em curso dizia respeito à posição que professava a impossibilidade do saber universal [Ignorabimus account][33], advogada principalmente pelo botânico neokantiano Carl Nägeli. Recorrendo à coisa-em-si kantiana, Nägeli afirmava que a infinitude e a universalidade das leis da natureza permanecem um mistério, pois que somente os domínios finitos da natureza são acessíveis para o conhecimento humano. Esta tão celebrada proposição expressava bem a tendência neokantiana da crescente fragmentação das ciências particulares e a hostilidade positivista frente às filosofias dialéticas da natureza. Além das teorias biológicas da célula e da evolução, também as leis termodinâmicas estavam na agenda de Engels. Como documentam os fragmentos manuscritos da Dialética da Natureza, datados do começo da década de 1880, Engels voltou a sua atenção para e se ocupou principalmente das inovações recentes na física até a morte de Marx em 1883. Tendo descoberto os manuscritos econômicos de Marx, ele teve de interromper suas pesquisas em ciências da natureza novamente e devotar-se a preparar, ao invés disso, os escritos de Marx para publicação.

Engels pode não nos ter deixado uma filosofia da natureza completamente acabada, mas ele nos deixou as diretrizes gerais para um programa de pesquisa que é inevitavelmente aberto e necessariamente incompleto. Na verdade, ele deixou muito claro que a incompletude e o caráter abertoestão fundados em aspectos de seu programa. Um dos grandes méritos do trabalho incompleto de Engels é que ele demonstra com sucesso como a herança dialético-materialista do legado hegeliano pode nos ajudar a endereçar questões que ainda temos a fazer, problemas que ainda temos de formular e terrenos que ainda temos de explorar. Até onde posso ver, o materialismo dialético só reivindicou o seu lugar de forma parcial nas discussões mais recentes acerca da emergência e do reducionismo na filosofia da ciência.[34] Devido às limitações do presente trabalho, eu não serei capaz de desenvolver uma argumentação completa e, ao invés disso, irei mencionar uma ou duas ideias que sustentam a minha intuição.

Incorporando muitos aspectos valiosos da herança hegeliana à filosofia marxista, Engels abriu caminho para o estabelecimento de uma ontologia dialético-materialista da emergência. Ele sustentava o ponto de vista de que as entidades singulares finitas que compõe a realidade à qual pertencemos não tem uma essência verdadeira sem a dependência coletiva e a interação mútua de umas com as outras. Resultando de sua evolução transformativa, as partes finitas se combinam para formar uma totalidade infinitamente capaz de autodesenvolvimento. Tais partes finitas contam como componentes do todo à medida que codeterminam e cocriam as relações internas que as mantêm juntas. De acordo com isso, uma pesquisa dialética rigorosa acerca das estruturas fundamentais da realidade deve desenvolver uma consciência autocrítica de seu suporte categorial, que está aberto à perpétua reformulação. A emergência de novidades objetivas e sua integração subjetiva ao presente corpo do pensamento não são, portanto, de importância secundária, mas central.[35] No “Plano 1878” da Dialética da Natureza, Engels formulou seu ponto de vista muito explicitamente como a quarta lei dialética: “forma espiral de desenvolvimento”[36].

A ideia mais básica e simples que subjaz essa lei diz respeito às formas estruturais de como uma coisa emerge da outra. Posto de forma aproximada, quando um conjunto de entidades resulta em um outro conjunto de coisas, o nível anterior contém o potencial daquilo que ele faz surgir. O que é observado é a manifestação posterior daquilo que o precede.

Uma seção na Doutrina da Essência da Lógica de Hegel que geralmente passa despercebida – “Movimento da Reflexão” – proporciona insights interessantes da lógica dialética da emergência. Esse capítulo contém passagens que ressaltam aquilo que Hegel chama de reflexão ponente, reflexão exterior e reflexão determinante [positing, external and determining reflection]. A mesma estrutura tripla diz respeito àquilo que ele denomina alternativamente reflexão dentro de si e reflexão dentro de outro [reflection-into-itself and reflection-into-other]. Apesar de Hegel buscar uma investigação puramente lógica e empregar uma terminologia um pouco desajeitada, sua orientação promete um solo fértil para uma elaboração mais profunda da dialética emergentista de Engels: quando uma coisa faz surgir uma outra coisa (reflexão dentro de outro), ela é afetada por aquilo que emergiu dela (reflexão dentro de si). Isso quer dizer que uma coisa (reflexão ponente) se torna sujeita à mudança (reflexão determinante) quando causa a mudança em outra coisa (reflexão exterior). Assim, a primeira coisa se torna um coproduto de sua própria atividade. Esse aspecto de autorreferência e auto-organização está, acredito, no coração da dialética emergentista de Engels. E as estruturas emergentes e sistemas autopoiéticos são a prova disso.

Notas:

[1] Ilya Prigogine and Isabelle Stengers, Order out of Chaos: Man’s New Dialogue with Nature (Toronto: Bantam, 1984), 252–53.

[2] B. S. Haldane, preface to Dialectics of Nature, by Frederick Engels (New York: International Publishers, 1940), xiv.

[3] Stephen Jay Gould, Ever Since Darwin: Reflections in Natural History (New York: Norton, 1977), 210, 212.

[4] Stephen Jay Gould, An Urchin in the Storm: Essays About Books and Ideas (New York: Norton, 1987), 111.

[5] Ernst Mayr, “Roots of Dialectical Materialism,” in Na Perelome: Sovetskaia biologia v 20-30kh godakh, ed. E. I. Kolchinskii (St. Petersburg: SPBF IIET RAN, 1997), 12–14, 17.

[6] Joseph Needham, Time, the Refreshing River (London: George Allen, and Unwin, 1943), 190.

[7] Mario Bunge, Between Two Worlds Memoirs of a Philosopher-Scientist (Switzerland: Springer, 2016), 231.

[8] Mario Bunge, Philosophy in Crisis: The Need for Reconstruction (New York: Prometheus, 2001), 40.

[9] Mario Bunge, Scientific Materialism (Dordrecht: D. Reidel, 1981), 41.

[10] Mario Bunge, Evaluating Philosophies (Dordrecht: Springer, 2012), 4.

[11] Albert Einstein, “Opinion on Engels’ ‘Dialectics of Nature,’” in The Collected Papers of Albert Einstein, vol. 14 (Princeton: Princeton University Press, 2015), 414.

[12] Richard Levins and Richard Lewontin, The Dialectical Biologist (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985), v.

[13] Bryan Magee, “The Philosophy of Science: Dialogue with Hilary Putnam,” in Men of Ideas: Some Creators of Contemporary Philosophy (London: British Broadcasting Corporation, 1978), 237.

[14] Frederick Engels, Anti-Dühring, in Collected Works, vol. 25, by Karl Marx and Frederick Engels (Moscow: Progress, 1987), 11, 13.

[15] Zbigniew A. Jordan, The Evolution of Dialectical Materialism: A Philosophical and Sociological Analysis (London: Macmillan, 1967), 166, 167, 239.

[16] Hyman Levy, A Philosophy for a Modern Man (London: Victor Gollancz LTD, 1938), 28.

[17] Mario Bunge, Emergence and Convergence: Qualitative Novelty and the Unity of Knowledge (Toronto: University of Toronto Press, 2003), 147; Mayr, “Roots of Dialectical Materialism,” 14.

[18] Ted Benton, “Engels and the Politics of Nature,” in Engels Today: A Centenary Appreciation, ed. Christopher J. Arthur (Hampshire: Macmillan, 1996), 87; Ted Benton, “Natural Science and Cultural Struggle: Engels on Philosophy and the Natural Sciences,” in Issues in Marxist Philosophy, vol. 2, Materialism, ed. John Mepham and David-Hillel Ruben (New Jersey: Humanities Press, 1979), 124, 125.

[19] Frederick Engels, Dialectics of Nature, in Collected Works, vol. 25, by Karl Marx and Frederick Engels (Moscow: Progress Publishers, 1987), 339.

[20] Engels, Dialectics of Nature, 528.

[21] Engels, Dialectics of Nature, 531.

[22] Nikolai I. Bukharin, “Marx’s Teaching and Its Historical Importance,” in Marxism and Modern Thought, by Nikolai I. Bukharin et al. (New York: Harcourt, 1935), 31.

[23] Ernst Mayr, This Is Biology: The Science of the Living World (Cambridge: Belknap, 1998), 20–21.

[24] Engels, Dialectics of Nature, 534–35, grifo nosso.

[25] Needham, Time, the Refreshing River, 15, 184–85.

[26] Engels, Dialectics of Nature, 534.

[27] Mayr, This Is Biology, 16, 18–20.

[28] Engels, Dialectics of Nature, 529–30.

[29] Levins and Lewontin, The Dialectical Biologist, 273.

[30] Richard Lewontin and Richard Levins, Biology Under the Influence: Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health (New York: Monthly Review Press, 2007), 132.

[31] Lewontin and Levins, Biology Under the Influence, 136.

[32] Engels, Dialectics of Nature, 527.

[33] Da expressão latina ‘Ignoramus et ignorabimus’, que quer dizer: ‘Não sabemos e não saberemos.” Em sua palestra intitulada Ueber die Grenzen des Naturerkennens (1872), onde defende que os limites do nosso conhecimento são definidos pelo escopo de aplicação de princípios puramente mecânicos – os únicos que seriam realmente científicos -, Émil du Bois-Reymond conclui usando a máxima como lema: “Ignorabimus!” (N.T.)

[34] Para uma abordagem perspicaz da conexão emergência-dialética, ver Poe Yu-ze Wan, “Dialectics, Complexity, and the Systemic Approach: Toward a Critical Reconciliation,” Philosophy of the Social Sciences 43, no. 4 (2012): 411–52.

[35] Kaan Kangal, Friedrich Engels and the Dialectics of Nature (Cham: Palgrave Macmillan, 2020), 157–65.

[36] Engels, Dialectics of Nature, 313.

Sobre o autor

Kaan Kangal é professor associado do departamento de filosofia da Universidade de Nanijing, e é especializado em dialética, hermenêutica, metafísica, além de pesquisa em Marx-Engels. Seu trabalho acerca dos Manuscritos de Bonn, de Marx, ganharam o Prêmio David Riazanov em 2019. Sua publicação mais recente é Friedrich Engels and the Dialectics of Nature [Friedrich Engels e a Dialética da Natureza] (Palgrave Macmillan, 2020).

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