23 de novembro de 2020

Um marco na unidade da esquerda marxista e do peronismo revolucionário

Em 23 de novembro de 1973, teve início o V Congresso da FAS na Argentina. A Frente Antiimperialista e pelo Socialismo foi a expressão mais concreta da confluência entre a esquerda marxista e o peronismo revolucionário.

Lisandro Silva Mariños

Jacobin


Embora durante muitos anos a FAS fosse conhecida (e reduzida) a ser a plataforma eleitoral a partir da qual se pretendia promover a candidatura de Tosco-Jaime às eleições de setembro de 1973 na Argentina, hoje sabemos que foi a principal iniciativa política do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Esta frente se destacou por ser uma ferramenta organizacional que reuniu diferentes tendências da esquerda marxista ampliada (guevaristas, trotskistas, vereadores e libertários), organizações peronistas revolucionárias e outros movimentos sociais (padres do Terceiro Mundo, grupos de aldeias, organizações sindicais, etc.) estabelecendo um programa político, um estatuto e regionais provinciais, o que a levou a construir congressos massivos que pretendiam ser uma alternativa de massa ao terceiro governo de Perón.

O desafio apresentado pelo Grande Acordo Nacional (GAN)

O ciclo de radicalização da luta de classes que o Cordobazo inaugura em maio de 1969, é aprofundado por outros azos (em Rosário, Tucumán, Mendoza, etc.) que trazem à cena grandes mobilizações de massa, puebladas e confrontos políticos e sociais que transcendem as reivindicações particulares e começam a ser plantadas como movimentos de luta e oposição política aos governos de fato.

Diante de tal cenário, a ditadura de Lanusse propõe o GAN como solução política condicional, para restabelecer as precárias liberdades democráticas e lançar o sistema eleitoral, legalizando os partidos políticos. Essa tática implicou um momento de defesa estratégica do regime para bloquear o processo de radicalização e autonomia da classe trabalhadora e popular. Conseqüentemente, abriu um novo cenário para as organizações revolucionárias, muitas delas nascidas e educadas no confronto ilegal e na luta armada (inclusive o PRT), que agora enfrentavam uma abertura lida, a princípio, como uma "farsa eleitoral", levantando o slogan "nem golpe, nem eleição, revolução".

O PRT fez uma autocrítica à sua primeira resposta ao GAN: o militarismo, que funcionou durante o ano de 1971. Essa tática dificultou o desenvolvimento das atividades semilegais diante da incipiente abertura democrática. Por isso, em meados de 1972, passa a explorar a atividade jurídica como uma dimensão nova para o partido, pois considera que se abre um amplo campo de atividades entre os setores da população que não alcançava com facilidade.

O impulso dos comitês de base será a política escolhida para estruturar a iniciativa legal junto às massas, enquanto seu desenvolvimento deve ser orientado para a construção de “um amplo movimento democrático e antiimperialista liderado pela classe trabalhadora”. O PRT valoriza a tarefa jurídica a ponto de resolver, em seu Comitê Central de dezembro de 1972, que “a continuidade e a amplitude desse trabalho será um dos pilares que dará força, infraestrutura e vínculo à organização com as massas, que decidirão nosso desenvolvimento ou estagnação na próxima etapa de confronto aberto, de intensificação da repressão, de combates cada vez mais intensos com o exército inimigo".

O prelúdio do V Congresso da FAS

Para o PRT, assumir a necessidade de percorrer todo o caminho com iniciativas que aproveitassem as brechas jurídicas implicou construir contra o relógio aquele amplo movimento jurídico de massas. Por isso, no final de dezembro de 1972, promoveu em Córdoba uma Assembleia de Forças Populares (AFP), que reuniu mais de 200 delegados com a perspectiva de construir uma Frente Antiimperialista e Antiditatorial. A presidência ficou a cargo do renomado intelectual e militante marxista Silvio Frondizi.

Em 21 de janeiro de 1973, foi realizada a reunião seguinte na cidade de Entre Ríos, Paraná. O dado marcante foi a incorporação de organizações revolucionárias peronistas, como o Bloque de Agrupaciones Peronistas em apoio à CGTA, lideradas por lideranças do peronismo e do sindicalismo de libertação, como Manuel Gaggero e Jorge Di Páscuale. O terceiro encontro foi novamente em Córdoba, nas instalações do Partido Intransigente, nos primeiros dias de julho, com Cámpora no governo.

A turnê nos mostra que a FAS não teve, como tal, três congressos iniciais. A experiência dessa frente, como era conhecida, é produto de três provas organizacionais anteriores que levarão a uma reunião mais ampla e estimulante em 18 de agosto de 1973, convocada sob o nome de IV Encuentro Pró-Formação Nacional da Frente Antiimperialista e pelo Socialismo. Este evento foi organizado antes do golpe que o próprio peronismo levou a Cámpora e, aproveitando a situação, a FAS propôs lançar em Tucumán a - frustrada - fórmula presidencial Agustín Tosco-Armando Jaime. Reuniu cerca de 6.000 pessoas na província do norte da Argentina e expressou a superação do primeiro acordo político (limitado ao PRT e à Frente Revolucionária Peronista, já que maoístas, trotskistas e outros grupos da esquerda peronista participaram do Encontro).

A construção de um pólo de esquerda como alternativa política

Em 23 de novembro de 1973, na cidade de Roque Sáenz Peña (a poucos quilômetros da capital do Chaco, Resistencia, no norte da Argentina), foi constatado um salto quantitativo e qualitativo no desenvolvimento da FAS. Seu V Congresso dobrou a presença de ativistas participantes —mais de 12.000 pessoas— e foram abordados debates fundamentais, vinculados à necessidade de expansão para outros setores políticos e sociais, além de aprovar um programa muito mais detalhado que o do IV Congresso.

Em comparação com a 4ª EN-PFF, a composição política e social foi consideravelmente ampliada. São incorporados grupos pertencentes à área cultural e comunicacional (vinculados ao PRT e ao FRP), camponeses, aldeões e organizações populares se fazem presentes com uma composição quantitativa importante, e a composição política torna-se mais complexa com a presença de diferentes grupos tanto da esquerda marxista (Orientação Socialista, Grupo Espartaco, Observadores do PST e da Política Operária, Organização Guerrilheira e Partido Marxista Leninista), quanto da esquerda peronista (Comandos de Libertação Popular, militantes Montoneros, Frente de Libertação Peronista e Peronismo de Base).

Este V encontro teve sim o caráter de um congresso. Não só pela convocação, mas pela metodologia de discussão prévia nas regionais, a eleição dos delegados e a votação de uma estrutura orgânica, enquadrada em uma proposta programática. Os principais oradores do congresso foram Agustín Tosco, Alicia Eguren, Miguel Ramondetti (Cristãos pelo Socialismo), Marcelo (líder Toba), Salomón (FRP-ELN) e Armando Jaime (FAS).

A fala dos principais palestrantes expressa a diversidade política e ideológica, refletida na presença de um companheiro originário do povo Toba, um padre do Terceiro Mundo, uma referência do peronismo revolucionário, como Alicia Eguren, e um fiel representante do sindicalismo de libertação, como Tosco. Seus discursos abrangem temas relacionados ao desafio da unidade entre os revolucionários, as críticas ao governo Perón e os desafios da FAS diante da nova situação, que aos poucos foi fechando a limitada abertura legal aberta no início do ano.

Agustín Tosco destacou a importância de "saber dividir bem o campo dos explorados do campo dos exploradores e procurar aquela fraternidade que não significa renunciar à identidade de cada organização, mas significa aceitar alguns desacordos devido ao grande trabalho comum que deve ser feito pelo objetivo revolucionário e libertador que todos nós nos propomos juntos", já que" respeitamos o pronunciamento popular de sete milhões e meio de argentinos, respeitamos porque aquele pronunciamento popular queria mudanças, não queria um Pacto Social que não foi votado".

Alicia Eguren tomou a palavra como fiel representante da Tendência Revolucionária do Peronismo, conclamando a FAS a "ter uma política extremamente flexível, extremamente fraterna, extremamente revolucionária e ao mesmo tempo altamente baseada em princípios" a fim de alcançá-la "no próximo congresso da FAS está presente o maior número possível de camaradas do peronismo revolucionário que ainda não aderiram, que ainda têm preconceitos em relação a esta Frente porque internamente não foram capazes de resolver sua atitude diante da crise do movimento peronista".

Por sua vez, destacaram outros dois discursos de palestrantes que, por enquanto, não se encontravam nas arquibancadas da esquerda por ocasião dos atos de massa. Referimo-nos ao líder Toba das Ligas Agrárias (Marcelo), que proclamou "nunca transigir até que recebamos até mesmo um pedaço de nossa terra que foi usurpado. Mas, não só na terra e no campo que trabalham os companheiros camponeses, mas também na aldeia que se organizam em toda a frente, chave do nosso querido Chaco".

E também Miguel Ramondetti, um dos vinte e um sacerdotes católicos argentinos que em março de 1968 fundaram o que viria a ser o Movimento dos Sacerdotes pelo Terceiro Mundo (MSTM), que explicava que “estamos aqui porque somos cristãos, porque todo cristão deve necessariamente ser antiimperialista. Não podemos contentar-nos em ser apenas anti-imperialistas: temos de ser, como cristãos, profundamente anti-capitalistas. E hoje a única maneira de ser assim, em nosso país, em Nossa América, no mundo, é sendo autêntico, profundo, decididamente socialista.

Todas as vozes expressas durante o congresso mostram uma crescente heterogeneidade dentro da FAS que se refletirá nos futuros debates que a frente terá. Os povos originários e o cristianismo revolucionário tinham voz e voto, como qualquer outra organização; o peronismo revolucionário se somava com a participação de Alicia Eguren, Tosco garantia a centralidade da classe trabalhadora na direção da frente e Armando Jaime, junto com o FRP, permitia visualizar a ferramenta como algo mais do que uma frente do PRT.

Elaboração programática e as perspectivas da FAS diante do avanço fascista

As bases programáticas da frente são o ponto mais importante. Não são propriamente o que se conhece como "programa de transição ao socialismo", mas antes uma proposta política de luta a se desenvolver na cena democrática aberta com o triunfo de Cámpora e a partir da fórmula Perón-Perón.

Vale ressaltar que essas bases não são o programa político do PRT, mas de uma frente mais ampla, o chamado exército político de massas e que, em nossa opinião, elabora suas propostas programáticas em sintonia com a distinção que o MIR chileno fará posteriormente entre o Programa do Partido Revolucionário do Proletariado e as Plataformas de Luta do Partido. Em outras palavras, o programa não é feito de pontos de transição para o socialismo, mas sim de slogans ou respostas que o governo deve dar aos problemas da população nas áreas de saúde, educação, habitação, trabalho, etc.

É uma plataforma de luta para a etapa que tem como objetivo formar a necessária aliança de classes, com a hegemonia da classe trabalhadora, a partir da elevação dos níveis de consciência, luta e organização do movimento popular, que tem como horizonte estratégico a luta pelo socialismo. A ideia de poder moldar uma proposta política concreta para a etapa é um dos principais desafios dos revolucionários ao longo da história da luta de classes. Ou seja, a possibilidade de se levantar uma proposta entre os objetivos máximos (que decorrem da tomada do poder) e as reformas mínimas (que podem ser digeridas pelo sistema sem problemas).

O congresso terminou com uma convocação para a formação de uma Frente Antifascista como resultado da formação de crescentes gangues fascistas e paramilitares. A FAS caracterizava que, diante desse cenário, se expressava nas massas um forte repúdio às agressões fascistas, o que deveria servir para aumentar a união de todas as organizações e setores que compõem o campo popular. A perspectiva de unidade contra a escalada fascista levou a frente a votar em seu congresso a participação ativa no Congresso Contra a Dependência e pela Libertação Nacional, convocado para o 8 de dezembro pela ENA, o Partido Comunista, o Partido Intransigente, a União do Povo, o Movimento Progressista e outras forças do campo reformista.

Para encerrar, poderíamos dizer que a FAS foi, em primeiro lugar, a expressão mais concreta da confluência entre a esquerda marxista e o peronismo revolucionário (situada entre a fuga da prisão de Rawson levada a cabo pelas organizações revolucionárias em agosto de 72 e o tentativa malsucedida de constituição da Organização para a Libertação Argentina, OLA, em julho de 76), sendo uma formação política e orgânica estável singular entre a esquerda marxista (leninista, trotskista, guevarista, conselheira, libertária, maoísta) e o peronismo revolucionário.

Em segundo lugar, esta organização frentista não se reduziu meramente a um acordo por cima, mas antes combinou a atividade política na superestrutura (atos, pronunciamentos, campanhas, homenagens, congressos) com o desenvolvimento efetivo da base, abrindo espaço regional, local, promovendo os trabalhos de massa e promovendo uma política cultural e intelectual de frente.

Por fim, a FAS, ao se propor como alternativa ao poder, traçou um programa de etapas, com plataformas de luta por setor, com o objetivo de formar gradativamente a necessária aliança de classes sob a hegemonia da classe trabalhadora desde a elevação dos níveis de consciência, luta e organização do movimento popular. Com o norte estratégico na luta pelo socialismo, mas superando a proclamação de slogans abstratos e propondo medidas concretas para resolver os problemas do povo.

Sobre o autor

Professor universitário e pesquisador. Autor do livro "Frente Antiimperialista y por Socialismo. Un ejército político de masas impulsado por el PRT".

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