7 de novembro de 2020

Vilipêndio dos direitos trabalhistas causada pela uberização é culpa dos algoritmos?

Entregador arca com custos, mas não define preços e pode ser bloqueado sumariamente; por certo, não é autônomo

Ricardo Antunes

Folha de S.Paulo


O que explica, em pleno século 21, o (aparente) paradoxo que estamos vivenciando?

De um lado temos explosão dos algoritmos, inteligência artificial, big data, 5G, internet das coisas, indústria 4.0 etc.

De outro, encontramos uma massa crescente de trabalhadores e trabalhadoras (dada a desigual divisão sociossexual do trabalho) laborando 12, 14 ou 16 horas por dia, durante 6 ou 7 dias da semana, sem descanso, sem férias, com salários rebaixados e mesmo degradantes, sem seguridade social e previdenciária.

Para compreender essa realidade, é preciso retornar à década de 1970, quando eclodiu uma crise estrutural que levou à reestruturação global de todo sistema produtivo.

O incremento técno-informacional-digital encontrou, então, um fértil espaço para sua expansão, visto que era necessário incrementar a produtividade. E isso ocorreu enquanto o desemprego se ampliava, gerando uma força sobrante de trabalho disponível para realizar qualquer trabalho, sob quaisquer condições.

Com o aguçamento da crise, a partir de 2008/9, as grandes corporações globais, sob o comando financeiro, intensificaram suas ações para “flexibilizar” o trabalho, eufemismo bacana para corroer, devastar e precarizar ainda mais o enorme contingente ávido por emprego.

E, se esse movimento vem ocorrendo no Norte (Inglaterra e EUA são emblemáticos), sua intensidade é muito mais intensa no Sul, onde a classe trabalhadora vem comendo o pão que o diabo amassou.

Da China à Índia, passando por México, Colômbia e Brasil, os níveis de exploração do trabalho se exacerbam ainda mais. E, assim, o desmonte da legislação protetora do trabalho se tornou um imperativo corporativo (com desculpas pela horrorosa rima).

Foi nesse contexto que as plataformas digitais deslancharam. Lépidas no trato com o mundo digital, dotadas de (insustentável) leveza, desbancaram as corporações tradicionais e hoje se encontram no topo do tabuleiro do capital.

Conseguiram essa proeza combinando alta tecnologia digital e absorção ampliada de força de trabalho sobrante.

Mas era necessário ainda, nessa alquimia empresarial, que o assalariamento assumisse uma aparência inversa, de modo a “evitar” a legislação social do trabalho.

Muitos milhões foram gastos com escritórios de advocacia corporativa, para encontrar a rota do sucesso. Era preciso driblar os direitos do trabalho, a qualquer preço.

E mais: o novo léxico corporativo precisava se revitalizar, para que o cenário se assemelhasse a algo distinto: além de colaborador, parceiro, resiliência, sinergia etc., as plataformas deram novo impulso ao empreendedorismo, personagem que sonha com a autonomia, mas se defronta cotidianamente, como se viu nas reivindicações do breque dos apps, com adoecimentos sem seguro-saúde e sem previdência, baixos salários, ausência de direitos, traços que se acentuaram ainda mais durante a pandemia.

E foi assim que proliferou o que já se convencionou chamar de trabalho uberizado.

Transfigurados e convertidos em “empreendedores”, os entregadores ainda arcam com os custos dos instrumentos de trabalho (carros, motos, bicicletas, mochilas, celulares).

Sua condição “autônoma”, então, é um tanto curiosa: quem define a admissão? Quem determina atividade, preço e tempo das entregas? Quem pressiona, através de incentivos, para a ampliação do tempo de trabalho? Quem pode bloquear e dispensar sumariamente, sem nenhuma explicação? Por certo, não é o “autônomo”.

Assim, essa condição se desvanece, aflorando a subordinação e o assalariamento. E exigir direitos é princípio basilar da dignidade mínima do trabalho.

As plataformas dirão: mas são os entregadores que as procuram. É verdade, mas seria bom acrescentar que essa é a única alternativa hoje contra o desemprego. Aqui reside a base do regozijo das plataformas. Será, então, que a culpa de todo esse vilipêndio é dos algoritmos?

Sobre o autor

Professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp); autor, entre outros, de "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo).

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