20 de junho de 2025

O julgamento do Kneecap expôs a crise da liberdade de expressão na Grã-Bretanha

Esta semana, Mo Chara, membro do grupo de rap irlandês Kneecap, foi a julgamento por acusações de terrorismo. Em vez de fazer do músico um exemplo, o fiasco expôs a natureza profundamente antiliberal da classe política britânica.

Christophe Domec

Jacobin

Mo Chara saindo do Tribunal de Magistrados de Westminster em 18 de junho de 2025, em Londres, Inglaterra. (Peter Nicholls / Getty Images)

Neste mês, Mo Chara, membro do grupo de rap irlandês Kneecap, foi a julgamento por acusações de terrorismo por defender a causa anti-imperialista. Em vez de fazer do músico um exemplo, a perseguição expôs a natureza profundamente antiliberal e antidemocrática da classe política britânica.

“Mais negros, mais cães, mais irlandeses, Mo Chara”, dizem os cartazes espalhados por toda Londres um dia antes do julgamento de Mo Chara, do trio de rap Kneecap.

Eles são uma referência aos cartazes racistas que adornavam lojas e pensões no Reino Unido na década de 1950. O grupo de rap de língua irlandesa Kneecap recorreu à memória do racismo no Império Britânico antes da data do julgamento de Mo Chara, deixando clara sua posição: este julgamento é sobre imperialismo.

Liam Óg Ó hAnnaidh, mais conhecido pelo seu nome artístico, Mo Chara, que se traduz como “meu amigo”, compareceu ao tribunal na quarta-feira enfrentando acusações por seu suposto apoio a uma organização terrorista proibida pela lei britânica.

As acusações de terrorismo estão relacionadas a um show no norte de Londres em 21 de novembro de 2024, quando Ó hAnnaidh segurou uma bandeira do Hezbollah e disse à multidão: “Avante Hamas, avante Hezbollah”.

Centenas de pessoas compareceram em frente ao tribunal antes da audiência matinal após apelos de ativistas antiguerra e pró-Palestina.

O julgamento começou com o advogado de acusação, Michael Bisgrove, alegando que as acusações de terrorismo não têm nada a ver com as posições expressas em alto e bom som pelo rapper de Belfast sobre a Palestina.

“Não se trata do seu apoio ao povo da Palestina nem das suas críticas a Israel”, disse ele. “A alegação neste caso é completamente diferente. Trata-se do apoio do Sr. O’Hanna em relação à organização proscrita.”

Mas Kneecap e os manifestantes no Tribunal de Magistrados de Westminster, no centro de Londres, pensavam diferente. Muitos chamaram as acusações de terrorismo de “caça às bruxas” contra qualquer músico que ousasse denunciar o envolvimento da Grã-Bretanha no genocídio em curso em Gaza.

O músico de 27 anos sentou-se na mesa de defesa e se identificou ao juiz usando uma versão anglicizada de seu nome, Liam O’Hanna.

Ele foi representado por uma equipe de advogados renomados. Entre eles estavam Gareth Peirce, que defendeu o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, contra a extradição para os Estados Unidos, e Brenda Campbell KC, que representou famílias após o desastre de Hillsborough, no qual 97 torcedores de futebol morreram esmagados.

Sua equipe jurídica também incluía Darragh Mackin, que já havia representado Kneecap em um caso de discriminação contra a líder do Partido Conservador, Kemi Badenoch, quando ela retirou uma bolsa de artes do grupo.

Antes mesmo de o tribunal entrar no cerne da discussão, seus advogados argumentaram que o magistrado deveria arquivar o caso completamente, alegando que a polícia o acusou após o limite legal de seis meses pelo suposto delito.

Após uma breve discussão entre Bisgrove e a defesa, o Magistrado Chefe Paul Goldspring decidiu que o cronograma seria discutido posteriormente, durante uma nova audiência em 20 de agosto.

Embora tenha recebido fiança incondicional, Ó hAnnaidh foi informado de que deveria comparecer à próxima audiência ou poderia receber um mandado de prisão.

Isso significa que, após muita especulação, o Kneecap poderá se apresentar no Glastonbury, seu maior show depois do Coachella, onde recebeu duras críticas da mídia por projetar em letras gigantes “Foda-se Israel. Palestina Livre” em telões gigantes no fundo do palco.

Kneecap ganhou destaque global depois que o filme semiautobiográfico de mesmo nome foi lançado no ano passado.

No julgamento, Mo Chara foi questionado se precisaria de um intérprete para a próxima audiência, depois que o juiz admitiu que não conseguiu encontrar um para a audiência de quarta-feira.

Sua equipe jurídica pediu que um tradutor irlandês estivesse presente no próximo julgamento.

O juiz respondeu perguntando à defesa se eles poderiam ajudar a encontrar um tradutor, dizendo: “Se vocês souberem de um intérprete de inglês para irlandês, por favor, nos avisem. Para ser franco, não conseguimos encontrar nenhum [para a audiência de quarta-feira].”

Naquele momento, todo o tribunal se virou em seus assentos para olhar para DJ Próvaí, também conhecido como JJ Ó Dochartaigh, que fez o papel de um intérprete de irlandês contratado pela polícia para traduzir o personagem de Mo Chara no filme.

Do lado de fora do tribunal, espalhando-se e bloqueando o trânsito na movimentada Marylebone Road, multidões de manifestantes pró-Palestina se reuniram em torno do Tribunal de Magistrados de Westminster pedindo que as acusações fossem retiradas.

Apresentações ao vivo de música folclórica irlandesa serviram de base para cânticos constantes de “Libertem Mo Chara, Libertem a Palestina!”

Usando um keffiyeh e óculos escuros, Ó hAnnaidh saiu do Tribunal de Magistrados de Westminster diretamente para um palco improvisado e disse à multidão: “Quem for a Glastonbury, poderá nos ver lá. Se não puder estar lá, estaremos na BBC. Se alguém assistir à BBC.”

Uma organizadora da coalizão ativista Love Music Hate Racism, Samira Ali, de 25 anos, disse à Jacobin:

Estamos tentando fazer com que os artistas se manifestem, mas sabemos que eles têm medo. Kneecap prova o que acontece quando você faz isso.

O que está acontecendo com Liam e Kneecap é uma decisão política do establishment britânico e do governo britânico para calar uma banda que aproveita todas as oportunidades para se manifestar em prol da Palestina. Toda vez que eles têm uma plataforma, toda vez que estão no palco, eles se manifestam contra a cumplicidade do governo com o que está acontecendo em Gaza.

Já vimos o uso de acusações de terrorismo antes. É apenas uma forma de reprimir o que tem sido um enorme movimento pela Palestina. Há milhares de pessoas aqui hoje em solidariedade ao Kneecap. E toda vez que o Estado vem atrás deles, toda a indústria da música aparece.

Ela acrescentou: “Se você assistir a qualquer um dos shows do Kneecap, verá todo o público se radicalizar. Eles não estão apenas dizendo ‘Palestina Livre’, eles estão denunciando especificamente o que este governo faz.”

Mas as acusações de terrorismo não são exclusivas de Kneecap; ativistas de todos os setores também foram alvo de investigações policiais semelhantes. A estudante Sarah Cotte, de 21 anos, também foi acusada de terrorismo após um discurso proferido na Universidade SOAS, em Londres.

Em solidariedade ao Kneecap na quarta-feira, ela descreveu as acusações quase idênticas contra ela por seu suposto apoio ao Hamas.

Ela contou à Jacobin sobre sua prisão, quatro meses inteiros após seu discurso sobre a SOAS ter sido publicado nas redes sociais, quando a polícia invadiu sua casa, a prendeu e a manteve detida por oito horas. “Estamos longe de ser os únicos a ser tratados dessa forma. Há muitos outros enfrentando acusações semelhantes”, disse ela.

Fui presa sob a Lei Antiterrorismo, que proíbe a expressão de apoio a organizações terroristas proscritas. Mas, na verdade, fui presa por um discurso que fiz no qual ofereci apoio à resistência palestina.

Por defender o direito das pessoas de resistir, meu apartamento foi invadido, fui presa em casa e indiciada. Quando o Estado usa poderes terroristas, isso é um sinal para a polícia de que ela pode fazer o que quiser.


Natural da França, Cotte explicou que não pode deixar o Reino Unido até que as acusações contra ela sejam ouvidas no tribunal.

“Não me permitiram sair do país. Essa é uma das condições da minha fiança. E eu não sou britânica, não vejo minha família há algum tempo. Receio que isso me persiga. Isso pode afetar meu visto. E, honestamente, pode afetar muito mais na minha vida”, disse ela.

Presente no julgamento fechado ao lado do DJ Próvaí estava o terceiro integrante do Kneecap, Móglaí Bap, também conhecido como Naoise Ó Caireallain, junto com seus familiares e amigos.

O grupo recorreu às redes sociais após a audiência, escrevendo: “Fácil assim [...] Eles já estão recuando.”

Colaborador

Christophe Domec é um repórter francês e americano radicado em Londres.

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