O movimento liderado por Gandhi é uma pedra de toque para os defensores da resistência não violenta hoje. Mas a visão convencional ignora as limitações da filosofia política de Gandhi e a importância das lutas insurrecionais às quais ele se opôs na luta pela independência indiana.
Talat Ahmed
Gandhi fiando o fio no final dos anos 1920. Wikimedia Commons |
Tradução / Em 1959, Martin Luther King Jr viajou para a Índia para prestar homenagem ao seu fundador, Mohandas Karamchand Gandhi. King creditou a Gandhi a capacidade de “mobilizar e galvanizar mais pessoas em sua vida do que qualquer outra pessoa na história do mundo”.
Esta foi uma declaração ousada, mas não implausível, especialmente quando consideramos as dimensões transnacionais da estratégia de desobediência civil de Gandhi, que claramente inspirou o próprio Martin Luther King.
O teste inicial da estratégia de Gandhi foi na África do Sul, onde viveu por mais de vinte anos e liderou as lutas pelos direitos civis e políticos dos imigrantes indianos nas províncias de KwaZulu – Natal e Orange Free State. Nelson Mandela, que mais tarde recebeu o Prêmio Internacional Gandhi da Paz, inspirou-se em Gandhi, o via como o “arquétipo do revolucionário anticolonial” que “não era um líder comum, pois era inspirado divinamente”.
Mandela enfatizou corretamente a importância que Gandhi tem no tempo que viveu na África do Sul para o seu desenvolvimento político. Certa vez palestrando para um público indiano disse: “Você nos deu Mohandas, nós o devolvemos a você como Mahatma.”
Quando Gandhi voltou para a Índia, organizou sob sua liderança centenas de milhares de pessoas comprometidas com a desobediência civil em massa na luta pela independência do país. A campanha da “não cooperação” de 1920-22 promoveu um boicote em massa aos produtos britânicos. Em seu rastro, o valor das importações de tecidos estrangeiros quase caiu pela metade entre 1920-1921 e 1921-1922. Os Indianos organizaram 396 greves em 1921, envolvendo 600.000 trabalhadores, equivalendo uma perda de sete milhões de dias de trabalho, além de um êxodo de alunos de escolas e faculdades.
Em 1930, Gandhi deu início ao movimento de desobediência civil e as autoridades britânicas mandaram mais de 60.000 pessoas para a prisão por não pagarem o imposto colonial sobre o sal. Em 1942, as autoridades coloniais detiveram e prenderam mais de 100.000 indianos em resposta as manifestações do Movimento Quit India.
O próprio Gandhi foi preso quatro vezes na África do Sul e mais cinco vezes na Índia, passando cerca de 2.338 dias na prisão ao longo de sua vida. No entanto, cada nova onda de campanha desencadeava mobilizações de massa cada vez maiores e minaram a vontade dos britânicos em manter a sua mais preciosa “joia da coroa”.
Satyagraha
Avida de Gandhi foi cheia de ironias. Foi um apóstolo da não-violência e foi derrubado pela bala de um assassino em 1948. Foi um indivíduo profundamente religioso que lutou apaixonadamente pela unidade hindu-muçulmana, apenas para ver a Índia livre, porém dividida. Um homem que foi preso nove vezes como subversivo e perigoso para os governos coloniais, que brigou com todos os vice-reis britânicos de 1916 em diante. Foi uma figura “santa” que nunca ocupou um cargo e parecia estar acima dos negócios sujos da política, sendo também um operador astuto que pesava cada palavra e ação de uma maneira calculada.
Gandhi denominava a sua filosofia política usando o termo satyagraha: satya significa verdade e graha é uma referência à insistência ou força. A força da verdade se traduz como resistência não violenta e é frequentemente descrita como “resistência passiva”. No entanto, não havia nada de passivo no entendimento de Gandhi sobre satyagraha, para ele significava o engajamento ativo para resistir às leis injustas, valendo-se de táticas não violentas.
Para Gandhi, satyagraha não se trata de submissão mansa à vontade do malfeitor, significa colocar sua alma contra a vontade do tirano. A política de não violência representou uma força moral contra uma ordem injusta. Isso implicava uma recusa em cooperar com as autoridades e uma vontade de sofrer para atingir seus objetivos.
A política extra parlamentar combinada com a não violência são a marca registrada da satyagraha. Um mundo marcado por um emaranhado de horrores, doenças infecciosas, mudanças climáticas, guerra e racismo clama por uma estratégia política eficaz. Quando o reino da política convencional parece ter falhado, as pessoas recorrem a métodos extraconstitucionais.
Gandhi denominava a si mesmo como um “revolucionário não violento”. Ele ainda goza de uma reputação global como o grande expoente dessa estratégia, que eleva a não violência ao nível de um princípio e um fim em si mesma. Mas essa estratégia pode funcionar na prática hoje em dia?
Da elite à política de massa
Como esse homenzinho de uma pequena cidade na Índia, advogado formado em Londres com uma inclinação para a elocução, aulas de dança e aulas de francês, começou a dominar a política indiana na primeira metade do século XX inspirando uma variedade de ações, movimentos sociais e lutas de libertação que se desenrolaram desde então?
Nascido em 1869, Gandhi veio de uma família de classe média e em uma casta mediana. Ele não era uma figura aristocrática, secular, de língua inglesa e educado em Oxbridge, como seu futuro aliado Jawaharlal Nehru ou o fundador da Liga Muçulmana, Muhammed Ali Jinnah, mas o seu passado era confortável.
Nem elite, nem subalterno, Gandhi começou a ver as debilidades do recém formado grupo de nacionalistas agrupados em torno do Congresso Nacional Indiano, que surgiu em 1885. Esses líderes das elites exigiam representação de Indianos como eles, mas apenas flertavam com à ideia de dar poder político ao resto da população da Índia.
Gandhi era cético quanto à política constitucional e em seus próprios termos, não queria ver o Raj britânico ser meramente substituído por rostos morenos no topo. Embora não tenha vindo das massas indianas, ele entendeu que para um movimento ter sucesso, ele teria que ser socialmente amplo, desencadeando o poder de mobilização das massas, de baixo para cima.
Contradições da não violência
Omovimento nacionalista construído em torno das campanhas de Gandhi foi fundamental para a conquista final da independência indiana em 1947. No entanto, a ascensão desse movimento passou a representar problemas para o seu próprio programa de não violência. Em abril de 1919, as tropas coloniais britânicas abriram fogo contra uma manifestação em Amritsar, matando centenas de civis. Após o massacre, Gandhi cancelou sua hartal ou greve e jejuou em penitência.
Posteriormente, em 1922, ele desmobilizou o movimento de Não-Cooperação após uma violenta revolta eclodir entre os muçulmanos Mappilas de Kerala em agosto de 1921. A diretiva de Gandhi também foi motivada por um incidente na aldeia de Chauri Chaura, agora parte de Uttar Pradesh, em Fevereiro de 1922. Uma multidão enfurecida matou vários policiais depois que a polícia matou três pessoas a tiro.
Em todos esses casos, Gandhi culpou as massas indianas, alegando que elas não estavam “prontas” para a não violência. Embora houvesse uma enorme disparidade no número de baixas em Kerala, com 2.339 mortes de Mappilas infligidas pelas forças britânicas contra 43 oficiais do governo mortos pelos rebeldes, foram justamente os rebeldes que Gandhi acusou de ter um “temperamento impetuoso”. Após o episódio de Chauri Chaura, os líderes do Congresso ofereceram condolências às famílias dos policiais, agindo de acordo com as instruções de Gandhi, mas se referiram ao seu próprio povo como uma “multidão”.
Esses exemplos sublinham algumas das contradições e complexidades que existem entre as intenções originais de Gandhi e os resultados práticos dos movimentos que ele iniciou. Sua atitude também traz um certo tipo de elitismo que considera as massas incultas, rudes e governadas por paixões irracionais, ao mesmo tempo em que retrata pessoas educadas de classe média como líderes naturais.
Contenção
A ilustração mais clara desse posicionamento veio em fevereiro de 1946 com o motim naval indiano, que se desenvolveu independentemente da liderança de Gandhi. Foi uma greve geral e em seguida um motim de marinheiros indianos, a bordo e em terra, na cidade de Bombaim. O motim espalhou-se por toda a Índia governada pelos britânicos, de Karachi a Calcutá e Madras, levantando os slogans “Strike for Bombay” e “Long Live India”. Chegou a envolver 78 navios, 20 bases em terra e 20.000 marinheiros.
Esse movimento reuniu marinheiros hindus e muçulmanos em torno de uma série de queixas que iam desde reclamações sobre as rações de alimentos, até obstáculos para o avanço na carreira e o racismo que vivenciaram nas mãos dos oficiais da marinha britânica. Em uma demonstração simbólica de unidade nacional, os amotinados tiraram a Union Jack (bandeira do império britânico) de seus navios e hastearam as bandeiras do Congresso, da Liga Muçulmana e do Partido Comunista da Índia. Milhares de pessoas trouxeram comida para os rebeldes e confraternizaram com eles. Os trabalhadores em Bombaim fizeram uma greve geral de solidariedade que mobilizou 300.000 pessoas, enquanto os protestos também se espalharam por Karachi.
No entanto, em 3 de março de 1946, Gandhi criticou os amotinados, acusando-os de serem “irrefletidos e ignorantes” e de carecer da necessária “orientação e intervenção” de “líderes políticos” qualificados. Ele declarou que “swaraj [governo local] não deve ser obtido pelo que está acontecendo agora em Bombaim, Calcutá e Karachi” lançando uma luz direta sobre seu entendimento de liberdade.
A liderança ideológica de Gandhi muitas vezes agiu como um freio à iniciativa popular e à militância de base. Ele defenderia as demandas dos camponeses e os organizaria, desde que fossem pacíficos, respeitosos com os proprietários de terras e aceitassem suas táticas. Quando eles tiveram a ousadia de exigir o confisco da propriedade privada, Gandhi os considerou indisciplinados, ingratos e indignos de seu apoio.
Tutela
A filosofia de Gandhi estava repleta de paradoxos. Ele se opôs à industrialização, escrevendo no Hind Swaraj que seria “tolice supor que um Rockefeller indiano seria melhor do que o Rockefeller norte-americano”. No entanto, ele formou alianças com capitalistas indianos e contou com seu apoio. Essas eram as mesmas pessoas que aspiravam se tornar os “Rockefellers indianos”. Uma nova elite governante pós-colonial que não teria escrúpulos em abraçar técnicas industriais ou explorar trabalhadores.
Os industriais Sir Ratan Tata e Ghanshyam Das Birla financiaram o trabalho político de Gandhi. Em novembro de 1909, Tata deu RS 25.000 a Gandhi para apoiar seu movimento de não cooperação na África do Sul, a primeira de três doações substanciais ao trabalho de Gandhi. De sua parte, G. D. Birla provou ser o apoiador financeiro mais generoso do Mahatma.
Embora Birla seja apresentado por alguns escritores como um devoto de Gandhi, o relacionamento entre os dois homens poderia ser mais precisamente descrito como de colaboração, em vez de devoção unilateral. Os vastos recursos financeiros de Birla tornaram as campanhas de Gandhi possíveis. Birla se beneficiou em troca do prestígio social e religioso que sua associação com Gandhi concedeu a ele, mas também teve a sua posição econômica fortalecida.
Gandhi deu sua bênção à abundante riqueza de Birla com seu ensino sobre “tutela”. Este conceito afirmava que os ricos tinham o direito de acumular riqueza, desde que usassem parte dessa riqueza para o benefício da sociedade.
“Todos os meios disponíveis”
Gandhi abominava particularmente a violência se fosse usada por pessoas comuns como parte de uma luta de classes contra a exploração e opressão, seja estrangeira ou doméstica. Esse padrão manteve-se verdadeiro desde o seu tempo na África do Sul, nos episódios em Chauri Chaura e Mappilla, até o movimento Quit India e os motins navais nos últimos anos da vida de Gandhi. Em cada ocasião, Gandhi repreendeu as pessoas comuns (os subalternos) por não terem apreendido os princípios de sua estratégia satyagraha, absolvendo tacitamente aqueles que exerciam o poder do Estado e detinham o monopólio da violência e responsabilidade por suas próprias ações.
Ao tratar a ideia de não violência como um preceito moral abstrato, Gandhi deixou as massas indianas indefesas em face da brutalidade colonial. Não havia espaço em seu pensamento para as percepções de uma figura como Frantz Fanon, que rejeitou a ideia de que a violência dos oprimidos pudesse ser moral ou politicamente equiparada à violência do opressor.
Enquanto Gandhi pregava as virtudes da conciliação de classes e castas, enfatizando a necessidade de salvação pessoal por meio da reforma moral e social, Fanon tinha uma visão muito diferente das questões fundamentais em jogo.
O camponês desfavorecido e faminto é o explorado que logo descobre que só a violência compensa. Para ele não há compromisso, não há possibilidade de concessão. Colonização ou descolonização é simplesmente uma luta pelo poder. Os explorados percebem que sua libertação implica o uso de todos os meios disponíveis, e a força é o primeiro.
Quando o Congresso Nacional Africano (ANC) tentou seguir uma estratégia não violenta contra o apartheid, as tensões resultantes acabaram por chegar ao auge. Apesar de sua admiração por Gandhi, Nelson Mandela admitiu que a luta de libertação da África do Sul havia alcançado um estágio em que essa abordagem não era mais viável:
Segui a estratégia de Gandhi o máximo que pude, mas então chegou um ponto em nossa luta em que a força bruta do opressor não podia mais ser combatida apenas pela resistência pacífica. Fundamos o Umkhonto we Sizwe [MK, o braço armado do ANC] e acrescentamos uma dimensão militar à nossa luta. Mesmo assim, optamos pela sabotagem porque não envolvia a perda de vidas e oferecia a melhor esperança para futuras relações raciais. A ação militante tornou-se parte da agenda africana oficialmente apoiada pela Organização da Unidade Africana (OUA) após meu discurso ao Movimento Pan-Africano pela Liberdade da África Oriental e Central (PAFMECA) em 1962, no qual afirmei: “A força é a única linguagem que os imperialistas podem ouvir, e nenhum país se tornou livre sem algum tipo de violência.”
O ANC formou o Umkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”) em 1961, após o massacre de Sharpeville no ano anterior, quando a força policial do regime do apartheid matou 69 manifestantes desarmados. O ANC e seus aliados haviam contado anteriormente com greves, boicotes e desafio em massa. Sharpeville mudou toda a dinâmica, levando ativistas como Mandela a considerar a necessidade de autodefesa militante.
O colchão contra a bala
Gandhi tinha um entendimento limitado de que a libertação colonial era acima de tudo uma “luta pelo poder”, nas palavras de Fanon. Uma leitura generosa de sua vida e obra como sendo a de um revolucionário contraditório teria algum mérito. Mas, em última análise, o objetivo de Gandhi não era desmontar o sistema, mas tornar seu funcionamento mais ameno.
Nesse sentido, Gandhi vem de uma longa linhagem de reformistas. Sua própria variedade de reformismo tinha raízes em um conservadorismo social que buscava domar o capitalismo, em vez de derrubá-lo. Ele se tornou querido por alguns setores da classe dominante imperial da Grã-Bretanha com sua ênfase em negociações que exigiriam concessões de ambos os lados e sua defesa de dar a outra face frente a violência do Estado. Eles preferiram lidar com a satyagraha não violenta de Gandhi em vez de uma estratégia militante de massas.
Ainda assim, foram movimentos populares vindos de baixo, como a rebelião de Mappila de 1921 e o motim naval de 1946, que ajudaram a pôr fim ao domínio britânico sobre a Índia, tornando grandes partes do país esporadicamente ingovernáveis. Os britânicos não abandonaram a Índia apenas por causa da campanha não violenta de Gandhi, sairiam sem a pressão adicional desses levantes insurrecionais.
O revolucionário italiano Antonio Gramsci resumiu as limitações do gandismo ao criticar a elevação do “espiritualismo” ao “materialismo” no pensamento político. Para Gramsci, isso levaria à “exaltação de valores puramente espirituais, etc., à passividade, à não resistência e à não cooperação, mas na realidade, é uma forma debilitante e diluída de resistênciaL um colchão contra a bala”.
Sobre o autor
O colchão contra a bala
Gandhi tinha um entendimento limitado de que a libertação colonial era acima de tudo uma “luta pelo poder”, nas palavras de Fanon. Uma leitura generosa de sua vida e obra como sendo a de um revolucionário contraditório teria algum mérito. Mas, em última análise, o objetivo de Gandhi não era desmontar o sistema, mas tornar seu funcionamento mais ameno.
Nesse sentido, Gandhi vem de uma longa linhagem de reformistas. Sua própria variedade de reformismo tinha raízes em um conservadorismo social que buscava domar o capitalismo, em vez de derrubá-lo. Ele se tornou querido por alguns setores da classe dominante imperial da Grã-Bretanha com sua ênfase em negociações que exigiriam concessões de ambos os lados e sua defesa de dar a outra face frente a violência do Estado. Eles preferiram lidar com a satyagraha não violenta de Gandhi em vez de uma estratégia militante de massas.
Ainda assim, foram movimentos populares vindos de baixo, como a rebelião de Mappila de 1921 e o motim naval de 1946, que ajudaram a pôr fim ao domínio britânico sobre a Índia, tornando grandes partes do país esporadicamente ingovernáveis. Os britânicos não abandonaram a Índia apenas por causa da campanha não violenta de Gandhi, sairiam sem a pressão adicional desses levantes insurrecionais.
O revolucionário italiano Antonio Gramsci resumiu as limitações do gandismo ao criticar a elevação do “espiritualismo” ao “materialismo” no pensamento político. Para Gramsci, isso levaria à “exaltação de valores puramente espirituais, etc., à passividade, à não resistência e à não cooperação, mas na realidade, é uma forma debilitante e diluída de resistênciaL um colchão contra a bala”.
Sobre o autor
Talat Ahmed é professor sênior de História do Sul da Ásia na Universidade de Edimburgo e autor de Mohandas Gandhi: Experiments in Civil Disobedience.
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