Contra quase um século de debates sobre o stalinismo, a esquerda internacional nunca chegou a um acordo com o maoísmo, especialmente seu impacto global.
Kevin B. Anderson
By: Julia Lovell
Alfred A. Knopf, 2019
Em contraposição ao quase um século de debates sobre o stalinismo, nunca a esquerda internacional ajustou contas com o maoísmo, especialmente com o seu impacto mundial. A desilusão quanto ao stalinismo é marcada por certas datas trágicas da política internacional: o Pacto Hitler-Stalin de 1939, que lançou a Segunda Guerra Mundial, a supressão da Revolução Húngara de 1956, o esmagamento da Primavera de Praga em 1968. São eventos bastante lembrados, por vezes debatidos, aqui e em outros espaços. Quanto ao maoísmo, as seguintes datas, ainda que não recebam a merecida atenção, também marcam trágicos eventos para a esquerda mundial: o colapso do Partido Comunista Maoísta Indonésio, em 1965, devido à repressão assassina dos militares auxiliados pela CIA, a reaproximação da China e do imperialismo dos Estados Unidos, em 1971-1972, enquanto Nixon assolava o Vietnã com bombardeios e embarcava na campanha para a reeleição, o autogenocídio do Khmer Vermelho, a aproximação de Mao, da África do Sul e do Zaire de Mobuto contra os revolucionários africanos, em 1975-1976. Decerto, o fato de que esses eventos, impactados pelo maoísmo, não ocorreram nos países da Europa ocidental e central, mas sim nos do Sul Global, já explica a relativa falta de atenção. Não é justificável, porém, que se perpetue uma tal marginalização.
Nos anos 1960, o maoísmo tornou-se um polo que atraía os Panteras Negras e os Estudantes para uma Sociedade Democrática, nos Estados Unidos, alguns revolucionários e nacionalistas africanos, a extrema-esquerda francesa, entre outros. Muitos viam a China maoísta como produto de uma revolução socialista exitosa e levada a cabo por pessoas não-brancas. E se ela gradativamente perdia seu brilho como fenômeno internacional, isso se dava mais como um bulício do que como um estrondo, sem os furiosos debates que marcaram os anos de 1939, 1956 e 1968. O fato de não existir um balanço claro ajudou a influência ideológica maoísta a subsistir, muitas vezes indiretamente, até os dias de hoje.
Acha-se um exemplo nas teorias estruturalistas e pós-estruturalistas, que impactaram muitos campos acadêmicos e postulavam uma concentração naquilo que marxistas ortodoxos denominavam de superestrutura, especialmente nas dimensões cultural e ideológica. Essa afinidade com o maoísmo não se assenta meramente no fato de que alguns dos intelectuais associados ao estruturalismo – como Louis Althusser, Michel Foucault e, no início, Jacques Derrida – foram influenciados pelo maoísmo; assenta-se também em uma posição teórica indiscutível: que o pensamento maoísta buscava colocar a superestrutura no lugar da estrutura, notadamente com a Revolução Cultural.
Outro exemplo é o extremo voluntarismo do maoísmo: de slogans como “Ousar Lutar, Ousar Vencer” ou “O Imperialismo dos Estados Unidos é um Tigre de Papel” até o aventureirismo, ou pior, na esfera da política revolucionária, como o Partido Comunista Indonésio e o Camboja de Pol Pot. Se poucos da atual esquerda ativista são os que se identificam com o maoísmo – à parte grupos como os Naxalitas na Índia, os partidos comunistas no Nepal e o Partido Comunista das Filipinas – o seu espírito voluntarista subsiste, mais sutil e indiretamente, em alguns rincões da Antifa e do anarquismo. É essa continuidade que torna importante para a esquerda, e não só em termos históricos, o brilhante livro de Julia Lovell.
Se são incontáveis as histórias do comunismo internacional que põem em foco os partidos, grupos e intelectuais associados ao stalinismo dos anos 1920 em diante, o livro de Julia Lovell preenche uma importante lacuna por ser a primeira história do maoísmo como fenômeno mundial. É produto de pesquisa arquivística, de entrevistas e de uma cuidadosa síntese de estudos anteriores. Julia Lovell não faz parte da esquerda radical, é uma historiadora acadêmica, cujo livro, não obstante, nos é da maior importância. E alguns de seus achados são mesmo reveladores.
Um deles concerne à gestação do relato hagiográfico de Edgar Snow, em 1937, logo depois da Grande Marcha: Red Star Over China [Estrela Vermelha sobre a China]. Lovell mostra que o livro de Snow foi dirigido e editado de perto por Mao e por oficiais do partido: “A transcrição de Snow, em inglês, da versão do tradutor das palavras de Mao” era “traduzida para o chinês, corrigida por Mao e retraduzida para o inglês” (p. 76). Representantes do partido, segue o livro, continuaram a moldar a narrativa: “No curso do inverno de 1936, à medida que Snow trabalhava na cópia das anotações, os seus entrevistados continuavam a remeter-lhe uma torrente de emendas: que removesse qualquer traço de dissenso com a política do Comintern, que expungisse qualquer elogio a intelectuais chineses caídos em desgraça, que baixasse o tom da crítica a inimigos políticos que se tornaram aliados, que exaltasse o patriotismo antijaponês” (p. 76-77). Eis a primeira, mas não a última, romantização do maoísmo pela esquerda mundial.
Outro acontecimento central que Julia Lovell elucida é o massacre de meio milhão de indonésios de esquerda, ou de tal suspeitos, pelo exército e por seus aliados islâmicos, com considerável auxílio da CIA, em 1965. O que se sabia acerca disso? No início dos anos 1960, sabia-se que Mao havia formado uma aliança com Sukarno, um nacionalista com inclinações de esquerda que patrocinara a conferência de Bandung, dos países “Não Alinhados”, em 1954 – aliás, em Bandung, um importante marco do nascimento do terceiro-mundo, compareceram os representantes chineses, mas não os soviéticos.
Também corria na esquerda que o Partido Comunista da Indonésia (PKI) – de massas, legal e que, depois da cisão sino-soviética, se tornou o maior aliado da China entre os partidos comunistas do mundo – foi surpreendido de guarda baixa pela ferocidade da repressão, em 1965-1966. Naquele momento, a esquerda revolucionária também via a Indonésia como o maior fracasso do maoísmo enquanto movimento internacional, pois percebia que o PKI não agira tão diferentemente dos partidos comunistas pró-Moscou quando se alinhou, de modo oportunista, a um ditador nacionalista, sem que antes houvesse construído suficiente capacidade política ou militar independente. A verdade, porém, revela-se mais complexa – e mais danosa para Mao.
Os eventos que levaram à revolução abortada liderada pelo PKI e à repressão brutal que se seguiu ficaram, por muito tempo, amortalhados em segredo. Julia Lovell não logrou revelar totalmente o segredo, dada a supressão da própria história pelo regime chinês. Ainda assim, ela reúne suficiente evidência para também imputar a Mao tanto a derrota da esquerda indonésia como a da liderança do PKI, cujos desastrosos erros de cálculo foram impactados pelo voluntarismo do próprio Mao.
A fim de demonstrá-lo, Julia Lovell reproduz a versão de uma conversa entre Mao e o líder do PKI, D.N. Aidit, em agosto de 1965, na qual Mao pede para que Aidit “aja rápido” contra os líderes militares conservadores, sendo que naquele momento o estado de saúde de Sukarno colocava a aliança com o PKI em risco (p. 178). Se isso for verdade, Mao cometeu um grave erro de cálculo, comparável à decisão de Stálin de não permitir que os comunistas alemães se aliassem com os sociais-democratas enquanto Hitler chegava ao poder. Seja como for, a influência do maoísmo no PKI não deixa de ser deletéria.
Aludindo ao desastroso esforço de Mao para transformar o campo chinês pela via das “Comunas Populares”, causando a fome massiva dos fins dos anos 1950, relata Julia Lovell: “No estilo voluntarista do ‘Grande Salto Adiante’, Aidit passou a abdicar da mobilização cautelosa e paciente dos anos 1950, em favor de declarações que enfatizavam o alto ‘espírito, resolução e entusiasmo’ do maoísmo” (p. 168). E enquanto Aidit, tal como Sukarno, falava sobre organizar uma força paramilitar para enfrentar o exército regular, e a China prometia grandes quantidades de armamentos, nada de substancial foi realmente feito, mesmo quando o PKI subiu o tom contra os militares.
Então, no dia 30 de setembro de 1965, o PKI, agindo com aparente encorajamento chinês, deu um passo para incapacitar a liderança militar, matando alguns generais; no entanto, sem o apoio das ruas e dos militares, a ação rapidamente retrocedeu, especialmente quando o enfermo Sukarno não se juntou à causa. Isso permitiu que os demais generais indonésios orquestrassem um dos maiores massacres políticos da história e estabelecessem um regime conservador e antitrabalho, que ainda hoje persiste, sob uma forma modificada, com uma institucionalidade algo mais democrática.
Mais outra revelação de Julia Lovell concerne à relação de Mao com Pol Pot e com aquilo que alguns chamam de autogenocídio cambojano, em que até dois milhões de pessoas – um quarto da população – morreram de fome, de sobretrabalho, ou foram executadas, durante os anos de 1975-1979. Quando Nixon estendeu a guerra do Vietnã ao Camboja em 1970, bombardeios massivos matavam um grande número de civis. Como os camponeses fugiam das bombas que choviam nas áreas rurais – onde o Khmer Vermelho, notadamente o Partido Comunista Cambojano, tinha sua base – a população da cidade inchava, fazendo da fome uma realidade.
Quando o esforço de guerra dos Estados Unidos colapsou em 1975, o Khmer Vermelho de Pol Pot tomou o poder, adentrando na capital, Phnom Penh, e evacuando, sob a mira de armas, quase toda população. Foi parte de um esquema insano, inspirado em projetos maoístas como “O Grande Salto Adiante”, para esvaziar as cidades e construir o “socialismo” no campo, baseado em uma combinação de aumento abissal da jornada de trabalho com rações mínimas. Tudo isso veio abaixo em 1979, quando o Vietnã invadiu e derrubou o Khmer Vermelho, instalando uma versão de stalinismo mais racional e próxima do soviético, de que era aliado.
Se há décadas é sabido que o Khmer Vermelho era inspirado pelo maoísmo, Julia Lovell explica-o: “A evacuação das cidades foi uma versão extrema da ruralização da era da Revolução Cultural. A criação dos refeitórios e a abolição da refeição familiar replicaram a coletivização do ‘Grande Salto Adiante’” (p. 255). Além disso, ela mostra que a China maoísta estava profundamente comprometida com o regime de Pol Pot, que foi premiado com o maior pacote de ajuda que Pequim já oferecera: um bilhão em subvenções e empréstimos sem juros. Até mesmo os uniformes impostos pelo regime, vestes pretas parecidas com pijamas, eram importados da China.
Em 1975, assim que o Khmer Vermelho chegou ao poder e evacuou completamente as cidades sob a mira de armas, Pol Pot e Ieng Sary, os principais líderes, reuniram-se com Mao em privado. Consta que Mao lhes disse: “Nós aprovamos vocês! Muitas das suas experiências são melhores que as nossas”; e Pol Pot respondeu: “Os trabalhos do Presidente Mao guiaram todo o nosso partido” (p. 241). Envelhecido e doente, com apenas mais um ano de vida pela frente, Mao parecia sentir-se frustrado com o modo pelo qual teve de desistir do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural: “O que queríamos e não pudemos fazer, vocês estão conseguindo” (p. 241), disse ele. Três anos mais tarde, Pol Pot expressou sentimento similar, ainda sugerindo que ele havia superado até mesmo Mao: “Mao parou sua Revolução Cultural, nós temos uma Revolução Cultural por dia” (p. 259).
Os horrores do regime do Khmer Vermelho levaram a um duro despertar, especialmente na França, para muitos intelectuais de esquerda que haviam abraçado o maoísmo como uma alternativa, mais militante e antiburocrática, ao stalinismo russo. Michel Foucault e outros distanciaram-se não só do maoísmo, mas também do marxismo. Nessa era, os Novos Filósofos de Paris miraram o “totalitarismo” de um modo tal que se tornaram incapazes de apoiar, genuinamente, movimentos como a Revolução Sandinista na Nicarágua, ao passo que se inspiravam no escritor russo Aleksandr Solzhenitsyn, talentoso, mas muito direitista. Isso tudo ajudou a encaminhar um certo neoconservadorismo na França.
O capítulo sobre a África faz a crônica do notável e firme compromisso da China de Mao com o apoio aos africanos nacionalistas e revolucionários nos anos 1960, quase sempre para competir com a União Soviética. A China ganhou o apoio substancial de Julius Nyerere na Tanzânia, um dos poucos países africanos que se libertaram na primeira onda dos movimentos de independência e evitaram tanto um governo militar forte de direita (caso do Congo-Kinshasa [Zaire] e de Gana) como um autoritarismo ostensivo de esquerda (caso do Congo-Brazzaville e da Guiné). Nyerere, que defendia a ujamaa, uma forma de socialismo rural, e que, na condição de líder do principal Estado africano da “linha de frente” na luta contra o apartheid na África do Sul, apoiava movimentos de libertação no sul da África, recebeu considerável ajuda chinesa.
O mesmo ocorreu no Zimbábue, com a União Nacional Africana de Mugabe, partido declarado marxista, mas que depois estabeleceu uma brutal ditadura de esquerda. Julia Lovell faz com que sobressaiam essas relações, pintando um retrato bem mais positivo da política maoísta na África do que em outras regiões, o que tem certa validade, diante de conquistas como a ferrovia TanZam, que foi finalizada em 1975 a um tremendo custo para os chineses, livrando as minas de cobre da Zâmbia da dependência econômica da África do Sul.
Mas Julia Lovell ignora totalmente a maior falha da China maoísta na África, falha que, ao lado dos horrores do regime do Khmer Vermelho, maculou sua reputação no interior da esquerda mundial. Trata-se da guerra de Angola, em 1975, que ocorreu quando esse país rico em minérios rompeu as amarras do colonialismo português. Com o passar dos anos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) tornou-se, entre os movimentos de libertação dos países da África, o mais de esquerda e o mais profundamente enraizado. Mas por ser o MPLA bancado pela União Soviética, dos anos 1960 em diante a China apoiou a direitista União Nacional para a Total Independência de Angola (UNITA), cuja base era o Zaire de Mobutu.
Mobutu, governante dos mais reacionários e cleptocráticos da África, havia chegado ao poder orquestrando o assassinato do renomado líder da libertação africana, Patrice Lumumba. Portugal começou a sair de Angola e de suas outras colônias em 1975, já com a experiência, em 1974, da sua própria revolução de esquerda, que derrubou um regime fascista no poder desde os anos 1920. Oficiais portugueses revolucionários, radicalizados pelo contato com revolucionários africanos, buscavam entregar o poder ao MPLA.
Naquele momento, bancada não só por Mobutu e pelos Estados Unidos, mas também pelo apartheid da África do Sul, que enviou tropas para o sul de Angola, a UNITA, com outro grupo nacionalista de direita menor, tentou tomar o poder. Isso colocou China e África do Sul do mesmo lado. Quando UNITA, Zaire e África do Sul sofreram a humilhante derrota pelas mãos dos 36.000 combatentes cubanos enviados com ajuda soviética, a humilhação foi também da China, pois expunha Mao ao mundo como aliado da África do Sul.
A traição do movimento de libertação de Angola pela China tornou-se um ponto sem retorno para a esquerda que tinha um compromisso mais firme com a libertação da África e do Terceiro Mundo. Tragicamente, o regime do MPLA, endurecido pelas longas décadas de guerra civil contra a UNITA, que era financiada pelos Estados Unidos, tornou-se um Estado autoritário e cleptocrático; não obstante, o apoio de Mao a forças aliadas da África do Sul desempenhou seu papel na desilusão de muitos setores da esquerda quanto ao maoísmo, especialmente os setores envolvidos na libertação dos negros. Para outros, porém, isso resultou em desilusão quanto ao marxismo.
Não surpreende que Julia Lovell, uma estudiosa da China, caminhe em terreno mais seguro ao analisar o impacto do maoísmo sobre países como Indonésia e Camboja, do que ao tratar da África. Não obstante, ela deve ser elogiada por ter escrito a primeira análise do maoísmo como projeto mundial. No todo, é um trabalho de erudição profunda e julgamento cuidadoso. Contém uma riqueza de materiais indispensáveis para a esquerda do século XXI considerar, caso queira evitar os terríveis erros do passado. E posto que o maoísmo, ou ao menos padrões políticos similares ou derivados, subsiste até hoje, tanto em algumas formas de radicalismo acadêmico como em tendências da esquerda ativista, este livro também a nós nos fala hoje, se for lido com abertura de espírito.
Pós-escrito: Uma nota pessoal. Como parte da esquerda de Nova York, eu participei de alguns dos debates sobre a guerra civil de Angola de 1975, nos quais vi alguns ativistas, que foram por muito tempo simpáticos a Mao – e com quem eu por vezes travara amargas discussões – expressarem uma súbita e aguda desilusão. Angola também foi o assunto do meu primeiro artigo sobre política internacional: “U.S. Imperialism seeks new ways to stifle true Angolan revolution” [“Os Estados Unidos buscam novos caminhos para sufocar a verdadeira revolução angolana”] (News & Letters, Maio de 1976: https://www.marxists.org/history/etol/newspape/news-and-letters/1970s/1976-05.pdf), publicado sob o pseudônimo Kevin A. Barry, com consideráveis conselho e ajuda de Raya Dunayevskaya.
Sobre o autor
Kevin B. Anderson é professor de sociologia e ciência política na Universidade da Califórnia-Santa Bárbara. Autor, entre outros livros, de Marx nas Margens: nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais (Boitempo).
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